sábado, 19 de janeiro de 2013

Poema à noitinha... Café Orfeu! de Manuel António Pina


Café Orfeu! 

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

*in Poesia Reunida, Assírio & Alvim

Cronicando pela Ásia... Do Cambodja a Kuala Lumpur

Siem Reap, 6h
20 de Abril 2009


Toca a acordar e partir! Não tenho feito outra coisa se não viver intensamente cada dia. Já não sei se estou numa mota, num táxi, comboio ou avião. É-me indiferente. O corpo aproveita para descansar o que pode. Pede uma noite de sono, mas só lhe dou um encosto. O tempo voa. E já passei por muita coisa até aqui. Saio de Siem Reap com destino a Kuala Lumpur.

Na noite anterior tinha tudo combinado com o motorista de Tuk-tuk. E de Tuk-tuk segui para o aeroporto. À hora marcada, 6 da manhã, lá estava ele. E, para aquele motorista, o dia parecia já ter começado há muito...

Uma pequena nota: sair do país custa 25 dólares. Fiquei ligeiramente indignado! Achava que qualquer taxa estava já incluída no bilhete de avião e que só se pagava para entrar num país - não para sair! Um conselho: andem sempre com dólares americanos. O euro também serve. Mas, para estas situações inesperadas, dá sempre jeito...

Kuala Lumpur, 13h
20 de Abril 2009


Dá que pensar... Parti de Portugal, passei por Londres. Aterrei em Hong Kong. Fui de barco para Macau. Voei para a Tailândia, atravessei-a de comboio rumo ao Cambodja e agora estou na Malásia.

Aterro num país Muçulmano, nunca tinha estado em algum e a Malásia tem 70% da população. Os restantes são Malaios, Hindus e Chineses. É um país que tem várias etnias, mas estas convivem pacificamente. Esta ideia multi cultural de encontro de povos anima-me.

O objectivo é passar por Kuala Lumpur. O autocarro que me leva dá a descobrir campos sem fim, carregados de palmeiras. Ao longe começam a deslumbrar-se as Petronas Towers, as torres gémeas mais altas do mundo. Parece-me impressionante, pois ainda estou a vários quilómetros.

Tenho um bom feeling acerca do que vou ver. É isso que deixo no meu bloco de notas. Vejamos!


Rodrigo Ferrão

Quem não conhece os livros de Oliver Jeffers?


Oliver Jeffers Author Film 2013

Quem não conhece os livros de Oliver Jeffers? O Incrível Rapaz Que Comia LivrosPerdido e Achado, Sobe e Desce, O Coração e a Garrafa, e o mais recente Presos. Todos Publicados pela Orfeu Negro.

Hoje deixo aqui um testemunho dado pelo autor. Para iniciar esta tarde da melhor maneira. 


Participar é bom... Ganhar é melhor. Vamos à final com estilo?


Que vamos à final... já se sabe! Só uma hecatombe nos tira de lá. Mas não passamos em 1.º lugar. E isso obriga a lembrar que vamos ter só 5 dias para a final. Como tal, precisamos de grande mobilização. Uma massa de entusiasmo maior do que a que se viu nesta primeira fase.

Relembramos que as votações para a final são de: 21-01-2013 a 25-01-2013. Mas hoje é o último dia. E, como prenda pelos meus 30 anos, venho pedir um último esforço. Acho que este espaço merece. Será sempre um prémio nosso e de quem nos acompanha.

Última vez... Entrar neste link: http://aventar.eu/blogs-do-ano-2012/blogs-do-ano-2012-votacoes-1a-fase-24/ »» ir à categoria Livros / Literatura / Poesia »» Procurar e seleccionar "Clube de Leitores" »» Carregar em "Vote" e... JÁ ESTÁ!  

Obrigado e até à final!  


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Prémio Manuel António Pina criado pela Tcharan


O regulamento ainda está a ser finalizado, mas a editora Tcharan anunciou já a criação do Prémio Manuel António Pina para homenagear o autor e distinguir textos para a infância e juventude em língua portuguesa - e talvez em espanhol - que tenham sido publicado ao longo de um ano.

O prémio terá um valor monetário de 1.500 euros e o prazo de candidaturas termina a 28 de Fevereiro.

A Tcharan foi criada por Adélia Carvalho, autora do projecto e livraria Papa-Livros, no Porto e Marta Madureira no final de 2010 e o catálogo inclui quase uma dezena de obras, entre elas a reedição de "O país das pessoas de pernas para o ar" (1973), o primeiro livro que o Manuel António Pina publicou.




Homenagem a F. Scott Fitzgerald

A poesia é qualquer coisa que vive como o fogo dentro de ti - como a música para o músico, ou o marxismo para o comunista.

Defendo a tese de que F. Scott Fitzgerald foi o prosador que mais bem se aproximou da poesia. Leio e releio os seus cinco romances (o último deles inacabado), os seus cento e cinquenta contos, a sua peça de teatro, as suas inúmeras cartas, crónicas, pequenos ensaios. Abro páginas ao acaso, ponho o dedo ao acaso na folha, escuto a frase, torço-a, espremo-a e dela destilo invariavelmente uma superlativa poesia. Impressionante como Fitzgerald nunca desliza, como a sua mão não treme, como a beleza da forma nunca se evola. Não por acaso Fitzgerald era devoto da poesia romântica inglesa e um estudioso de Keats, outro talento precoce.


O mais incrível é que muitos destes prodígios ocorreram quando Fitzgerald não tinha ainda trinta anos, um caso raríssimo na literatura. Claro que a época era outra. A cultura e a maturidade eram adquiridas mais cedo. Casava-se cedo, trabalhava-se cedo, ia-se para a guerra cedo, lia-se cedo, escrevia-se e publicava-se cedo, morria-se mais cedo. Quem ler uma biografia de Scott Fitzgerald perceberá que aos vinte e poucos anos, o que já lera, o que já vivera, o que já escrevera eram próprios de um adulto. Convicto de que morreria na guerra, Fitzgerald, sem tempo para rever o que escrevia, dedicou-se durante três meses ao seu primeiro romance Este Lado do Paraíso, para tentar deixar a sua marca no mundo. Atormentado pelo álcool, pela loucura de Zelda (seria a loucura de Zelda um motor do seu alcoolismo ou seria o seu alcoolismo um elemento deteriorador da condição de Zelda?), por ter de trabalhar por necessidade material na indústria de Hollywood, que desprezava, morreria após o segundo ataque cardíaco aos quarenta e quatro anos. Um pormenor desse dia que sempre achei curioso: pouco antes de morrer, estivera a recitar poesia entusiasmado em casa de uma amiga. Fitzgerald resumiu a sua vida como um conflito entre uma necessidade irreprimível de escrever e um conjunto de circunstâncias que procuraram, a todo o custo, demovê-lo desse propósito.


Pergunto-me que lugar alcançaria Fitzgerald, que ainda pretendia escrever um grande novela sobre a II Guerra Mundial, na história da literatura se a morte não o tivesse colhido tão cedo. Pergunto-me se O Último Magnata, uma extraordinária obra inacabada, publicada com os seus planos do livro (nos quais, vemos como é meticuloso o ofício do romancista), não teria hoje o sucesso de O Grande Gatbsy (publicado aos vinte e nove anos), se tivesse tido tempo para a concluir e aprimorar. Mas parece que o baú não acabou. Muito recentemente, apareceu o inédito Thank you for the light. Ainda assim, o lugar de Fitzgerald tem vindo a ser alcandorado após a sua morte, decénio após decénio. Até na Sétima Arte.



A obra, qualquer obra, vale sempre mais do que as suas interpretações. Não há trabalho de um crítico, por mais notável que seja, que chegue aos calcanhares da obra, qualquer que ela seja. O tempo o tem demonstrado. Deixo aqui excertos de Fitzgerald com o intuito de demonstrar a tese que defendi na primeira linha deste texto.


«O seu rosto, o rosto de uma jovem virginal, pairava fragilmente sobre a poeira etérea da tarde. [...] nem ele jamais tinha visto uma textura tão pálida e imaculada como a de sua pele, tão fulgente e vistosa como a dos seus olhos. [...] Mas ele estava gostando da humanidade naquela noite, sob o luar de Verão dos Borghese Gardens. A Lua parecia um ovo radiante, macio e suave como o rosto de Jenny Delehanty do outro lado da mesa, enquanto uma brisa salgada soprava de leve sobre as mansões da região, como que recolhendo o aroma das flores e depositando-o ali no relvado do restaurante.»


A Escada de Jacob


«Deve ter havido momentos, ainda nessa altura, em que Daisy não correspondeu inteiramente aos seus sonhos – não por culpa dela, mas devido à colossal vitalidade da própria ilusão dele, que tinha ultrapassado Daisy, e tudo o mais. Tinha-se lançado na ilusão com tal paixão criadora, que constantemente a acrescentava, ataviando-a de todas as plumas de cor que lhe aparecessem pelo caminho. Não há fogo nem frescura, por muito grandes que sejam, capazes de competir com os fantasmas que, no seu íntimo, um homem consegue armazenar. Quando me pus a observá-lo, recompôs-se um pouco, visivelmente. A sua mão apoderou-se da dela e quando ela lhe sussurrou qualquer coisa ao ouvido voltou-se para ela com um ímpeto de emoção. Acho que era a voz dela, com aquele calor febril e flutuante, o que mais o arrebatava, porque inexcedível pelos sonhos – aquela voz era uma canção imortal.»


O Grande Gatsby


«Ali estava ela – rosto, forma e sorriso contra a luz do interior. Era o rosto de Minna – a pele peculiarmente radiosa, como se tocada por uma fosforescência, a boca com as linhas quentes que nunca contabilizavam as perdas...» 
«O limpa-pára-brisas fazia tiquetaque domesticamente, como um relógio de pé. Viam-se carros amuados a deixar as praias molhadas e a regressar à cidade.»
«Era uma necessidade de tempo profunda e desesperada, um relógio a bater-lhe no coração, incitando-o, contra toda a lógica da sua vida, a entrar naquele momento e dizer: “Isto é para sempre.”»
«Katheleen esperou, ela própria irresoluta – gelo róseo e prateado, à espera de derreter na Primavera.»

O Último Magnata


« [...] a insónia de cada um de nós é tão diferente da do seu vizinho como as esperanças e as aspirações despertas. [...] como um arco de violino com a corda partida sobre o instrumento que freme, vejo o horror real que se alastra por sobre os telhados e nas buzinas estridentes dos táxis nocturnos e no som monótono dos noctívagos que voltam para casa. Horror e destruição...
... Destruição e horror: o que eu poderia ter sido e feito, e se perdeu, desperdiçou, dissipou e desapareceu, irrecuperável. Podia ter agido deste ou daquele modo, evitado isto ou aquilo, ter ousado quando temi, usado de cautela quando fui imprudente.
Não precisava de a ter ferido daquela maneira.
Nem de lhe ter dito aquilo, a ele.
Nem de me destruir tentando destruir o indestrutível.
O horror chega agora como uma tempestade – e se esta noite fosse uma antecipação da noite de depois da morte? E, se a partir daqui, tudo fosse um calafrio eterno à beira de um abismo, com toda a minha baixeza e desgraça próprias a empurrar-me e toda a baixeza e desgraça do mundo pela frente? Não há escolha, nem caminho, nem esperança – só a repetição incessante do sórdido e do semitrágico. Ou, talvez, tenha de permanecer para sempre no limiar da vida, incapaz de o transpor e de regressar. Agora sou um espectro, enquanto o relógio bate as quatro horas.
[...]
Irresistível, irisada, eis a Aurora, eis outro dia.»



Adormecer e Despertar


«As flores dos castanheiros pendiam sobre as mesas e caíam petulantes sobre a manteiga e o vinho. Julia Ross comeu algumas com o pão enquanto ouvia os peixes dourados ondulando na piscina e os pardais chilreando sobre uma mesa vazia. Podia-se ver todo o mundo ali de novo – os empregados com as suas caras profissionais; as francesas, cheias de olhos e bocas; Ohil Hoffmanm sentado à sua frente com o coração equilibrado num garfo [...]«Perdera a batalha contra a juventude e a Primavera, e, com o seu sofrimento, pagara um preço pelo pecado imperdoável da velhice – o de se recusar a morrer. Não se conformara em rumar para as trevas sem primeiro se pôr à prova; o que ele quisera, no fundo, era magoar o seu velho coração. A luta, em sim, tem um valor que supera a vitória ou a derrota, e aqueles três meses com Annie... agora, pertenciam-lhe para sempre.»

Na Sua Idade


«Na noite mais escura da alma, são sempre três horas da manhã.»
«Um mês bastou para outras coisas, como o ruído de um rádio, a publicidade nas revistas, o chiar dos carris, o silêncio mortal do campo, me encherem de azedume [...]
Reparei que a vitalidade é a força da natureza menos transmissível. No tempo em que eu rebentava de sumo e ela me invadia sem pedir licença, tentei distribuí-la - sem nunca ter tido êxito. [...] a vitalidade nunca «se pega». Existe ou não existe em nós, como a saúde, os olhos castanhos, a honra ou a voz de barítono. De nada valeria pedir-lhe para me dar alguma bem embalada, pronta a ser cozinhada e digerida em casa; nunca chegaria a tê-la – nem que passasse mil horas a agarrar na malga da auto-compaixão.»



The crack-up


«O que ele na realidade conseguia fazer com as palavras era impressionante, elas cintilavam e coruscavam — ele escrevia frases, parágrafos, capítulos que eram obras-primas de tessitura e cadência. 
Era um conto. Eu comecei-o num estado de espírito de repulsa, mas antes que tivesse lido cinco minutos eu estava completamente imerso nele, cabalmente encantado, totalmente convencido e pedindo a Deus que pudesse escrever assim. Quando o Cannon acabou o seu telefonema, eu mantive-o à espera até que acabasse o conto e quando o fiz havia lágrimas nestes velhos duros olhos profissionais. 
O que quer que seja que escreva será de uma brancura pura — da qual resultará um clarão encandeante.»

 
Financiando Finnegan


«Todo o tempo do mundo – a sua vida e a dela. Todavia, por um instante, ao beijá-la, soube que, mesmo que procurasse por toda a eternidade, nunca conseguiria recapturar aquelas horas perdidas de Abril. Podia apertá-la agora até os músculos se lhe enodoarem nos braços – ela era algo desejável e raro por que lutara e que fizera seu –, mas nunca mais um murmúrio intangível ao crepúsculo, ou na brisa da noite...
“Bem, paciência”, pensou ele, “Abril acabou, Abril acabou. Há todos os tipos de amor no mundo, mas nunca o mesmo amor duas vezes.”»


O mais Sensato


«The words thrilled Val. They had come into his mind sometime during the fresh gold April afternoon and he kept repeating them to himself over and over: “Love in the night; love in the night.” He tried them in three languages — Russian, French and English — and decided that they were best in English. In each language they meant a different sort of love and a different sort of night — the English night seemed the warmest and softest with a thinnest and most crystalline sprinkling of stars. The English love seemed the most fragile and romantic — a white dress and a dim face above it and eyes that were pools of light. And when I add that it was a French night he was thinking about, after all, I see I must go back and begin over. [...] But the question of love in the night was the thing nearest his heart. It was a vague pleasant dream he had, something that was going to happen to him some day that would be unique and incomparable. He could have told no more about it than that there was a lovely unknown girl concerned in it, and that it ought to take place beneath the Riviera moon. [...] Love went on around him — reproachless love and illicit love alike. As he strolled along the seaside promenade at nine o’clock, when the stars were bright enough to compete with the bright lamps, he was aware of love on every side. From the open-air cafés, vivid with dresses just down from Paris, came a sweet pungent odor of flowers and chartreuse and fresh black coffee and cigarettes — and mingled with them all he caught another scent, the mysterious thrilling scent of love. Hands touched jewel-sparkling hands upon the white tables. Gay dresses and white shirt fronts swayed together, and matches were held, trembling a little, for slow-lighting cigarettes. On the other side of the boulevard lovers less fashionable, young Frenchmen who worked in the stores of Cannes, sauntered with their fiancées under the dim trees, but Val’s young eyes seldom turned that way. The luxury of music and bright colors and low voices — they were all part of his dream. They were the essential trappings of Love in the night.»
 

Love in the Night

E deixo o melhor por descobrir. As duas últimas páginas de O Grande Gatsby.


Manuel Monteiro
*autor convidado esta semana pelo Clube de Leitores

1º Parágrafo: Os Anagramas de Varsóvia


NO ÚLTIMO SÁBADO DE SETEMBRO DE 1940, aluguei uma carroça puxada por um cavalo, com o respectivo cocheiro e dois homens pagos aos dia para me fazerem a mudança do meu andar junto ao rio para o apartamento de um quarto da minha sobrinha, situado no velho bairro judeu da cidade. Decidira sair de casa antes da criação oficial de um gueto, porque já nos fora proibido circular em grande parte de Varsóvia, e não precisava de uma bola de cristal para saber o que viria a seguir. Queria ser eu a estabelecer as condições do meu exílio – e poder escolher quem havia de ir para o meu andar. Já se tinham mudado para lá a filha de um cristão vizinho meu, estudante universitária, e o marido dela, advogado.



* Tradução de Daniela Carvalhal Garcia

a-ver-livros: o cão e Josée Masse

Morde-me as canelas, paixão
que a cinza dos dias está a puxar
para o chão a alma livre

Arranha-me os olhos, amor
que a dor é melhor que o nada
e o sangue que escorre dos livros
não alimenta mais que pouco

Ladra-me aos ouvidos, coração
que não te ouço

* para conhecer melhor a ilustradora canadiana Josée Masse
é só seguir o link www.joseemasse.com

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O Aleph chega a Portugal nas páginas da Quetzal


Está prometido pela Quetzal para sair dia 18 de Janeiro. Já tardava estar disponível em Portugal mais uma das marcas do eterno Borges. Aqui ficam umas palavras para abrir o apetite sobre este livro que tive que ler primeiro em castelhano e depois em português-brasil.

Na sua maioria, "as peças deste livro correspondem ao género fantástico", esclarece logo o autor no epílogo da obra. Nelas, ele exerce seu modo característico de manipular a "realidade": as coisas da vida real deslizam para contextos incomuns e ganham significados extraordinários, ao mesmo tempo em que fenómenos bizarros se introduzem em cenários prosaicos.

Os motivos borgeanos recorrentes do tempo, do infinito, da imortalidade e da perplexidade metafísica jamais se perdem na pura abstracção. Ao contrário, ganham imenso sumo no concreto das tramas, nas imagens, na sintaxe, que também são capazes de resgatar uma profunda sondagem do processo histórico argentino.

O livro abre com "O imortal", onde temos a típica descoberta de um manuscrito que relatará os dissabores da imortalidade. Fecha o livro com "O Aleph", que dá nome ao livro e para o qual Borges deu a seguinte explicação em 1970: "O que a eternidade é para o tempo, "O Aleph" é para o espaço".

A intenção de Borges é demonstrar que a literatura é uma prática incessante, ou seja, ela nunca se esgota, flui na direcção do infinito; esta, para ele, é a verdadeira forma de ser do ofício literário. Em seus contos pode-se dizer que a principal personagem é a literatura, portanto a sua escrita é basicamente meta linguística.

Os símbolos são uma espécie de assinatura de Borges, impressa em cada uma de suas criações. Assim, não é tanto com a razão que se mergulha em suas entrelinhas, mas sim com a esfera sensorial. Em "O Aleph", mais que em qualquer outra de suas obras, está presente o realismo fantástico, o qual é reconhecível pela busca constante da verosimilhança, elemento que também define o surrealismo.

Manuel Monteiro lê Charles Bukowski


Pedem-me um texto sobre um livro que ande a ler. Leio vários ao mesmo tempo e sinto que só consigo escrever sobre um que tenha lido até ao fim. (Quantas surpresas não nos reservam os livros ao virar de uma página). Proponho-me então escrever sobre o último livro de ficção que li. Lembro-me de Cardoso Pires responder a Lobo Antunes quando este lhe deu um original seu para ler: «Sei lá o que acho. Ainda só o li duas vezes.» Vou escrever sobre Pulp, que terminei de ler há poucos dias, e de caminho direi qualquer coisa sobre o seu autor, que tenho estudado ao longo de anos. Estou ensonado, mas o prazo está a terminar. Talvez as coisas saiam diferentes quando se escreve sob o manto do sono, penso. Talvez as defesas sejam menores. Talvez.

Bukoswki escreveu tanto quanto bebeu. Romances, contos, quilómetros de poesia, pequenos ensaios. Há muitas críticas justas que se podem fazer a Bukowski. A misoginia, os temas recorrentes (o álcool, o sexo, a solidão, a luta entre corpos masculinos, as corridas de cavalos), a aparente forma pouca cuidada da sua escrita. Mas Bukowski merece um lugar que não ocupa nas academias e nos cânones dos aclamados críticos literários. Quantos escritores conseguiram produzir boa prosa e boa poesia? Aquele que recusou o Nobel da Literatura, Sartre, disse sem medo que Bukoswki era o maior poeta vivo da América. E Bukowski continua a ser lido e admirado na sua prosa e nos seus contos.


Pulp, um livro «dedicado à má escrita», mantém as boas qualidades do escritor. Os diálogos extremamente reais, a escrita clara (Bukowski consegue o mais difícil: explicar algo humanamente complexo de modo simples), o humor (que neste livro é engraçadíssimo). O leitor habitual de Bukowski não estranhará. Mesmo a ficção científica não é novidade. Aquilo que mais me seduz em Bukowski é precisamente aquilo que elogiou em John Fante: não ter medo de expor as suas emoções. Balzac dizia que o homem verdadeiramente forte era aquele que não tinha medo de expor as suas fraquezas. Nesse ponto, Bukowski é mestre e mostra-se-nos em toda a sua esplendorosa podridão, sempre pontuada de gestos de humanidade, designadamente na sua relação com os deslocados da sociedade.

A personagem principal e narrador de Pulp, o detective Nick Belane, não se distingue muito do Henry Chinaski, alter ego de Bukowski. Diria que se lhe acrescenta uma preocupação com a morte, que no livro assume o corpo de uma personagem, a Senhora Morte, que não deixa escapar ninguém. Enquanto lia o livro, não pude deixar de considerar que o autor o terminara pouco meses antes de morrer.

São muito bem conseguidos os incidentes extravagantes e as personagens excêntricas no livro. Nick Belane tem casos estranhíssimos para resolver. Tem de encontrar o famosíssimo escritor Céline (sim, o real) que todos dão como morto, tem de encontro o Pardal Vermelho sobre o qual nada sabe a não ser que se chama Pardal Vermelho, tem de descobrir provas de adultério de um marido desconfiado, e ainda de conseguir que uma extraterrestre deixe de importunar um cidadão anódino.


Os ingredientes estão bem doseados. A irrisão, a ficção científica, o suspense, as reflexões existenciais com a estrutura clássica de policial a conseguir a difícil tarefa de sustentar tudo isso. Bukowski consegue manobrar muito bem a mescla entre ironia e o debate existencial, sem que o livro de forma alguma resulte desconchavado. Mesmo quando um capítulo só tem uma frase. Sublinho ainda a descrição dos bares de Hollywood (tão apelativa, que fiquei com vontade de lá ir sentir a atmosfera), os espantosos diálogos em que a manha de rua do detective o faz sempre ter a tirada certa na altura certa. Espantosa a forma como o detective Belane deslinda o mistério de Céline. Espantoso o diálogo de Belane com uma voz feminina de uma linha erótica. Belane, com o seu conhecimento da alma humana e dos meandros dos bas-fonds, a todos consegue levar a melhor. A todos menos àquela a que ninguém consegue dar a volta: a Senhora Morte.

Termino com excertos desses doces que o autor nos dá para (sor)rir e de chocolate preto sobre a condição humana para reflectir.

« – Nada de cheques carecas ou ponho-lhe os berlindes num saquinho, ouviu?»

« – Caro senhor – disse o Céline, olhando para ele –, se dá valor ao actual estado dos seus tomates, vá-se embora rapidamente.»

«Imaginemos que chegamos à conclusão de que tudo é absurdo, nesse caso o absurdo não pode ser completo pois nós estamos conscientes do absurdo e essa consciência do absurdo quase confere sentido a tudo.»

«Porque é que eu não podia ser simplesmente um tipo qualquer a ver um jogo de basebol? Interessado no resultado. Porque é que eu não podia ser um cozinheiro a mexer ovos e a fingir-se alheado? Porque é que eu não podia ser uma mosca no pulso de alguém, a rastejar com sublime interesse? Porque é que eu não podia ser um galo num galinheiro a debicar uma semente? Porquê isto?»

Manuel Monteiro
*Pulp é uma edição da Alfaguara

1º Parágrafo: Meia-Noite ou o Princípio do Mundo


EMBORA FOSSE UMA CRIANÇA de roupas esfarrapadas e sem maneiras, Daniel teve sempre um lugar especial no meu coração. Se a nossa vida em conjunto tivesse sido um romance de aventuras, ele teria continuado a praticar durante muitas horas, às luz da candeia, para se tornar, na última página, um grande e célebre escultor. Mas a vida, como o meu pai costumava dizer é, na melhor das hipóteses, um jogo da Papisa Joana jogado numa mesa viciada, com o jogador que dá as cartas a esconder as melhores nos folhos da manga. E, por isso, o meu amigo foi impedido de conseguir realizar essas maravilhas.


* Tradução Maria Dulce Guimarães da Costa

Toca a votar! Os adversários estão muito fortes!

Caros leitores, amigas e amigos...

Como podem ver, a discussão por um lugar na final está ao rubro.

Já sabem, mas repito: podem votar de 24 em 24 horas! Ou a partir de Ip's diferentes! Fica, mais uma vez, o endereço: http://aventar.eu/blogs-do-ano-2012/blogs-do-ano-2012-votacoes-1a-fase-24/

Ler y Criticar - 210 votos
BranMorrighran - 172 votos
Come chocolates, pequena! - 160 votos
Clube de Leitores - 151 votos
Ainda que os Amantes se Percam... - 137 votos*

 
 
*resultados às 13:42.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Se calhar não repararam... Mas vejo ali Fernando Pessoa!

Reconheço nesta fachada Jorge Luis Borges, Marcel Proust, Virginia Woolf, Spinoza... e digam-me se estou louco... ou não está ali o Pessoa?*

*actualização do post: (não é! É James Joyce!)

Só para partilhar este lugar de sonho. E fazer toda a publicidade do mundo à página do facebook Improbables Librairies, Improbables Bibliothèques. Porque me faz sonhar com uma viagem!


Merci à MAM GOZ
Uma livaria na Bélgica - Ptyx
Rue Lesbroussart à Ixelles, perto da place Flagey.

A minha vida de revisor

Há dez anos, trabalhava numa agência de comunicação que era simultaneamente uma editora de livros. Pediram-me para rever um livro. Descobri nessa altura o que era a maravilha concomitante de ler livros e poder viver materialmente disso. Era, contudo, um caminho perigoso para quem gostava de livros. Quando o objecto da nossa paixão se torna no objecto do nosso labor, a paixão perde o seu fogo. Ainda assim, há dez anos que venho executando este ofício, dando igualmente formação de Revisão de Textos na escola escreverescrever. Gosto de rever, gosto muito de ensinar e de aprender com os alunos, mas por vezes de tão mergulhado em livros pergunto-me se não deveria ter sido economista, psicólogo, político, gestor de um espaço cultural, actor, treinador de futebol, para que do contraste entre trabalho e lazer o livro me continuasse a incendiar sempre.



Ao longo destes anos, enriqueci-me muito com as revisões. Não vale a pena falar aqui da quantidade infinita de questões da língua que aprendi. O que pretendo registar é a quantidade de assuntos que fui obrigado a ler por ser revisor e que de outra forma não leria. Quase por acaso, e sem esforço, tornei-me «especialista» em livros de vampiros e lobisomens, em marketing e vendas, em certos tipos de esoterismo (como aquela senhora que comunicava com Jesus), em livros de auto-ajuda, em livros infanto-juvenis actuais que se vendem às carradas (perceber no fundo o que lêem as crianças e os adolescentes de hoje), em literatura erótica (ainda hoje não consigo expulsar da mente a imagem vívida daquele pintor ginecómano que aproveitou o cadáver ainda fresco da irmã para ter um prazer sexual superlativo). Sou também hoje mais moderado nos meus preconceitos literários quanto a catalogações. Em todos os livros, aprendi algo. Emerson dizia que cada homem que encontrava lhe era superior em alguma coisa e que nesse ponto aprendia com ele. O mesmo sucede com os livros. Nem que seja, digo-o sem ironia, a perceber que é importante ler livros maus para perceber enquanto escritor o que é mau e por que razões é mau.

Manuel Monteiro

*Clube de Leitores COM_vida Manuel Monteiro - este mês fazemos leitura conjunta do seu livro O Suave e o Negro

1º Parágrafo: O Último Cabalista de Lisboa


NO ANO DE 1494 DA ERA CRISTÃ, tinha eu oito anos, li a história dos íbis sagrados que tinham ajudado Moisés a atravessar um pântano etíope infestado de cobras. Com as tintas e corantes de meu tio Abraão desenhei um animal vermelho e negro com um bico em forma de foice. O meu tio pegou no desenho para o observar. “Olhos de prata?” – perguntou.


* Tradução de José Lima

a-ver-livros: consumismo literário e L.C. Neill

Onde se compram palavras novas
que as que tenho estão gastas?

* para conhecer mais da pintora norte-americana L.C. Neill
siga o link www.lcneill.com

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Janeiro traz-nos "O Suave e o Negro" de Manuel Monteiro


Alexandre meteu-se na política porque acreditava que podia mudar o mundo e salvar todos os infelizes  que  se cruzavam  com  ele. Inconscientemente  foi  isso  que  tentou  fazer  com  José,  um músico  incompreendido  por  todos  e  desequilibrado que viria a transformar-se na sua sombra. Alexandre deixou-se manipular e passou a viver  uma vida que não era a sua, preso a uma amizade doentia ancorada nas dívidas e amparada por um misto de culpa e compaixão. uma amizade pode ser  destrutiva  a  ponto  de  se  transformar  num vício? Pode.

Esta é leitura para este mês, "O Suave e o Negro" de Manuel Monteiro, nascido a 1978 e teve a  sua estreia literária no DN Jovem. Venceu diversos prémios literários, entre os quais o recente Novos talentos FNAC Literatura (2012). É autor do livro "Demanda ou a cor nunca vista" para além deste que acompanhamos este mês.

Sobre este livro Fernando Dacosta escreveu:

"Uma obra muito própria, bastante original e com uma invulgar energia criativa e comunicativa".

"A princípio tive alguma dificuldade em entrar no espírito da ficção mas depois fiquei agarrado por ela, achando-a uma notável obra literária. As personagens são muito fortes, os diálogos excelentes, a atmosfera criada fascinante, o que torna "O Suave e o Negro" uma obra muito própria, bastante original e com uma invulgar energia criativa e comunicativa".


Cronologia de um escritor

Os meus pais contam-me que quando tinha três anos só conseguia adormecer quando eles me liam histórias. A minha mãe diz-me que por vezes eu protestava: «A história não é assim. Já a tinhas lido antes e não é assim!» Explicar-me-ia mais tarde que, em certas noites, cansada, tentava abreviar e que eu a obrigava a lê-la tal qual estava no papel. O meu pai conta-me que eu adorava livros de pássaros e que só descansei quando os reconheci a todos pelo bico e pela plumagem. Parece que a seguir passei para as moedas. A literatura sempre foi para mim um suplemento de extra-realidade indispensável à vida.

Não consigo conceber a vida sem esses suplementos extras de realidade. E sempre vi na ficção um consolo, uma evasão sem a qual a vida seria tremendamente aborrecida. Claro que todos precisamos de escapismos, mas pessoalmente sempre vi na literatura o escape mais elevado – aquele que satisfazia a alma, que tangia qualquer coisa Transcendente. Como o corpo pede alimento e o alimento produz satisfação, o livro sempre me produziu a satisfação intelectual, a elevação do espírito. (Como é difícil comunicar estas coisas por palavras.)


Vivi o dia mais feliz da minha vida quando tinha sete anos. Lendo um livro de banda desenhada do Pato Donald, do Pateta, dos Irmãos Metralha, vi um concurso dos Sugus. Era preciso ordenar as vinhetas pela ordem certa e dar um título à história. Escrevi um título prolixo, enumerativo, que convocava as personagens e o acontecimento. Qualquer coisa como Os Meninos, o Não Sei Quantos, os Bombeiros e o Fogo (ou seria o Incêndio?).


Rapidamente, esqueci o assunto. Umas semanas mais tarde, ao sair para a escola com o meu pai, ele abre o correio e diz: «Esta carta é para ti.» Abri a carta. Não podia acreditar. O meu nome completo estava lá e eu fora premiado com um pequeno piano, ganhando o concurso. O meu nome estava ali, completo, e eu era digno de menção na próxima revista, eu era visível no mundo. Atingi a felicidade máxima que uma alma humana pode atingir. (E que, garanto-vos, não seria repetível nem com o Nobel.) Esse dia correu maravilhosamente, e essa semana e esse mês também. Havia uma nuvem mágica em cima da minha cabeça.


Desde esse dia, jurei que seria escritor.

Manuel Monteiro


1º Parágrafo: Goa ou o Guardião da Aurora


Prenderam-me em Novembro de 1591 e, durante quase onze meses, não falei a mais ninguém para além do guarda prisional. Nem fui informado das acusações que pendiam sobre mim nem autorizado a ler fosse o que fosse, e a minha janela, uma fenda mesquinha na pedra nua, estava tão alta que não me permitia espreitar para a cidade lá em baixo. A esperança agarrava-se às recordações de Tejal, e por vezes, também, ao tamborilar da chuva, a qual me lembrava que havia um mundo onde os meus carcereiros não tinham poder. Uma vez, durante uma tempestade, pus-me a lamber umas gotas que escorriam pela parede. Souberam-me ao Riacho do Moinho e, por uns instantes, os meus pensamentos chapinharam em toda a minha liberdade de criança, mas muitas vezes penso que acabaram por me trair; nessa mesma noite, Deus foi-me roubado, e, ao acordar, senti-me mais sozinho do que já alguma vez estivera, expulso do mundo sobre o qual ELE sempre velara. Nunca mais haveria de sentir os dedos dos meus pés afundarem-se na terra vermelha dos arrozais ou saber se Tejal dera à luz um rapaz ou uma menina.


* Tradução de Manuel Resende

a-ver-livros: o livro e Clay Hejl

Há um livro que ainda ninguém escreveu
entalado entre uma louça para lavar
e as novas tabelas de IRS
e a areia do gato que precisa
ser mudada

Há um livro e tem o poder
de conjurar sonho e tempo
nas esquinas da existência

* quadro do pintor texano Clay Hejl

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Poema à noitinha... O regresso de Valter Hugo Mãe com «o homem que já não sou»

Valter... entrarás sempre pela porta grande neste espaço...


o homem que já não sou

não me olhes agora que estou
mais velho e não correspondo em
nada ao homem que
amaste, procura encarar a tristeza
sem me incluíres, seria demasiado
cruel que me usasses para a
dor. para ti
quis trazer as coisas mais belas
e em tudo o que fiz pus o
cuidado meticuloso de quem
ama. não me obrigues a cortar os
pulsos quando fores num minuto ao
jardim com o cão

esta noite, sem notares, sustive a
respiração e quase morri. não deste
por nada. julgaste que voltei a
ressonar e até terás esboçado um
sorriso. e se eu pudesse morrer
enquanto sorris, pergunto

deixo para depois, ou talvez
desista. mas não pode ser se
tu me olhares em busca de tudo o que
já não existe. não pode ser, levo a
faca maior para debaixo do meu
travesseiro, juro-te que me
mato se continuares assim


*Valter Hugo Mãe, in contabilidade

Folhas de Erva de Walt Whitman - por Manuel Monteiro


Folhas de Erva é o livro que mais vezes releio. O livro de que sei mais excertos de cor (de coração).

Poemas que nunca me deixam cair na noite mais escura da alma quando estou em baixo.

Imagino como serias feliz se eu estivesse a teu lado e fosse teu companheiro,
Sê tão feliz como se eu estivesse contigo. (Não penses que não estou agora junto a ti.)

Poemas que me devolvem a gratidão ante a vida e o Universo e que brotam girassóis à minha volta.

Ter-se-á mostrado enciumada ou assassina
a raça humana, em relação a ti,
meu irmão, minha irmã?
Por ti lamento: não se mostra enciumada
ou assassina em relação a mim,
todos têm sido amáveis comigo,
[...]
Aurora após aurora atrás de mim
os fantasmas curvam-se
[...]
Por muito tempo, eu fui abraçado,
por muito e muito tempo.


Poemas que me tranquilizam quanto à multiplicidade de eus dentro do eu e de vidas dentro da vida.

Contradigo-me?

Muito bem, contradigo-me então

(Sou enorme, contenho multidões.)

Poemas que me serenam o ruído existencial.

Não há palavras que possam exprimir a paz que sinto em relação a Deus e à morte.

[...]

Vejo Deus em cada uma das vinte e quatro horas, em cada momento.
Nos rostos dos homens e mulheres vejo Deus, e no meu próprio rosto ao espelho.
Encontro cartas de Deus espalhadas pela rua, todas assinadas com o Seu nome,
E deixo-as onde estão, pois sei que onde quer que eu vá outras irão chegar pontualmente e sempre.

Harold Bloom escreveu que o Walt Whitman criado por Walt Whitman esmaga o super-homem Zaratustra. Jorge Luis Borges escreveu que, quando novo, Walt Whitman queria executar a impossível de tarefa de pintar uma tela que abrangesse todos os rostos humanos e que o mais incrível era que o tinha conseguido na sua poesia. O nome de Walt Whitman, para Borges, era Universo. Mas as palavras que mais bem expressam o que sinto são de Álvaro de Campos naquele que para mim é o seu melhor poema, Saudação a Walt Whitman:

Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,

Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos

Se Deus é Amor, Walt Whitman é Deus e o Diabo dançando o Amor.

Sou o poeta dos escravos e dos senhores dos escravos

Manuel Monteiro

*Clube de Leitores COM_vida Manuel Monteiro - este mês fazemos leitura conjunta do seu livro O Suave e o Negro

1º Parágrafo: Confundir a Cidade com o Mar


ESTAVA A VER UMAS REVISTAS na Biblioteca Pública de S. Francisco umas semanas atrás, e deparei com o comentário de um autor que dizia que todos os seus contos eram sobre um inocente incapaz de agir perante uma situação traumática. Na minha memória, vi um rapaz de sete anos, de franja loira e comprida. Estava gelado, de pé, diante de um homem magro metido num pijama azul e sentado numa cama de hospital. O homem tinha o rosto encovado e olhos tristes. As suas mãos esqueléticas saíam dos pulsos envoltos em gazes e ligaduras.


* Tradução de Daniela Carvalhal Garcia

a-ver-livros: almoço a preto, branco e Eduardo Schloesser

Preto
Branco
Pés
Nus
Livro
Sonho
Dia
Assim

* para conhecer mais da ilustração do brasileiro Eduardo Schloesser
siga o link eduardoschloesser.blogspot.pt