sábado, 24 de janeiro de 2015

Sem razão as árvores levantaram voo, aparente.

Das raízes fizeram hélice e pisgaram-se da mesma pasmaceira.
O solo ficou desfeito, desfez-se. Virou-se, quase do avesso, sozinho, pasmou-se. O pessoal, sôfrego, por pouco resistiu àquele tormento. Pais filhos ricos e analfabetos saíram à rua. Os olhos queimaram-lhes a perceção e foi dia de ignorância. Tinham perdido as árvores. Toda a gente tinha perdido as árvores. As Marias começaram a calcular no futuro. A salada de frutas tinha fim anunciado e o último São Martinho tinha sido mesmo o último.
A vida, calma, pôs-se difícil.
Em altura certa, para espanto de vários e esperança chegada, o céu começou a ganhar tons esverdeados. Esse verde foi-se alastrando e alastrando e alastrando e ao fim de um mês era telhado composto de toda a casa. Foi sufoco que gerou muita especulação. Nunca se tinha visto as árvores abalarem e era a primeira vez que o céu mudava de cor. Estudiosos tomaram-no como tese de doutoramento, intelectuais reuniram-se em mesas redondas e discutiram sem conclusão e as velhas a dizerem que era bruxedo, as velhas a dizerem que era bruxedo. Isso é obra do Diabo, menino.
Chegou Novembro e para sair à rua só de capacete. Começou a chover antemanhã. Era uma chuva feia, chuva de bagas malcriadas que cansava a impaciência. Bagas verdes e bagas pretas, bagas roliças do mesmo tamanho. Caíam que nem balas. Atingiam o solo com velocidade estonteante e não mostravam perdão aos que se apresentavam de careca desagasalhada.
Novembro passou-se mas Dezembro trouxe a mesma canção. O pessoal começou, por cima, a andar-lhes. Antes, amedrontados, evitavam-nas. Faziam jogos de slalom e quase conseguiam entrar na mercearia e comprar quilo e meio de batata sem esborrachar nenhuma. Mas agora essas marotas tinham virado inúmeras e já não havia passeio abandonado. E que espanto não foi quando esse susto começou a desfazer-se e a verter um líquido mais ou menos lembrado. Homens e mulheres acorreram com bidons e o Zé da construção ajudou com uma retroescavadora. Azeite, pelo menos, no Natal, não faltou.

Gonçalo Naves


Foto tirada daqui: http://vilaclub.vilamulher.com.br/blog/outros/reflexao-introspectivapassaro-ou-arvore-9-5245767-324170-pfi-fernandatomaz.html

a-ver-livros: acertos

Do conflito se extrai 
o acerto do caos
do sangue
o beijo
do rasgão
o eterno ajuste das velas
na dissonância
a harmonia
no teu grito 
o meu peito
opostos os cantos
encontram-se nos meios
com que se chega
aos fins

Ana Almeida

* para saber mais sobre Rosa Comelles
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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

In Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai


Sinto que se abusa da realidade. Alguém parece estar continuamente a trazer pelas linhas de caminho-de-ferro carregamentos gigantescos de realidade, como se esta tivesse mesmo um peso, fosse feita de um material concreto, e alguém, uma instituição de origem e fins desconhecidos, estivesse encarregado de manter os fornecimentos.

Já temos vencedores! Passatempo Bai'má Benda


Parabéns Clara Amorim e Ana Paula Oliveira, são as vencedoras do passatempo «Bai'má Benda». Cada uma vai receber 1 exemplar do calendário!

O que têm que fazer agora? Contactar o blog para sabermos a vossa morada! Procurem-nos no facebook (na página ou no grupo) ou enviem email para: blogueclubedeleitores@gmail.com

O que se pedia era relativamente simples, responder ao seguinte - Se pudesse criar um 13º mês, que nome lhe dava, em que posição do ano o colocava e que acontecimentos importantes teria como feriados, celebrações ou eventos? Porquê?

E estas são as respostas vencedoras, com grande mérito. Parabéns!

Clara Amorim: 

Um 13.º mês?
Pois bem... Chamar-lhe-ia Joker (31 dias, claro!). Poderíamos acrescentá-lo à nossa vida um vez por ano quando bem o entendêssemos... Apenas para o "dolce far niente"!!! Ou para colocar a nossa vida em dia - livros (muitos livros!!!), amigos, música, viagens... Todos os dias seriam uma enorme e festiva celebração!!!

Ana Paula Oliveira:

Mais um mês? Essa é que é essa! Chamar-se-ia veraneio, viria depois de agosto.

Agosto, mês de férias, é uma canseira! Fazer malas, desfazer malas, fazer lanches, partir para a praia, limpar lancheiras, sacudir areia, tropeçar nos pés dos banhistas, ouvir arautos a apregoar olh’á bolinha, olh’ó gelado, esperar horas intermináveis nos aeroportos, gastar horas nos aviões, comer quilómetros sentados num carro, praguejar enquanto se busca um buraquinho onde o deixar, gastar a paciência nas filas dos museus, sofrer à espera de uma mesita nos cafés e restaurantes, andar de um lado para o outro, romper solas, cansar pés. Uf! Não há tempo para relaxar!

Pior! Entra setembro e, cansados, mesmo antes de terem lavado a roupa suja das férias, todos regressam ao trabalho a precisar de férias! Trabalhar cansados não é produtivo, convenhamos!

Ora aí está! Antes de setembro, depois de agosto, com todo o gosto, viria veraneio. É preciso um mês para parar. Para apreciar. Para olhar e ver. Para sentir. Para respirar. Para meditar. Para conversar. Para ler devagar.

Neste mês, todos os dias seriam domingo. E todos teriam sol. E todas as pessoas teriam de fazer um ritual: rir, gargalhar. E celebrar a vida! 

*O vencedor terá que enviar-nos a sua morada. Em caso de não o fizer, o Clube atribuirá o livro a outro(a) finalista. Fique atento!

Foto frase do dia: C.S. Lewis

Foto frase do dia: William E. Gladstone, ex primeiro ministo

Poesia em matéria fria: Chacal

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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações


Meu querido José

Envio-lhe um texto antigo, de há mil anos, quando a moda eram certos tipos de bigodes rebeldes e cabeleiras psicadélicas.
Perguntar-me-á se quem escreve sou eu. É claro que não, jovem frenético. A mão é a mesma, mas o escritor é outro. O Gonçalo de então acreditava em ideias esfumaçadas, de neblina metafísica e outras tontices que tal.
Dei, por acaso, com este texto, num dos meus arquivos. Melhor dizendo, foi Efraim que, ontem de tarde, enquanto organizava as pastas se apercebeu de uma folha solta e aparentemente perdida entre a correspondência de Cesariny e uns escritos a propósito dos Floyd! Efraim, risonho, com a folha na mão, luminoso como um Alexandre, diz-me, oh Viana de Sousa, que texto trrrriunfalll! Manda-o para o jovem José, que o vai lerrrrrr como um tesourrrro! Pois bem, aqui vai ele, seguido de uma larrrrrrrgo, liberrrrral e não moscovita garrrrgalhada.
Caso queira engavetar este texto ( o José e a sua mania de engavetar textos e classificar tudo. Já não bastam as gavetas das meias e das gravatas! Deixe o Aristóteles em paz, na sua filosófica e marmórea mudez), atire-o para a secção dos "Escritos Iniciáticos" dos ácidos e toda essa parafernália aos olhos de hoje quase mitológica!
Muito seu.

Gonçalo V. de Sousa.



Consigo ouvir as sinetas e as silhuetas oitocentistas de milhares de corpos suados e usados, martelando emoções de natureza humana. O fraque da elegância revira os olhos perante o pó e a sujidade de um mineiro irlandês exilado em Paris. Os automóveis rugindo, rangendo, roendo o macadame, malucos! Os leões dançando malabarismos de bola de circo vitoriano. Os espadachins de sistemas dançando quadrilhas de fumo com sua excelência, o verme capital.
Caem no fundo sem poço, meu menino. Eles caem num poço sem fundo, sem problemas. Os ciprestes da cor da morte. Malucos aqueles que têm medo da vida mundana, movimentada e cosmopolita da solidão. Bem-aventurados os julgados do coração, sua excelência o verme. Quem sois vós para virdes falar de joelhos à minha muralha inexpugnável? Touristes de sensações e de prestidigitações de tempos passados!
Ah, as Longínquas Sensações Distorcidas saltitando opacamente pelas veias e pelas cartilagens que neste momento parecem ser as minhas. Fosse a vida tão simples como este momento fora e ao lado do tempo e do ciciar diário.
Somos crianças perdidas no tempo, acolhidas pelo lado negro da lua. Mas a lua não tem lado negro. Somos húmidos, profundos e negros. Sorrisos de plástico que escondem abismos inóspitos por dentro. Betão de esmalte esbranquiçado num grito roxo e amarelo. Somos cores e luzes. Somos um castanho líquido esmaecido pela chuva aguda de uma tarde surda. Múltiplas sensações refundidas.
Sensíveis e hipócritas como o solo de uma guitarra descontrolada, impaciente, nervosa, inconsciente, esguedelhada, frenética, suada, eufórica cansada exausta sem respirar sem uma única pausa porque respirar é ceder aos deuses do Olimpo porque respirar é petrificar o tempo. O Tempo.
Meu tio Francisco tocava instrumentos cardíacos de forma platónica. Pederasta e pedante, o Xicó chateava de tão elegante e conhecedor das anfetaminas que, por uma noite, nos tornavam deuses, teólogos e reis. O efeito verde da tempestade transformava-nos em pequenos Cristos que percorriam, descalços, as jerusalens da memória, onde nos chicoteávamos e crucificávamos com a inclemência que nenhuma água poderia jamais lavar. Fizemos de Pôncio Pilatos um baixista descontrolado e de Barrabás um impetuoso baterista. Maria Madalena e João, o predilecto, tocavam guitarra e teclas, não respectivamente, ao som cardíaco das primeiras folhas e das primeiras aragens.
Paisagens crísticas e bíblicas sempre foram o forte da farmácia de meu tio Xicó.
Mas houve um súbito corte no ritmo da banda. As teclas recomeçam com um ímpeto que nenhum César ousaria conquistar, que nenhum Rembrandt teria a audácia de pintar, ainda que por fora, mentindo por dentro.
Vês o homem voador, menino? Vês como ele voa, num céu líquido e navegador?
Longínquas Sensações Distorcidas. Latitudes Superiormente Deformadas.
O que é o paraíso senão o tempo que deitamos fora em cada escarrar metafísico? Personagens de romances que nunca li cumprimentam pessoas de carne. Ritmos que nunca ouvi saltitam por entre uns dedos que parecem os meus. Pulsão sexual reprimida? Desejo nefasto de imortalidade?
O som existindo como uma maldição esdrúxula. Sempre gostei do esdrúxulo da palavra esdrúxula. Sentimentos esdrúxulos são como paixões adúlteras lidas em alcovas de um verde envergonhado, em quartos de pensões Realistas. O som é uma criança brincando com a ampulheta dos deuses, jogo do mundo de cócoras, pó aristotélico das montanhas encarnadas. A Luz muda e surda de água. Luz.
Dou à luz o silêncio e o arco-íris do fingimento, menino. O céu é um parque de diversões colorido, múltiplo, fragmentado, espelhado.
O chão esvai-se, não em sangue, mas em sensações.
A realidade é como um sino dividido por uma voz genialmente robótica.
O que é a realidade? O que é certo? O que é errado?
O que é a mentira e a verdade? Loucos e vagabundos só se diferenciam pelo perfume, não pelos gestos.

Entre o genial e a loucura existe a distância de um comprimido. 

Londres, 15 de Agosto de 1970

a-ver-livros: ânsia

Quanta alegria se guarda
num botão de magnólia
à beira do passo que a esperança arrisca
que a hora há-de chegar
de florir

Quantos pensamentos deambulam 
e simulam e não serenam
na espera
do momento que apazigua 
a ânsia
Quantos minutos durará
a felicidade? 

Ana Almeida

* para saber mais sobre a ilustradora norte-americana Penelope Dullaghan
siga o link http://penelopeillustration.com/

Foto frase do dia: Borges

In O Raio Sobre o Lápis


Negro brilhando arrastava consigo o nosso olhar, por necessidade física de o vermos ser cão; nunca um cão a fazer o seu trabalho fora um tão minucioso movimento em espirais e volutas; fazia redemoinhar o centro do lugar onde estávamos arrastando consigo instrumentos de música e nascimentos; era uma forma correspondente ao branco potencial dos cordeiros que o tratavam respeitosamente por vós; nas águas frequentemente tão estagnadas do afecto, eles faziam variar as rotações mil vezes por unidade de salto.

Era um rebanho, Aramis?, era um agregado de estrelas luminosas vistas pelo lado baço da lã?, era a nossa constelação reanimando-se e, num esforço dos seus músculos, pousando, confidencialmente, a sua configuração na serra de Ossa?

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

ELA,

Lembro-me, lembro-me da primeira vez que reparei em ti. Foste ao quadro resolver aquele exercício que mais ninguém conseguia e todos olhámos para ti não podia ser verdade não podias conseguir.
Lembro-me quando fomos almoçar juntos. Falavas pouco mas não precisava que falasses porque bastava-me olhar-te. Bebeste água porque sumos fazem mal à saúde, disseste.
Lembro-me de ficares no alpendre depois do jantar. Ficavas lá a sentir a noite e eu cá dentro com a lareira acesa esperava que viesses mas tu nunca vinhas porque entre mim e a noite preferias a noite.
Lembro-me de chegares a casa depois do trabalho e deixares a mala cair no chão. Atiravas-te para o sofá como uma criança e rias rias muito.
Lembro-me de notar que havia alguma coisa genial em ti. Talvez fosse o cabelo ou a pele não sei. Ou os abraços e a cintura ainda hoje não tenho a certeza não posso ter.
Lembro-me de te ver estudar. Sempre foste mais trabalhadora sempre trabalhaste mais que as outras e por isso é que te escolhi eras sensual com óculos.
Lembro-me de achar que tinhas o sorriso grande demais. Abrias muito a boca e às vezes achava feio mas tu não te importavas e ainda a abrias mais para me provocares e rias rias muito ríamos muito.
Lembro-me de todos os dias me lembrar da promessa que nunca te fiz. Tu pediste mas eu não fui capaz porque achava que promessas eram desnecessárias e que vivias bem sem elas tal como eu sempre vivi.
Não me lembro da última vez que te vi. Foste e levaste a minha memória levaste-a contigo. Já nem nome tenho porque o roubaste e nem me lembro da última vez que te vi não me lembro juro que me quero lembrar mas não consigo.

Gonçalo Naves

Foto retirada daqui: http://www.robsonpiresxerife.com/notas/velhinhos-curtindo-praia-de-nudismo-o-amor-e-lindo-nao-e-nao-tem-idade/

Kafka - «Pequena Fábula»

Pequena Fábula

«Ai de mim», disse o rato, «o mundo está a ficar mais pequeno a cada dia que passa. A princípio, era tão grande que tive medo e corri, corri até que, por fim, fiquei feliz ao ver aparecer muros lá longe, à direita e à esquerda, mas estes longos muros correram tão depressa ao encontro um do outro que agora já me encontro na última câmara, e ali no canto está a armadilha na qual terei de cair.»

«Só tens de mudar de direcção», disse o gato, e comeu-o.


*Pequena Fábula é um conto publicado por Franz Kafka. A edição portuguesa tem o título O Abutre e Outras Histórias e é da Estrofes & Versos

Poesia em matéria fria: Cesariny

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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

naperão


olho o naperão sobre
mesa de pinho
como se um coração sepultado
no tronco
de uma árvore dentro
da floresta mais inacessível
quantos nós
debruou entre o linho
quantas vozes
a seiva fendeu na casca
de lágrimas inaudíveis
as mãos que o teceram
desmaiaram sobre o peito
raízes votadas
ao leito
a que tudo é silêncio
e veio.

Helder Magalhães



(Fotografia: Two Sisters, Laura Makabresku)

É do borogodó: a linha e o linho

É a sua vida que eu quero bordar na minha
Como se eu fosse o pano e você fosse a linha
E a agulha do real nas mãos da fantasia
Fosse bordando ponto a ponto nosso dia-a-dia
E fosse aparecendo aos poucos nosso amor
Os nossos sentimentos loucos, nosso amor
O zig-zag do tormento, as cores da alegria
A curva generosa da compreensão
Formando a pétala da rosa, da paixão
A sua vida o meu caminho, nosso amor
Você a linha e eu o linho, nosso amor
Nossa colcha de cama, nossa toalha de mesa
Reproduzidos no bordado
A casa, a estrada, a correnteza
O sol, a ave, a árvore, o ninho da beleza
- Gilberto Gil
 

* A Linha e o Linho é inspirado na letra da canção homônima, escrita por Gil para homenagear Flora, ela faz parte do álbum Extra, lançado em 1983. Trata-se de um livro de ilustrações feitas como se fossem bordados, feitas pela bordadeira Marcela Fernandes de Carvalho, que criou oito desenhos para ilustrar cada verso da canção.

Nesta postagem, a fotografia que ilustra a canção é uma reprodução dos famosos lenços dos namorados, criados em Cidades como Viana do Castelo, Portugal. Os lenços integram uma tradição do bordado português.

Penélope Martins


Bai'má Benda - Mais bale num ir...


Mais bale num ir...
.
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Foto frase do dia: Murakami


segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Apresentação...

O meu nome é Sandro Figueiredo Pires e, a partir desta semana, irei publicar entre a segunda-feira e (raramente e de forma pontual) à terça-feira um post neste Blogue, o "Clube de Leitores", sobre crítica literária e de forma ocasional o mesmo também terá artigos sobre autores e a análise da sua obra ou alguma eventual entrevista que lhes faça. Sou consultor financeiro em projetos de energias renováveis, formador e autor. Considero-me um social-democrata, ecologista e federalista europeu, e milito no Partido Socialista, na Secção do Ambiente e Território do PS e também na Secção de São Domingos de Rana do Concelho de Cascais, mas considero-me um militante base que gosta de participar. Tenho outras atividades como o ativismo ecológico e a Maçonaria e nesta pertenço orgulhosamente a duas Federações (Portuguesa e Espanhola em dupla filiação internacional) da Ordem Maçónica Mista Internacional “Le Droit Humain” - ODireito Humano. Escrevo no portal +opinião uma crónica "O verde também vende na política..." à 3.ª feira e que abarca crónicas sobre as Energias Renováveis e Política Ambiental.

Sou um leitor compulsivo e desde cedo (por volta dos meus sete anos) comecei a ler bastante, não sou o leitor dito comum, porque sempre me fascinaram bem mais as enciclopédias e livros sobre história, filosofia, ciência política, sociologia e religião do que outros géneros bem mais populares, como os romances ou a poesia. Em relação a esses géneros de leitura, tive que me forçar a lê-los e fiquei bem mais tarde admirador confesso de Eça de Queiroz e de Fernando Pessoa, que nos géneros de que referi considero como os expoentes máximos na literatura portuguesa e embora mantendo Fernando Pessoa na área poética, em termos de romance substituo sem grandes problemas e a nível global o Eça de Queiroz por Umberto Eco e acho que aquele também não ficaria chateado por isso.
Sou por isso um latino, que gosta de ler livros (em todas) as chamadas línguas latinas e que acha que o problema atual é engolirmos o facilitismo anglo-saxónico que se espalhou por aí nas últimas duas décadas na área do Romance. O pior disto tudo é que as editoras entraram nesse jogo, sejam as dessa área linguística, sejam as restantes e por isso acho que toda a porcaria que se tem publicado por aí, não me merecerá grande respeito e isso irá repercutir-se até nas criticas literárias que irei publicar sobre esse género literário. Se me derem um romancista chamado Ernest Hemingway como exemplo ou até como modelo eu ainda o irei respeitar, até porque podemos referir que este autor tem alguns livros magistrais como o The Old Man and the Sea e/ou O Velho e o Mar (que li num fôlego e que nunca mais esqueci), o problema é que se começaram a empacotar os Romances, em capítulos pequenos e histórias da carochinha e com complexidade nula. E por isso aviso desde já que a minha reação será no mínimo bem mordaz quando me referir a esse género com essa apresentação!!!

Mas haverá mais do que análises a Romances, estas críticas literárias irão abranger um grande número de géneros literários e irão ter a cadência e a organização seguinte, assim e nas:


Primeiras 2.ª feiras de cada mês: Romance, Poesia, Viagens & Best Sellers;
Segundas 2.ª feiras de cada mês: Maçonaria, Esoterismo, Teologia & Religião;
Terceiras 2.ª feiras de cada mês: História & Romance histórico;
Quartas 2.ª feiras de cada mês: Ciência política, Filosofia & Sociologia;
E nas quintas 2.ª feiras de cada mês (quando as haja e em 2015 temo-las nos meses de Março; Junho; Agosto e Novembro): Crónica/Entrevista sobre/com um autor.

Na parte final de cada crítica irei escrever uma linha muito curta sobre qual a obra seguinte que tratarei, até porque se eventualmente os leitores a tiverem a possam revisitar e porque não, caso não a tenham, pensar em comprar. Não prometo é que as criticas literárias sejam todas positivas. Como a próxima semana é a quarta 2.ª feira de Janeiro, e analiso/critico livros de ciência política e sociologia, o livro que escolhi foi o Terre–Patrie e/ou Terra–Pátria de Edgar Morin, livro que escreveu em colaboração, com Anne Brigitte Kern.

Saudações a todos os leitores e boas leituras,

.'.Sandro Figueiredo Pires.'.

PÃO NOSSO

Ainda não se tinha sentado e já a cadeira chorava por antecipação. Vinha aí processo moroso e exigente. A mesa estava posta a preceito. Cá na ponta havia uma travessa com rissóis dispostos num desenho pouco conhecido. Malucos, sorriam-lhe. Já lhe conheciam as teimas. Mais à frente, numa superfície meio agastada, havia um pedaço de madeira que aconchegava queijo de todo o tipo. Queijo branco, queijo amarelo, queijo com e sem buracos. O bicho chegou, viu e sentou. Apesar de ter balançado e estremecido por tudo o que era sítio, a cadeira aguentou firme aquele desafio.

Tinha o respirar barulhento e a dupla papada afogava-lhe o pescoço. Olhos muito enfiados, quase fechados. A boca enchia-se de saliva e a certa altura começou a transbordar. Foi inevitável, era um animal sedento.

Lançou-se sem pedir licença. Tinha acabado de ganhar espaço interior e havia ali potencial para algo memorável. Os queijos foram os primeiros. Sem piedade, levou os palitos à boca e devorou-lhes os filhos como se de porção grande se tratasse. Mastigava com pressa mas demorava. Os rissóis não resistiram dois minutos. Renderam-se à primeira dentada. E única. À medida que enchia o bandulho floresciam-lhe feições demasiados felizes. Barulhos desagradáveis acompanhavam-lhe a digestão. A luz do candeeiro, bem por cima, assistia àquele espetáculo com agrado. Lançava-lhe expressões de aprovação e incentivo. Tudo o que existia naquele sítio gritava-lhe o nome. Naperons loiça livros. Davam-lhe confiança que julgavam necessária.

Com a açorda chegou a desorganização total. O bigode não tinha resistência para sofreguidão de tal envergadura. Ia mudando de cor e permanecia queixoso. A gordura guiava-o por caminhos perigosos e fascinantes. As travessas e os pratos amontoavam-se sem contagem. Aquela performance não teve intervalo. O andamento era rápido e intensificava-se. O clímax foi atingido durante a sobremesa. Mal viu a tarte de morangos caminhando na sua direção, as mãos tremeram-lhe. Afastou a cadeira para trás e, com cuidado especial, deixou-a subir-lhe para o colo. Acariciou-a com mãos de fada e sussurrou-lhe ao ouvido. Preparou-a para o que aí vinha.

Ela encolheu-se muito quietinha e deixou-o fazer o que tinha que ser feito. Nunca se tinha visto atuação semelhante. O cheiro a chantily espalhou-se e o homem degustou-lhe a sensação. Foi o ponto máximo daquela existência conjunta. Os anos correram e não houve outra refeição capaz de albergar tanta fome...

Gonçalo Naves


Que frase escolhem? Passatempo Bai'má Benda

 

Qual é a frase que escolhem para ser a vencedora do passatempo «Bai'má Benda»?

Estas são as três melhores frases a concurso. E vão agora a uma grande final que decorre até dia 23. As mais votadas ajudam o júri a decidir os vencedores - basta comentarem este post (aqui no blog, na página do facebook, no grupo e também no Bai'má Benda).

Boa sorte!

~~__~~

Catarina Noronha E Távora:

Que maravilha seria ter um 13º mês Este mês teria o nome “mês do nada” Sendo dividido a meio , para tirar quando achar , que a mente e o corpo necessitam de descanso Papo para o ar a contemplar a natureza de Inverno….Bom livro , lareira e um bom tinto Papo para o ar no verão . boa praia ou esplanada …uma bebida gelada e um bom livro Quanto a dias ferias isso agora ….feriado ….quando sentisse necessidade dele...

Clara Amorim:

Um 13.º mês?
Pois bem... Chamar-lhe-ia Joker (31 dias, claro!). Poderíamos acrescentá-lo à nossa vida um vez por ano quando bem o entendêssemos... Apenas para o "dolce far niente"!!! Ou para colocar a nossa vida em dia - livros (muitos livros!!!), amigos, música, viagens... Todos os dias seriam uma enorme e festiva celebração!!!

Ana Paula Oliveira:

Mais um mês? Essa é que é essa! Chamar-se-ia veraneio, viria depois de agosto.

Agosto, mês de férias, é uma canseira! Fazer malas, desfazer malas, fazer lanches, partir para a praia, limpar lancheiras, sacudir areia, tropeçar nos pés dos banhistas, ouvir arautos a apregoar olh’á bolinha, olh’ó gelado, esperar horas intermináveis nos aeroportos, gastar horas nos aviões, comer quilómetros sentados num carro, praguejar enquanto se busca um buraquinho onde o deixar, gastar a paciência nas filas dos museus, sofrer à espera de uma mesita nos cafés e restaurantes, andar de um lado para o outro, romper solas, cansar pés. Uf! Não há tempo para relaxar!

Pior! Entra setembro e, cansados, mesmo antes de terem lavado a roupa suja das férias, todos regressam ao trabalho a precisar de férias! Trabalhar cansados não é produtivo, convenhamos!

Ora aí está! Antes de setembro, depois de agosto, com todo o gosto, viria veraneio. É preciso um mês para parar. Para apreciar. Para olhar e ver. Para sentir. Para respirar. Para meditar. Para conversar. Para ler devagar.

Neste mês, todos os dias seriam domingo. E todos teriam sol. E todas as pessoas teriam de fazer um ritual: rir, gargalhar. E celebrar a vida!

*O vencedor terá que enviar-nos a sua morada. Em caso de não o fizer, o Clube atribuirá o livro a outro(a) finalista. Fique atento!

Poesia em matéria fria: Quintana

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domingo, 18 de janeiro de 2015

Como se um peixe um poema



Se não mais, houve pelo menos um, um comunista, nascido em Trás-os-Montes que dois meses depois de, com rigor, completar vinte e três Primaveras, por fazer anos no último dia da estação, chegou a Barcelona com o fito e a vontade de matar fascistas.
Era Agosto, mês de férias, um desgosto.
Só por chegar seria já merecedor de, à sua espera na estação, banda filarmónica dirigida por competente maestro, tias de preferência proprietárias, solteiras e velhas, protegidas do sol a sombrinhas de seda oriental, e a correspondente medalha do mérito, talvez São Jorge por causa dos dragões e de uma inquestionável vocação para bombeiro, culpa de um carrinho de bombeiros, único brinquedo de loja da sua infância, vantagem de ser filho único, quando em regra se tinham irmãos às meias dúzias, quando não às dúzias!
Eram outros tempos. Nasceu em 1914 ou, como gostava de dizer, em 1000-9-e-catorze.
Porém não chegou de comboio.
Chegou a Barcelona numa carrinha de caixa aberta.
Na caixa, galegos, asturianos, navarros, bascos e um transmontano que, porque palavra difícil de pronunciar, isso e o facto de se chamar José e dentro da caixa um total de oito Josés, o transformou imediatamente e apenas no português.
E também não chegou a Barcelona.
Depois de Burgos, Saragoça, Barcelona, e não Burgos, nem Saragoça, nem Barcelona, que a viagem foi-se fazendo por caminhos esconsos e secundários, porque viagem oficiosa ou clandestina.
Chegou treze dias depois, chegou mais de mil quilómetros depois, um milhão de metros depois, e se três passos um metro, mais de 3 milhões os passos, uma lotaria!
E prémio nenhum, nem trabalho para sapateiros porque nem solas novas para os sapatos.
Treze dias de viagem, uma viagem nocturna, a pé e sobre rodas, a oito quilómetros hora ou a cinquenta quilómetros hora, o tempo pode ser eterno.
Chegou aos arredores de Barcelona.
A Garraf.
Depois de Garraf, uma praia, era madrugada, eram gaivotas, era o mar.
Nunca antes tinha visto o mar, era assim, o mar, sem tamanho, o mar!
Procurou os barcos.
O mar sem barcos na sua imaginação inconcebível.
Faltavam-lhe os barcos.
Onde é que o mar guarda os barcos? - Pensou.
Trás-os-Montes, Barcelona, o caminho mais curto, sem oceanos pelo meio e proeza maior do que a do Hemingay, o americano da América, que chegou do outro lado do mundo.
Diziam que chegou como jornalista, como periodista do North American Newspaper Alliance e acabou também aos tiros aos fascistas.
E não que tivesse visto o americano alguma vez de espingarda na mão, apenas cigarros, às vezes charutos, e contavam-lhe que ele contava news from the war, novidades que muitas vezes mais valia não saber, porque deitavam abaixo um gajo. Apesar de a guerra parar à hora da sesta morreram demais, um desgoverno de juventudes perdidas.
Uma vez o americano deu-lhe um cigarro americano.
Respondeu-lhe thank you sir, por saber que queria dizer obrigado, que isto de a ouvir também se aprende.
Guardava todas as palavras novas.
A España no la va a reconocer ni la madre que la parió!
Hi ha aquí algú que parla el portugués?
Pà.
Vermell.
Pots ensenyar-me en el mapa?
Adéu.
Goodbye.
Au revoir.
Bonjour.
Quem também por lá viu, foi o aviador, um francês com tomates, em francês avec de tomates! Um tal de Malraux, que diz que amigo pessoal do General de Gaulle, que em Albacete recrutou e formou a sua quase própria esquadra, a Escuadrilla España.
Um francês que fez história, uma história com fraco fim porque Hitler colocou a Legião Condor à disposição do Generalísimo, cinco mil aviadores.
E assim Guernica, era Abril, era 1937, foi o chamado método do tapete de bombas, foi terrorismo.
Porém chegou depois de Abril, de Guernica só sabe do que ouviu falar e do quadro do pintor de Málaga.
E não sabia dizer de qual dos dois mais gostava, se do jornalista se do aviador.
No fundo sabia, no fundo sabemos sempre, apenas em regra não servimos para afogados ou para mergulhadores.
No fundo preferia o aviador, que isto de andar às voltas no céu, para mais em dias de chuva, para mais chuva de chumbo, não é para meninos, n'est pas pour enfants!
Depois de Garraf deram-lhe um fuzil e foi incorporado não no Ejército Republicano, mais conhecido por Ejército Rojo, mas nas milícias da Brigada Internacional.
Como se para fazer um soldado fosse suficiente uma arma?
Aprendeu que não é necessário muito mais, uma arma, munições, medo ou vontade.
E perdeu a conta aos lugares onde esteve ou os lugares deixaram de ter nome.

Foi o pai, as ideias do pai, que o fizeram comunista, que as ideias são como mãos para fazer coisas.
O pai e a fome, que de estômago vazio os pensamentos mais claros, mais nítidos, sem a indolência de três horas de digestão três vezes ao dia, às vezes refeição nenhuma, se refeição for coisa de faca e garfo e guardanapo, uma mão cheia de castanhas e um copo de aguardente.
O pai, a fome e um galego do outro lado da fronteira, um galego que conheceu nas actividades comerciais oficialmente ilegais que desenvolvia em sociedade com o pai: contrabando: batata para semente, sacos de farinha, latas de tomate, latas de anchovas, de sardinha, de atum, ao atum, como se o peixe um poema, o espanhóis chamam bonito, e por Navidades, latas de melocotón en almíbar e um ou outro brinquedo, como foi o carrinho de bombeiros, que por na aldeia não haver loja de brinquedos tinha de proceder a importação.
A vida é isto, um gajo sujeitar-se a ficar estendido no chão por duas caixas de turrón de almendras de Alicante, três bonecas andaluzas, um frasquinho de perfume francês porque um embeiçado pela moça mais bonita da freguesia vizinha, coisa de fazer cantar passarinhos às quatro da madrugada, dizem para lá do Tejo!
Uma amizade fácil, porque os dois a mesma idade, a mesma fome, quase feudal, e igual a obrigação de manter a boca fechada.
Quase não falavam, para cada produto da encomenda tinham um sinal, uma amizade construída a palavras cortadas, a gestos curtos, a cigarros fumados ao relento e à luz de estrelas, que quanto mais limpo o céu mais estalava a geada debaixo das botas na manhã seguinte.
Quando comunicou a decisão em casa, o pai a dizer que tinha feito um comunista, não um militar, e mais palavras, muitas, como se estivesse num comício, numa homilia, em campanha, e a mãe palavras nenhumas, apenas um olhar triste e seco.
E enquanto ouvia a litania paterna, os pensamentos que o atormentavam: que nunca tinha tido uma arma na mão, teria mãos suficientes, seria fria, pesada, seria valente e capaz de apertar o gatilho sem que lhe tremesse muito o coração?
Assim, foi voluntário, com medo e com vontade.
Fez a guerra, com medo e vontade.
Matou homens e salvou homens.
Não sabe dizer qual dos pratos da báscula o mais pesado.
No fim que São Pedro lhe apresente as contas!
Acha graça e sorri por não acreditar em Deus, apesar de tardes inteiras, noites em vela, os dois em amena cavaca.
Não sabe dizer se antes acreditava (porque se havia coisa boa que tinham os comunistas era não acreditar em tudo o que lhes diziam) ou se deixou de acreditar, porque fazer uma guerra é coisa que arrebata mesmo a fé mais firme.
Da guerra não gosta de falar.
Não fala.
Fez a guerra até que deixou de fazer a guerra.
O voluntário perdeu a vontade.
Vê como é fácil?
Foi para a guerra para vencer ou morrer, o que ninguém lhe disse é que se podia ir à guerra e acabar vivo e derrotado.
É um homem simples, gosta de coisas com lógica, onde estão os bons e onde estão os maus, as diferenças entre os gestos, e não entre os gestos, que na guerra os gestos iguais, as diferenças apenas nos princípios e nos fins.
Não estava preparado para ver o que viu quando chegaram os fascistas. O abandono das chefias, civis a serem mortos à pedrada, amigos a denunciarem-se uns aos outros, casaca virada, na tentativa de granjear o perdão ou a simpatia dos já vencedores.
Pelo que, quando na Rádio Nacional, às 22:30, o actor e locutor Fernando Fernández de Córdoba, informou numa voz de rádio à antiga:
En el día de hoy, cautivo y desarmado el Ejército Rojo, han alcanzado las tropas nacionales sus últimos objetivos militares. La guerra ha terminado.
El Generalísimo
Franco
Burgos 1º Abril 1939.
Quando Franco tomou o poder e a terra voltou a ser plana, quando a Marcha de Oriamendi[1] foi declarada canção nacional, já tinha abandonado o país.
Um pastor guiou-os até Las Illas, no Col de Lli, o primeiro posto francês, eram sete e os últimos sobreviventes da companhia, a um teve que o levar quase de arrasto, lembrava um jumento.
Dois dias depois e em linha recta, Perpinhão, dois dias depois e às voltas, Port-Vendrès.
Pararam em frente a uma igreja, perguntou, responderam C’est la Église Notre-Dame de Bonne Nouvelle, o que sem destino, lhe pareceu uma notícia boa, decidiu ficar, ficaram, ele e mais dois.
O que ainda não sabia é que tinha saído de uma guerra para se enfiar noutra, como se ele um botão e alguém de agulha e linha.
Enquanto os alemães ocuparam a França ele ocupado na Resistência e, apesar de ocupado, como se atingido por uma bala, não conseguiu resistir a um sorriso.
Num tempo difícil para encontrar sorrisos, encontrou um sorriso constante, um sorriso alegre, uma alegria contagiante.
Uma catalã de nome Matilde, que nele se apaixonou pela sisudez e pelas palavras, porque ele a dizia a rapariga do sorriso indestrutível, assim, em português, ela que descobrisse o que ele queria dizer.
Ele já sabia castelhano, ela aprendeu um pouco de português e juntos aprenderam francês e todos os detalhes dos dois corpos.
Um amor definitivo ao primeiro olhar.
Um amor resistente que, como se em estado de respiração assistida, lhe permitiu levar o corpo até ao fim, até 25 Agosto de 1944, o dia em que os Aliados libertaram Paris, e não o dia em que os Aliados libertaram Paris porque o dia em que a mulher lhe disse que ia ser pai!
Dois meses depois de fazer 30 anos soube que ia ser pai, uma frase que como uma cegonha trazia dentro um filho, e pela primeira vez pensou que a vida que levou afinal tinha sentido porque o seu filho, ou filha, se fosse menina chamar-se-ia Ana, como a sua mãe, ia nascer se não num mundo livre pelo menos num país livre.
E chorou, chorou por tudo, saudades da mãe que não mais viu, de Trás-os-Montes, do pai, dos avós, dos amigos de escola, até da besta do mestre-escola que mais do que professor devia pensar que era descendente directo da Padeira de Aljubarrota e a turma um exército de castelhanos.
Saudades de si quando na escola, de si a jogar ao pião, era o maior da sua aldeia com um pião nas mãos.
Saudades do filho que lhe ia nascer.
Saudades do futuro.
Assim, sem outro destino, decidiu pela segunda vez ficar em Port-Vendrès, uma pequena localidade na costa mediterrânica dos Pirenéus Orientais, em rigor e com graça, na Costa Vermelha e, apesar de não saber nadar, inevitavelmente transformou-se em pescador, que pouco mais podia ou sabia fazer. Ou sabia!, que aos poucos foi agregando às actividades piscatórias actividades comerciais que, agora previstas na lei não permitiam sustentar nenhuma acusação de contrabando.
Assim prosperou e teve três filhos.
E o tempo, não mais que de repente, começou a voar, o ambiente finalmente adequado ao cultivo de seres alados, talvez porque os céus despejados de objectos bélicos.
E desde Port-Vendrès, o seu mundo, o resto do mundo não passava de notícias em papel de jornal, coisa útil para embrulhar peixe.
De Portugal, a primeira notícia boa demorou a chegar, chegou em Agosto de 1968, dois meses depois de fazer 54 anos, Salazar caiu da cadeira, literalmente de uma cadeira, uma cadeira de lona onde sentado se preparava para um tratamento de rotina aos calos – que pelo menos os pés não lhe dessem sossego, pensou quando soube.
A cadeira cedeu, ao sentar-se, ao seu peso, e caiu batendo com a cabeça na laje do terraço. – Esta a versão do calista, o senhor Hilário.
Já o senhor Manuel Marques, barbeiro, testemunha que o mesmo caiu directamente no chão desamparado, dada a ausência da cadeira (a cadeira desarrumada, fora do seu lugar, mais uma evidência de que as coisas têm o seu lugar) onde pretendia tomar assento, não para tratar dos calos mas para ler o jornal.
Facto sem contestação é que o Presidente do Conselho, apesar de dorido não quis ser visto por médicos e mais pediu segredo, obviamente de Estado.
Debilitado, um mês depois foi substituído por Marcello Caetano, no entanto, até morrer, em 1970, como se mantivesse o pleno exercício das funções continuou a receber visitas, supostamente de trabalho, e sem manifestar suspeitas quanto à sua situação, a despachar os assuntos da nação, em nada sendo contrariado pelos que o rodeavam, assim que, com ironia, de certa forma respeitaram-lhe a vontade, porque no fim, sempre guardaram um segredo, o segredo que mais lhe conveio.
Cinco anos depois, no mesmo jornal, a morte do Generalísimo conseguiu arrancar-lhe um sorriso, um sorriso cansado, um sorriso de alívio.
Parecia o fim de uma época.
Contudo, havia uma coisa que, como um mosquito, não deixava de o incomodar, o facto de mais uma vez um ditador chegar ao fim dos dias a acreditar que o regime em vigor.
Não que ao de Santa Comba ou ao Galego, desejasse fim semelhante ao de Mussolini, executado com a companheira Clara Petacci, os corpos depois, pendurados pelos pés e expostos à execração pública durante vários dias na Piazza Loretto em Milão.
Apenas teria gosto, todo o gosto em que tivessem percebido o fim do correspondente regime, do pesadelo que conseguiram inventar e instalar.
Porque não é a mesma coisa morrer numa cama aliviado a chás de cidreira e paninhos húmidos sobre a testa ou morrer fuzilado contra uma parede.
Ainda em 1975 Matilde morreu.
O sorriso indestrutível de Matilde desapareceu, sessenta anos apenas, tão nova, tão rapariga.
Foi mesmo o fim de uma época.
Matilde morreu, faltavam cinco dias para o Natal, faltou tudo para o Natal, o seu sorriso, as rabanadas, a estrela no pinheiro, o pinheiro, as luzes, o seu sorriso, os sonhos escuros, lembravam brigadeiros, porque, como ela gostava, polvilhados com excesso de canela, o seu sorriso, a vaca, o burro, os reis magos no presépio, o presépio, o seu sorriso, os villancicos, Matilde a cantar, o seu sorriso.
Pero mira cómo beben los peces en el río
Pero mira cómo beben por ver al Dios nacido
Beben y beben y vuelven a beber
Los peces en el río por ver a Dios nacer.
Aprumava a voz a copinhos de xerez e tirava-o para dançar, no meio da cozinha, da sala, do corredor e ele dançava com o seu sorriso.
O Natal sem Matilde deixou de ser dia de calendário.
Todos os dias do calendário perderam sentido.
A casa vazia, o quarto vazio, o lado esquerdo da cama vazio, sem Matilde e sem o seu sorriso, um nevoeiro dentro de casa, chuva e humidade.
Na casa-de-banho, tanto o frio que chegou a nevar.
E o silêncio a evidenciar o barulho do frio, barulho nenhum, o silêncio absoluto.
Deixou de se ouvir respirar.
Deixou de se ouvir pensar.
O seu coração sincronizado com Matilde.
O seu coração assíncrono.
Um AVC.
As mazelas de um AVC.
O lado esquerdo do corpo atrofiado, como não podia deixar de ser, pois se lhe roubaram o coração.
O pai neste estado não pode viver sozinho.
Trazes a Matilde? – Pergunta, quase que pergunta, não pergunta.
Sabe que a Matilde morreu mas não tem ninguém com quem lhe dê gosto conversar.
O pai tem de tomar uma decisão.
Não se lembra do que decidiu.
A memória torta, com o lado esquerdo do corpo.
Foi viver para um lar.
Uma casa cheia de gente e todos os sorrisos em ruínas ou fáceis de destruir.
Destruiu vários sorrisos.
Comentários ruins e escarninhos que fazia à medida e de propósito para magoar.
Fez inimigos.
E aos poucos, na lentidão dos caracóis ou dos velhos de bengala, agora precisa de bengala, fez amigos.
Amigos da fisioterapia, das caminhadas (também terapêuticas), da petanca, das cartas, dos cigarros fumados às escondidas, dos filmes impróprios para menores e senhoras de bem, das confidências e de outras necessidades do corpo, dez anos depois de Matilde e apesar de os dois velhos tudo parecia novo porque uma curiosidade a estrear.
Se fossem apanhados podiam dizer como as crianças que só estavam a brincar, e não era mentira.
O quotidiano no lar a mostrar um excesso de semelhanças com os dias de caserna, o tempo a mesma textura, as contendas, as derrotas, os triunfos dos pequenos gestos, apertar um botão, dar um laço aos cordões dos sapatos, tomar um banho, as saudades de casa, a indiferença perante a morte e por vezes a tristeza, uma tristeza que parecia capaz de matar.
E mesmo dentro da tristeza a alegria.
A alegria contida das senhoras quando se preparavam para um funeral, o vestido ou o fato, os brincos, as malinhas de mão, os penteados, os lábios discretamente pintados.
Assim as semanas.
Os fins-de-semana diferentes e semelhantes entre si.
Passava os dois dias com os filhos. Os netos crescidos e um tão parecido consigo, o mesmo nariz, a mesma cor nos olhos, os mesmos defeitos, os mesmos sonhos e para mais o mesmo nome, a história a correr o risco de repetição.
Passava semanas de férias com os filhos.
A presença constante dos filhos fazia-o diferente no lar, mostrava que tinha família, que podia talvez ir embora se quisesse, conferia-lhe autoridade e respeito.
Assim os primeiros anos no lar.
Vinte anos que o tempo passa.
Até que um segundo AVC.
O carinho dos companheiros maior.
Limpavam-lhe a saliva que transbordava do lado esquerdo da boca, passeavam-no na cadeira de rodas, liam-lhe as notícias boas dos jornais.
Dois anos depois, depois do andarilho, voltou à suficiência da bengala, à saborosa lentidão dos caracóis.
O tempo a passar quase igual, o lar cada vez mais cheio de pessoas que não conhece, a alegria de um livro, de um cigarro, de um quadradinho de chocolate todos os dias, a tristeza de precisar de ajuda para tomar banho, para apertar os botões da camisa, e nos sapatos não atacadores, uma revolução, fitas de velcro.
E hoje no lar dia de festa porque acontecimento inédito a merecer cobertura de canal televisivo nacional. O lar em alvoroço, as senhoras de vestido colorido, as unhas pintadas na cor do vestido, os senhores de fato e gravata, os sapatos engraxados a rigor.
Porque o dia de sol, a festa no jardim, a relva aparada, uma passadeira vermelha.
Hoje faz 100 anos, ao seu lado os amigos possíveis, os filhos, os netos, dois bisnetos, no bolo, insistiram, 100 velas, hoje, sonhou com Matilde e quando acordou pensou que nunca pensou que viesse a ter fôlego para tanta vida.
 
 
Raquel Serejo Martins






[1] Hino do Carlismo, a Marcha de Oriamendi foi adoptada pelos Nacionalistas durante a Guerra Civil e posteriormente declarada por Francisco Franco Canção Nacional de Espanha