Meu querido José
Envio-lhe a
sétima e última parte do meu definitivo testamentário. Imagino que já deve
estar todo eufórico por não ter recebido nem a quinta ou sexta partes. Tenha
calma, jovem frenético das alturas românticas! Já o tinha avisado que comigo
não adianta tentar engavetamentos, nem em épocas nem em textos. Faça o que
quiser com o texto, mas não espere ordem onde só se pode aguardar pelo caos e
pelo mistério. Não espere harmonia onde só existe humanidade e paroxismo.
Antes de terminar
esta missiva, devo-lhe, em nome da nossa amizade, dar-lhe umas quantas informações
em relação a estes textos. Papa John,
como já lhe tinha dito, é americano, mas de continente, não de país. Seu
verdadeiro nome era João Rubinato e foi actor e músico nesse grande país de
Terra Brasilis, diria meu primo Jobim. Talvez este nome de João Rubinato nada
lhe diga, mas posso afiançar-lhe que foi um dos grandes nomes do samba do povo livre ao longo do século vinte, bem antes de meu primo. Pois bem, este João Rubinato,
ao qual apelidei de Papa John, era o
famosíssimo Adoniran Barbosa. Se nunca ouviu música alguma dele, aconselho-lhe
a escutar o Samba do Arnesto, o Samba Italiano e a Saudosa Maloca. Procure nessas
maluquices virtuais, pois acredito que não devem faltar álbuns e fotografias e outras coisas que tal.
Quanto a meu
primo Jobim e à Elis Regina, ficará para outra altura o relato de como os
conheci e de como descobri que o Tom era meu primo.
Ora bem, jovem
das alturas profundas (este oximoro foi exímio, diga lá?), quanto às outras
partes, um dia destes envio-lhas, para poder tentar entender o porquê de tal
volte-face, ou talvez não haja volte-face algum. Foi a realidade a tecer a sua
meada com laivos de sangue e ficção tropical.
Sei que vai
querer saber o nome daquela que parece ter sido fundacional para a minha
vivência. Não lho digo, pois veria até nisso estranhos sagrados segredos
amadores de alguém que não teve como destino escrever, mas sim viajar.
Muito agradeço a
sua visita no domingo passado e o seu presente, que era escusado.
Receba este
texto, meu querido José, e não dê às asas da imaginação, atenha-se às palavras
e sorria.
Um abrrraço do
Efrraim, que muito lhe agrrrradece os doces. Uma Marrravilha!
Outro do
Seu
Gonçalo V. de
Sousa.
(7ª e última parte) - Change Partners
Abri os olhos e senti o teu perfume no meu
corpo, nos suaves lençóis de linho. A brisa soprava pela janela do hotel que se
espraiava até ao azul infinito do Atlântico. Os teus cabelos tinham aquele
aroma fresco e primaveril dos lírios e das rosas, ainda que a maresia e todo o
tropicalismo do Rio de Janeiro e de Copacabana navegassem no teu corpo.
Ali estavas tu, verdadeiramente amável, náufraga
em suaves segredos amorosos. Ali estavas tu, na minha cama, encostada ao meu
peito, abraçada ao meu pescoço. Tudo parecia tão certo e, ao mesmo tempo, tão
assustadoramente irreal. Os teus cabelos loiros derramados pela minha cama como
um despojo de guerra, o teu vestido branco, elegante, intrigante, maravilhoso,
sobre o chaise-longue. O teu corpo nu
e quente, os íntimos pequenos pêlos eriçados, as tuas pernas entrelaçadas nas
minhas. Foi assim que acordei nessa manhã de quinze de Março de 1968, no dia em
que completava vinte e dois anos.
Depois de duas semanas irreais e quase
novelescas, tinha-te nos meus braços, tinha o teu sorriso todo só para mim, todo
só para mim, só para mim, doirada senhora dos cabelos e dos pensamentos
perfeitos.
Saio da cama sem fazer algum barulho que
incomode o teu sono sem mácula, sem que a tua respiração calma e suave se dissolva
na brisa da manhã. Vou até à varanda da suíte que Papa John reservara para mim. A manhã clara e luminosa de um sol
olímpico que banha Copacabana e os morros e o Redentor. As praias
espreguiçando-se languidamente ao longo do Calçadão, enquanto alguns turistas e
veraneantes aproveitam as últimas águas de Março. (Mais tarde, esta minha
expressão iria inspirar meu primo a escrever uma música que ficaria
imortalizada no dueto com a Elis Regina.) Que mais poderia eu, jovem, com bons
padrinhos, sem problemas, e com a mulher da minha vida partilhando a cama, e
talvez a vida, pedir aos deuses? Tudo era bom e belo e justo e tudo fazia
sentido. Agora sim, tudo parecia fazer sentido.
Da varanda olhava para dentro do quarto e
quando as cortinas faziam balão com a suave brisa que acariciava aquela manhã,
vislumbrava-te deitada e adormecida. O teu corpo delicado, moreno do Sol dos
trópicos, exalando aromas a coco e a abacaxi. As tuas pernas perfeitas, os teus
braços perfeitos, o teu rosto, linhas de versos escritos por indizíveis e
inenarráveis anjos de cetim que guardam os tesouros celestes e as coisas
inefáveis. Os teus lábios adormecidos eram os suspiros que embalavam aquela
manhã tão irreal e tão verdadeira. Naquele momento, acreditei que era possível
sermos melhores do que as pessoas de papel. E fomos, dourada senhora minha. E
fomos.
Mandei subir um moço com o mata-bicho.
Frutas, sucos, pão, geleias e flores, muitas rosas e lírios e camélias e
tulipas roxas.
Tu continuavas dormindo como uma promessa
de vida no meu coração, diria meu primo poucos anos depois estas palavras que
vagueavam pelo silêncio dos meus pensamentos.
A brisa do Atlântico chegava ao leito em
suaves e doces quietações. Fosforescências líquidas.
O Sol começava a nascer na varanda do
quarto, avançando até à nossa cama. O Sol crescendo por entre os teus pequenos
e delicados pés, subindo pelas tuas pernas, tranquilizando a tua pele sensível
e perfumada.
Ligo o gira discos.
Acordo-te com um beijo pausado, enquanto
as gaivotas voam alto e o cheiro a maresia se ergue por entre as cortinas
brancas do hotel. Tu sorris e beijas-me e o tempo parece não existir. As
palavras não existem. Mas os teus lábios existem. Mas os teus beijos existem.
Gasto eras olhando, observando,
vislumbrando, de forma embasbacada e infantil, o teu rosto. O teu sorriso de
dentes perfeitos. Os teus lábios que sussurram suspiros bruxuleantes,
misteriosos, mágicos, eternos, deliciosos. Tu sorris e não existe dor nem no
presente nem no futuro que seria o presente desta manhã. Hoje, essa dor
continua a não existir, porque gravei a sangue o teu sorriso e as tuas
palavras.
Beijo-te o corpo nu e enlaço as tuas nas
minhas mãos. O elegante verniz esbranquiçado dos teus majestosos dedos é um
pormenor de retábulo. Acaricio-te os cabelos com promessas de manhãs suaves e
justas. Prometo-te o Verão e as coisas belas em cada carícia, em cada toque
capaz de arrepiar o mais teimoso e subtil pequenino pêlo do teu regaço.
Abraças-me com a vulcânica força que rege as vagas e as neblinas, enquanto o
Sol nos cobre as costas e os pés e a brisa do mar se guia pelo ritmo da música.
Que aquela
manhã, triunfal, ecoe no silêncio do anonimato. Para sempre. E que faça lembrar
o Sol e a luz dos dias fartos, frescos e líquidos, de beijos sedosos e
maravilhosos. (Meu primo iria aproveitar a métrica e o sabor desta última frase
para uma sua famosíssima canção intitulada Chega
de Saudade).
Passaram
mais de quarenta anos e onde nos encontramos agora, que o mundo continuou e as
ondas cumpriram as suas promessas de espuma?
Tivemos
medo de responder ao futuro e às incertezas, agarrando-nos ao presente que é
constante. Fizemos daquela manhã um continuum
ad aeternum.
Não
interessa o que veio depois, meu amor de manhãs doiradas e perfumadas. O que
veio depois é nada, madona minha das
palavras por escrever.
O que veio
antes ou depois, não interessa absolutamente nada. Interessa sim, aquele quarto
naquela manhã em Copacabana, num hotel que selou o meu destino de viagens para
ti. Só para ti.
Tudo o que
permanece é o teu sorriso e o meu corpo e o teu corpo sendo um, como uma
comunhão de passarinhos brancos a voarem para os picos mais altos das montanhas
inacessíveis.
O teu corpo no meu corpo.
«Porque
fazes tudo isto por mim, Gonçalo?», perguntavas-me. «És tu a resposta para o
meu futuro e para tudo o que venha a fazer. Digo-te isto e ainda não sei o
propósito do que está a acontecer ou do que vai suceder.» «Porquê eu?» «A música
selou-nos sem que o soubéssemos. Não me arrependo de nada.» E tu respondeste
«Nem eu. Parece que estamos vivendo sonhos, Gonçalo. Träume.» «Sonhos ou não, dourada senhora dos meus pensamentos
perfeitos, temo-nos.» Ao dizeres sonhos
em alemão, com o teu sotaque límpido de horas de aulas sobre essa magna língua
de príncipes e valquírias e dragões e cavaleiros, estremeci.
Beijei-te
novamente e abracei-te com toda a força do mundo. Beijei-te os dedos e os
braços. Peguei em ti ao colo, dançámos e sorrimos e nada mais interessava.
Fizemos amor ao som da música que o gira discos repetiu vezes sem conta. Amamo-nos
como deuses e como demónios, de forma sagrada e profana, de forma literária e
real. Amamo-nos como humanos, finitos e mortais e, por conta disso mesmo,
eternos e imortais.
Que adianta
sequer sussurrar o teu nome, tão presente na minha memória e em todos os
aspectos da vida? Não, o nome não interessa nada.
Mas não
saiamos daquele quarto de hotel. Deixemos a brisa entrar, só mais uma vez.
Deixemos o sol iluminar e aquecer aquela manhã azul. Deixemos o teu sorriso, o
teu rosto, o teu olhar, os teus lábios fazerem parte de mim, sempre.
Hoje,
quarenta e sete anos depois, precisamente à mesma hora que acordaste, volto a
abrir a porta daquele quarto. Não sei se o que escrevi corresponderá à
verdadeira realidade do papel. Sei que corresponde à minha. A realidade do
sangue.
Mordes-me o ouvido e sussurras-me Won’t you change partners and then,
enquanto eu te olho nos olhos e te segredo You
may never want to change partners again.
A música selou-nos. O testamento termina
aqui.