sábado, 5 de novembro de 2011

Os Erros

A imagem procura ser a antítese do belo poema de Sophia...


"A confusão a fraude os erros cometidos
A transparência perdida — o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos

Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso não esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?"

Gonçalo M. Tavares regressa em breve

Acabo de saber que chega às livrarias, muito em breve, novo livro de Gonçalo M. Tavares.

Desta vez, pela Relógio D'Água - onde já tem publicado 4 livros.


Em «Canções Mexicanas», Gonçalo M. Tavares apresenta-nos uma série de fragmentos narrativos de clara nitidez. É a sua visão da actual Cidade do México, uma megalópole de 20 milhões de habitantes, com loucos que se manifestam, lutas de raparigas ainda crianças e suicidas, seres para quem o sentimento europeu de procura de felicidade é algo de incompreensível.
É uma escrita, como em todos os seus livros, avessa às tradições líricas e sentimentais da prosa portuguesa.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Rendição

Por alguma razão a minha alma continua a pairar pela Polónia. Por alguma razão foi parar a um livro que comprei há séculos na Poesia Incompleta por sugestão do livreiro e, atirado para uma pilha, nunca tinha aberto. Por alguma razão descubro apenas depois de terminar de lê-lo que o nome que nunca cheguei a tentar pronunciar é o de uma autora octogenária que, apesar de ter uma obra de não mais de 250 poemas no total, recebeu em 1996 o Nobel da Literatura.

Calhando, soubesse eu antecipadamente que iria folhear "Instante", de Wislawa Szymborska, não teria entrado no livro com o interesse displicente com que o fiz. Calhando, não teria sido tão intensa a surpresa. Calhando, não me teria rendido assim às suas palavras.


Neste dia cinzento e molhado, deixo aqui um dos seus poemas. Se não estiverem reunidas as circunstâncias para o lerem agora, guardem-no para mais logo.
A poesia não tem prazo de validade.


"Contributo Para as Estatísticas"


Em cem pessoas,

sabedoras de tudo melhor -
cinquenta e duas;


inseguras de cada passo -
quase todo o resto;

prontas para ajudar,
desde que não demore muito -
quarenta e nove;


sempre boas,

porque não conseguem ser de outra forma -

quatro, talvez cinco;


dispostas a admirar sem inveja -
dezoito;

constantemente receosas
de algo ou alguém -
setenta e sete;

aptas para a felicidade -
vinte e tal, quando muito;


individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras -

mais de metade, com certeza;

cruéis,

por força das circunstâncias -

é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;


com trancas na porta depois da casa roubada -
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;

não levando nada da vida a não ser coisas -
quarenta,

embora preferisse estar enganada;


agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro -

oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;


dignas de compaixão -

noventa e nove;


mortais -

cem em cem.

Número, até agora, não sujeito a alterações.



* Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, para a Relógio d'Água

O Assombro da Incoerência do Nosso Ser

Palavras de Raul Brandão.

"Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la. Não afirmo nem nego. Há muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer - desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio deste mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a quimera nos levam a resoluções definitivas.

O papel dos doidos é de primeira importância neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigi-lo e canalizá-lo... Também entendo que é tão difícil asseverar a exactidão dum facto como julgar um homem com justiça.


Todos os dias mudamos de opinião. Todos os dias somos empurrados para léguas de distância por uma coisa frenética, que nos leva não sei para onde. Sucede sempre que, passados meses sobre o que escrevo - eu próprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço...

É por isso que não condeno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim próprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo - para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto, isto de ter opiniões não é fácil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erróneas."

Eu li assim "Maldito Karma"

Maldito Karma é um livro de leitura fácil e corrida. Não pretende ser um hino a qualquer tipo de linguagem erudita ou uma narrativa carregada de exagerados estilismos. É uma história simples e objectiva.

O segredo desta aventura? Se pudesse resumir tudo numa palavra, facilmente elegeria "humor".

É esta a principal arma do romance e da sua personagem central: uma conhecida cara da televisão alemã. O tema é a reencarnação. Kim Karlsen deixa o mundo dos vivos cheia de pecados e maus comportamentos. E reencarna numa formiga. Depois vai reencarnando em outros animais (com avanços e recuos, ou melhor dizendo "processos de adaptação e aprendizagem"), subindo de escala sempre que acumula (na presente vida e no animal em que encarna) bom Karma. Assim vai trepando até se tornar, novamente, humana. Mesmo que o seu corpo nada tenha a ver com a jovem e sensual mulher que tinha sido várias vidas antes...

O objectivo? Corrigir o passado e estar próxima do seu ex-marido e filha. No entanto, nada parece ser fácil, porque o marido (já depois de refeito o luto) junta-se à sua melhor amiga.

A história anda em torno destas questões: será que Kim consegue transmitir às pessoas que ama - as da sua primeira vida - que ela é, de facto, a gloriosa estrela de televisão? Que é mãe e mulher dos que deixou? Prova que mudou radicalmente os seus comportamentos mais incorrectos e é hoje uma pessoa diferente?

Dúvidas que deixo para as vossas leituras. Os tópicos estão lançados, contar mais pormenores seria explicar o livro todo.


Há um aspecto que não gostei. É a reprodução de trechos em que a personagem se vê obrigada a cantar músicas. Isto acontece sempre que Kim tenta revelar quem é (ou foi) às pessoas que conhece. A tradução adapta conhecidas canções populares portuguesas - acho que seria preferível manter as que o autor escolheu originalmente e deixar uma nota de tradução.

Maldito Karma é um livro que aconselho a pessoas de bom humor. Mas também àquelas que querem tratar maus feitios. Trata da morte e do que o autor imagina existir depois dela. Sempre com ligeireza e grandes peripécias, num clima constante de aventura. Não sendo um livro extraordinário, tem o dom de entreter e fazer soltar umas risadas. Confesso que, por alguns momentos, nem queria acreditar nas asneiras e alhadas em que a personagem se metia. Tem pensamentos arquitectonicamente carregados de boa disposição.

Cuidado! Se estivermos a ler este livro num transporte público, facilmente seremos olhados de lado por estarmos a rir sozinhos.

Esta foi a leitura conjunta do mês de Outubro. Resta-me agradecer ao Diogo Martins que trouxe a proposta até nós. Bastante descontraída e, creio, mesmo ao estilo dele.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

a-ver-livros: Marilyn Hepburn Nowicka

Entrar num livraria, algures em Varsóvia, 2008. Aproveitar para tomar um café enquanto se folheia um volume. E, de repente, pairando mesmo ali, numa ilustração tamanho mural, Marilyn. Sim, a loira Monroe. Com um livro na mão.

O primeiro pensamento vai direitinho para o estereótipo. Mas depois ocorre que as biografias garantem que Norma Jean tinha um quociente de inteligência de 168. E não pode ter sido inteiramente por acaso que foi casada com o dramaturgo Arthur Miller. E que há imensas fotos suas a ler. A ler Joyce. A ler Whitman. A ler o ex.

Lança-se o olhar noutra direcção e surge Audrey. A morena Hepburn, pois. Também ela de livro na mão, ali, numa livraria polaca. Que surpresa.

E a mente faz o mesmo retrocesso ao registo fotográfico. Lembra ainda que um dia ela afirmou: “Para ser honesta tenho que dizer que ainda leio contos de fadas e gosto da maioria”. A mente é danada. Vá lá saber-se porquê, recorda até que Marylin cantou os parabéns a Kennedy em 1962 e Hepburn fez o mesmo em 1963, no que seria o último aniversário dele. Algo que não interessa nada para o caso.

O que interessa são as ilustrações. Há mais uma, um mural um pouco maior, chama-se “Leitores”. Está mesmo ali ao lado do balcão, junto da mesa com as cadeiras vermelhas. Os três são assinados por Agata Nowicka, uma reputada ilustradora polaca, que já contribuiu até para a “New Yorker” e o “New York Times”. Sobre si mesma, ela é sucinta: “Desenho, ilustro, faço direcção de arte, tomo conta [nota: da filha pequena, Mila], fico frustrada, aborreço-me, vou sair, dou umas gargalhadas, olho e aprendo”.

Acho que diz mais uma mão cheia de coisas interessantes (ou talvez não), mas está em polaco. Que se lixe. Volto a ver as imagens antes de ir terminar o dia de hoje com um livro propriamente dito nas mãos.

https://www.facebook.com/pages/Agata-Endo-Nowicka/183581441667829?sk=wall

http://www.agatanowicka.com/

L'Art Français De La Guerre ganha o Prémio Goncourt


"Alexis Jenni, revelação da rentrée literária deste ano em França, recebeu o Prémio Goncourt pelo livro "L’Art français de la guerre", publicado pela Gallimard. Jenni, de 48 anos, é um professor de biologia de Lyon até agora desconhecido no mundo das letras.", informa o jornal Público.

"Há muito tempo que Alexis Jenni escrevia “por prazer”, mas só este ano é que lançou o seu primeiro livro, um romance que se passa na Indochina e na Argélia. O autor chama-lhe “a guerra de vinte anos”, período que vai de 1940 até à independência da Argélia, passando pela guerra na Indochina. A France Presse descreve-o como um fresco de 630 páginas, uma epopeia que “evoca a omnipresença dos vinte anos de guerras coloniais nos espíritos de hoje” e “questiona a identidade nacional” francesa."


O livro ainda não tem tradução. Foi publicado pela Gallimard e é um romance de estreia. Para quem dominar bem o francês, eis a sinopse:

«J'allais mal ; tout va mal ; j'attendais la fin. Quand j'ai rencontré Victorien Salagnon, il ne pouvait être pire, il l'avait faite la guerre de vingt ans qui nous obsède, qui n'arrive pas à finir, il avait parcouru le monde avec sa bande armée, il devait avoir du sang jusqu'aux coudes. Mais il m'a appris à peindre. Il devait être le seul peintre de toute l'armée coloniale, mais là-bas on ne faisait pas attention à ces détails. Il m'apprit à peindre, et en échange je lui écrivis son histoire. Il dit, et je pus montrer, et je vis le fleuve de sang qui traverse ma ville si paisible, je vis l'art français de la guerre qui ne change pas, et je vis l'émeute qui vient toujours pour les mêmes raisons, des raisons françaises qui ne changent pas. Victorien Salagnon me rendit le temps tout entier, à travers la guerre qui hante notre langue. » Alexis Jenni. « L'armée en France est un sujet qui fâche. On ne sait pas quoi penser de ces types, et surtout pas quoi en faire. L'armée en France est muette, elle obéit ostensiblement au chef des armées, ce civil élu qui n'y connaît rien, qui s'occupe de tout et la laisse faire ce qu'elle veut. Ces militaires on les préfère à l'écart, entre eux dans leurs bases fermées de la France du Sud, ou alors à parcourir le monde pour surveiller les miettes de l'Empire. On préfère qu'ils soient loin, qu'ils soient invisibles ; qu'ils ne nous concernent pas. On préfère qu'ils laissent aller leur violence ailleurs, dans ces territoires très éloignés peuplés de gens si peu semblables à nous que ce sont à peine des gens.»

Livros que deram filme: O Nome da Rosa, Umberto Eco


"Um estudioso descobre casualmente a tradução francesa de um manuscrito do século XIV: o autor é um monge beneditino alemão, Adso de Melk, que narra, já em idade avançada, uma perturbante aventura da sua adolescência, vivida ao lado de um franciscano inglês, Guilherme de Baskerville.

Estamos em 1327. Numa abadia beneditina reúnem-se os teólogos de João XXII e os do Imperador. O objecto da discussão é a pregação dos Franciscanos, que chamam a igreja à pobreza evangélica e, implicitamente, à renúncia ao poder temporal.

Guilherme de Baskerville, tendo chegado com Adso pouco antes das duas delegações, encontra-se subitamente envolvido numa verdadeira história policial. Um monge morreu misteriosamente, mas este é apenas o primeiro dos sete cadáveres que irão transtornar a comunidade durante sete dias. Guilherme recebe o encargo de investigar esses prováveis crimes. O encontro entre os teólogos fracassa, mas não a investigação do nosso Sherlock Holmes da Idade Média, atento decifrador de sinais, que através de uma série de descobertas extraordinárias, conseguira no final encontrar o culpado nos labirintos da Biblioteca."



Dirigido por Jean-Jacques Annaud e com Sean Connery como principal protagonista.

Em Portugal, de momento, este livro está esgotado. A editora que o publicou - Difel - já não está no mercado.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Amor é um Prémio sem Mérito - Milan Kundera

Quem concorda com Milan Kundera?


"O amor é, por definição, um prémio sem mérito. Se uma mulher me diz: eu amo-te porque tu és inteligente, porque és uma pessoa decente, porque me dás presentes, porque não andas atrás de outras mulheres, porque sabes cozinhar, então eu fico desapontado. É muito melhor ouvir: eu sou louca por ti embora nem sejas inteligente nem uma pessoa decente, embora sejas um mentiroso, um egoísta e um canalha."

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

despido por um outono - Nuno Guimarães

Não é a primeira vez que Nuno Guimarães vem a este blogue. Mas desta forma nunca tinha sido apresentado.

Um dia D com cheiro a goiaba


Nesta noite em que (ainda mais que noutras) esperamos o macabro, e que as abóboras iluminem o negrume de um futuro que se diz frio e magro, regresso da minha ausência impelida a transformar, também aqui, este 'doomsday' numa festa lusófona.

Há cento e nove anos, nascia Carlos Drummond de Andrade.
No Brasil, hoje, tenta-se que esta seja uma data de comemoração nacional, equiparável à Irlandesa celebração de Joyce.
Há muitos anos atrás, parece que ele adivinhou que ausentar-se não era, afinal, partir de vez.

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"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim."

Apetece-me sushi

"To love somebody
Who doesn't love you

Is like going to a temple
And worshipping the behind

Of a wooden statue
Of a hungry devil."


Lady Kasa (poetisa do século XVIII)
in "Love Poems From the Japanese" Shambala Pocket Classics


Ou arriscando uma tradução minha:

'Amar alguém
Que não nos ama

É como ir ao templo

Adorar a traseira
De uma estátua de madeira
De um diabo faminto.'

Há crise nos livros?

Gasta-se tinta atrás de tinta com a crise dos livros e das livrarias. Os mais catastróficos já o enterraram. Apontam datas e sabem perfeitamente o dia em que os livros vão acabar... Pelo menos em papel.

Há estudos que revelam que se leu menos este ano devido à crise. Mas impõe-se uma reflexão: então os portugueses já não lêem pouco?

Tenho imensa pena quando vejo desaparecer do mercado mais uma editora ou acompanho - sempre por fontes não oficiais - as dificuldades de algumas.

Mas o desaparecimento e a concentração de grupos editoriais não explicam os dados desta notícia:

Avança o jornal Público: "Num país onde se editam 55 livros por dia (este número refere-se ao ano passado), compramos mais livros em Julho, para ler nas férias, e durante o período que antecede o Natal. Em Outubro, também há um pico de compra de material de apoio escolar (dicionários, gramáticas, etc)."

Acrescenta: "No primeiro semestre de 2011 os portugueses compraram menos livros do que no mesmo período de 2010. A descida no consumo foi de 3%..."


O que pergunto é: alguém me explica a crise? Parece-me estranho que um país com 10 milhões de habitantes e onde existe (infelizmente) uma enorme taxa de analfabetismo, um país onde a maioria da população só lê o jornal desportivo ou a revista e não compra um único livro por ano; haja tanta gente a falar da crise dos livros e de vendas...

Estranho é, talvez, que se editem 55 livros por dia! Se tivéssemos dez vezes mais pessoas e mais uns milhões de leitores (não daqueles que carregam o livro até à praia, mas dos verdadeiros); então sim acho que se justificava. Mas assim... por favor!

Podem perfeitamente dizer-me que os livros são caros. São, é verdade. Comparados com os outros países, são muito caros. Mas não está na altura de procurarmos bons livros a preços acessíveis? Há tantos e tantos nas livrarias. E de grande qualidade! Mas nem quero seguir muito o caminho dos preços. Porque sei que os verdadeiros amantes das letras podem ser capazes de sacrificar muitas outras coisas só para acrescentarem mais um exemplar às suas vidas.

Talvez a crise não esteja do lado das vendas de livros... Mas na quantidade dos que se editam. Acham mesmo que este valor se ajusta à nossa realidade? Muitos destes livros não serão apenas lixo comercial? Não valerá a pena parar para pensar nisto?

domingo, 30 de outubro de 2011

a-ver-livros: Pois, Picasso...

Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso nasceu em Málaga, Espanha, somou por estes últimos dias de Outubro 130 anos. Um homem genial que amava ao quilo, pintava a metro e era especializado em variações ao tema.

Sim, como mulheres a ler. E mais não digo.


A Secreta Viagem, David Mourão-Ferreira

Flutuemos nas palavras de David Mourão-Ferreira.


A Secreta Viagem

"No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!"