Se não mais, houve
pelo menos um, um comunista, nascido em Trás-os-Montes que dois meses depois
de, com rigor, completar vinte e três Primaveras, por fazer anos no último dia
da estação, chegou a Barcelona com o fito e a vontade de matar fascistas.
Era Agosto, mês de
férias, um desgosto.
Só por chegar
seria já merecedor de, à sua espera na estação, banda filarmónica dirigida por
competente maestro, tias de preferência proprietárias, solteiras e velhas,
protegidas do sol a sombrinhas de seda oriental, e a correspondente medalha do
mérito, talvez São Jorge por causa dos dragões e de uma inquestionável vocação
para bombeiro, culpa de um carrinho de bombeiros, único brinquedo de loja da
sua infância, vantagem de ser filho único, quando em regra se tinham irmãos às
meias dúzias, quando não às dúzias!
Eram outros
tempos. Nasceu em 1914 ou, como gostava de dizer, em 1000-9-e-catorze.
Porém não chegou
de comboio.
Chegou a Barcelona
numa carrinha de caixa aberta.
Na caixa, galegos,
asturianos, navarros, bascos e um transmontano que, porque palavra difícil de
pronunciar, isso e o facto de se chamar José e dentro da caixa um total de oito
Josés, o transformou imediatamente e apenas no português.
E também não
chegou a Barcelona.
Depois de Burgos,
Saragoça, Barcelona, e não Burgos, nem Saragoça, nem Barcelona, que a viagem
foi-se fazendo por caminhos esconsos e secundários, porque viagem oficiosa ou
clandestina.
Chegou treze dias
depois, chegou mais de mil quilómetros depois, um milhão de metros depois, e se
três passos um metro, mais de 3 milhões os passos, uma lotaria!
E prémio nenhum,
nem trabalho para sapateiros porque nem solas novas para os sapatos.
Treze dias de
viagem, uma viagem nocturna, a pé e sobre rodas, a oito quilómetros hora ou a
cinquenta quilómetros hora, o tempo pode ser eterno.
Chegou aos
arredores de Barcelona.
A Garraf.
Depois de Garraf,
uma praia, era madrugada, eram gaivotas, era o mar.
Nunca antes tinha
visto o mar, era assim, o mar, sem tamanho, o mar!
Procurou os
barcos.
O mar sem barcos
na sua imaginação inconcebível.
Faltavam-lhe os
barcos.
Onde é que o mar
guarda os barcos? - Pensou.
Trás-os-Montes,
Barcelona, o caminho mais curto, sem oceanos pelo meio e proeza maior do que a
do Hemingay, o americano da América, que chegou do outro lado do
mundo.
Diziam que chegou
como jornalista, como periodista do North American Newspaper Alliance e acabou também aos tiros aos fascistas.
E não que tivesse
visto o americano alguma vez de espingarda na mão, apenas cigarros, às vezes
charutos, e contavam-lhe que ele contava news from the war, novidades que
muitas vezes mais valia não saber, porque deitavam abaixo um gajo. Apesar de a
guerra parar à hora da sesta morreram demais, um desgoverno de juventudes
perdidas.
Uma vez o
americano deu-lhe um cigarro americano.
Respondeu-lhe thank you sir, por saber que queria dizer obrigado, que isto de a ouvir
também se aprende.
Guardava todas as
palavras novas.
A España no la va a reconocer ni la madre que la parió!
Hi ha aquí algú que parla el
portugués?
Pà.
Vermell.
Pots ensenyar-me en el mapa?
Adéu.
Goodbye.
Au revoir.
Bonjour.
Quem também por lá
viu, foi o aviador, um francês com tomates, em francês avec de tomates! Um tal de Malraux, que diz que amigo pessoal do General de Gaulle, que em Albacete
recrutou e formou a sua quase própria esquadra, a Escuadrilla España.
Um francês que fez
história, uma história com fraco fim porque Hitler colocou a Legião Condor à disposição do Generalísimo, cinco mil
aviadores.
E assim Guernica,
era Abril, era 1937, foi o chamado método do tapete de bombas, foi terrorismo.
Porém chegou
depois de Abril, de Guernica só sabe do que ouviu falar e do quadro do pintor
de Málaga.
E não sabia dizer
de qual dos dois mais gostava, se do jornalista se do aviador.
No fundo sabia, no
fundo sabemos sempre, apenas em regra não servimos para afogados ou para
mergulhadores.
No fundo preferia
o aviador, que isto de andar às voltas no céu, para mais em dias de chuva, para
mais chuva de chumbo, não é para meninos, n'est pas pour enfants!
Depois de Garraf
deram-lhe um fuzil e foi incorporado não no Ejército Republicano, mais conhecido
por Ejército Rojo, mas nas milícias da Brigada Internacional.
Como se para fazer
um soldado fosse suficiente uma arma?
Aprendeu que não é
necessário muito mais, uma arma, munições, medo ou vontade.
E perdeu a conta
aos lugares onde esteve ou os lugares deixaram de ter nome.
Foi o pai, as
ideias do pai, que o fizeram comunista, que as ideias são como mãos para fazer
coisas.
O pai e a fome,
que de estômago vazio os pensamentos mais claros, mais nítidos, sem a
indolência de três horas de digestão três vezes ao dia, às vezes refeição
nenhuma, se refeição for coisa de faca e garfo e guardanapo, uma mão cheia de
castanhas e um copo de aguardente.
O pai, a fome e um
galego do outro lado da fronteira, um galego que conheceu nas actividades
comerciais oficialmente ilegais que desenvolvia em sociedade com o pai:
contrabando: batata para semente, sacos de farinha, latas de tomate, latas de
anchovas, de sardinha, de atum, ao atum, como se o peixe um poema, o espanhóis
chamam bonito, e por Navidades, latas de melocotón en almíbar e um ou outro brinquedo, como foi o carrinho de
bombeiros, que por na aldeia não haver loja de brinquedos tinha de proceder a
importação.
A vida é isto, um
gajo sujeitar-se a ficar estendido no chão por duas caixas de turrón de almendras de Alicante, três bonecas andaluzas, um frasquinho
de perfume francês porque um embeiçado pela moça mais bonita da freguesia
vizinha, coisa de fazer cantar passarinhos às quatro da madrugada, dizem para
lá do Tejo!
Uma amizade fácil,
porque os dois a mesma idade, a mesma fome, quase feudal, e igual a obrigação
de manter a boca fechada.
Quase não falavam,
para cada produto da encomenda tinham um sinal, uma amizade construída a
palavras cortadas, a gestos curtos, a cigarros fumados ao relento e à luz de
estrelas, que quanto mais limpo o céu mais estalava a geada debaixo das botas
na manhã seguinte.
Quando comunicou a
decisão em casa, o pai a dizer que tinha feito um comunista, não um militar, e
mais palavras, muitas, como se estivesse num comício, numa homilia, em
campanha, e a mãe palavras nenhumas, apenas um olhar triste e seco.
E enquanto ouvia a
litania paterna, os pensamentos que o atormentavam: que nunca tinha tido uma
arma na mão, teria mãos suficientes, seria fria, pesada, seria valente e capaz
de apertar o gatilho sem que lhe tremesse muito o coração?
Assim, foi
voluntário, com medo e com vontade.
Fez a guerra, com
medo e vontade.
Matou homens e
salvou homens.
Não sabe dizer
qual dos pratos da báscula o mais pesado.
No fim que São
Pedro lhe apresente as contas!
Acha graça e sorri
por não acreditar em Deus, apesar de tardes inteiras, noites em vela, os dois
em amena cavaca.
Não sabe dizer se
antes acreditava (porque se havia coisa boa que tinham os comunistas era não
acreditar em tudo o que lhes diziam) ou se deixou de acreditar, porque fazer
uma guerra é coisa que arrebata mesmo a fé mais firme.
Da guerra não
gosta de falar.
Não fala.
Fez a guerra até
que deixou de fazer a guerra.
O voluntário
perdeu a vontade.
Vê como é fácil?
Foi para a guerra
para vencer ou morrer, o que ninguém lhe disse é que se podia ir à guerra e
acabar vivo e derrotado.
É um homem
simples, gosta de coisas com lógica, onde estão os bons e onde estão os maus,
as diferenças entre os gestos, e não entre os gestos, que na guerra os gestos
iguais, as diferenças apenas nos princípios e nos fins.
Não estava
preparado para ver o que viu quando chegaram os fascistas. O abandono das
chefias, civis a serem mortos à pedrada, amigos a denunciarem-se uns aos
outros, casaca virada, na tentativa de granjear o perdão ou a simpatia dos já
vencedores.
Pelo que, quando
na Rádio Nacional, às 22:30, o actor e locutor Fernando
Fernández de Córdoba, informou numa voz de rádio à antiga:
En el día de hoy, cautivo y desarmado el Ejército Rojo, han alcanzado las
tropas nacionales sus últimos objetivos militares. La guerra ha terminado.
El Generalísimo
Franco
Burgos 1º Abril 1939.
Quando Franco
tomou o poder e a terra voltou a ser plana, quando a Marcha de Oriamendi foi declarada canção nacional, já tinha abandonado o país.
Um pastor guiou-os
até Las Illas, no Col de Lli, o primeiro posto francês, eram sete e os últimos
sobreviventes da companhia, a um teve que o levar quase de arrasto, lembrava um
jumento.
Dois dias depois e
em linha recta, Perpinhão, dois dias depois e às voltas, Port-Vendrès.
Pararam em frente
a uma igreja, perguntou, responderam C’est la Église Notre-Dame de Bonne
Nouvelle, o que sem destino, lhe pareceu uma notícia boa, decidiu ficar,
ficaram, ele e mais dois.
O que ainda não
sabia é que tinha saído de uma guerra para se enfiar noutra, como se ele um
botão e alguém de agulha e linha.
Enquanto os
alemães ocuparam a França ele ocupado na Resistência e, apesar de
ocupado, como se atingido por uma bala, não conseguiu resistir a um sorriso.
Num tempo difícil
para encontrar sorrisos, encontrou um sorriso constante, um sorriso alegre, uma
alegria contagiante.
Uma catalã de nome
Matilde, que nele se apaixonou pela sisudez e pelas palavras, porque ele a
dizia a rapariga do sorriso indestrutível, assim, em
português, ela que descobrisse o que ele queria dizer.
Ele já sabia
castelhano, ela aprendeu um pouco de português e juntos aprenderam francês e
todos os detalhes dos dois corpos.
Um amor definitivo
ao primeiro olhar.
Um amor resistente
que, como se em estado de respiração assistida, lhe permitiu levar o corpo até
ao fim, até 25 Agosto de 1944, o dia em que os Aliados libertaram Paris,
e não o dia em que os Aliados libertaram Paris
porque o dia em que a mulher lhe disse que ia ser pai!
Dois meses depois
de fazer 30 anos soube que ia ser pai, uma frase que como uma cegonha trazia
dentro um filho, e pela primeira vez pensou que a vida que levou afinal tinha
sentido porque o seu filho, ou filha, se fosse menina chamar-se-ia Ana, como a
sua mãe, ia nascer se não num mundo livre pelo menos num país livre.
E chorou, chorou
por tudo, saudades da mãe que não mais viu, de Trás-os-Montes, do pai, dos
avós, dos amigos de escola, até da besta do mestre-escola que mais do que
professor devia pensar que era descendente directo da Padeira de Aljubarrota e a turma um exército de castelhanos.
Saudades de si
quando na escola, de si a jogar ao pião, era o maior da sua aldeia com um pião
nas mãos.
Saudades do filho
que lhe ia nascer.
Saudades do
futuro.
Assim, sem outro
destino, decidiu pela segunda vez ficar em Port-Vendrès, uma pequena localidade
na costa mediterrânica dos Pirenéus Orientais, em rigor e com graça, na Costa
Vermelha e, apesar de não saber nadar, inevitavelmente transformou-se em
pescador, que pouco mais podia ou sabia fazer. Ou sabia!, que aos poucos foi
agregando às actividades piscatórias actividades comerciais que, agora
previstas na lei não permitiam sustentar nenhuma acusação de contrabando.
Assim prosperou e
teve três filhos.
E o tempo, não
mais que de repente, começou a voar, o ambiente finalmente adequado ao cultivo
de seres alados, talvez porque os céus despejados de objectos bélicos.
E desde
Port-Vendrès, o seu mundo, o resto do mundo não passava de notícias em papel de
jornal, coisa útil para embrulhar peixe.
De Portugal, a
primeira notícia boa demorou a chegar, chegou em Agosto de 1968, dois meses
depois de fazer 54 anos, Salazar caiu da cadeira, literalmente de uma cadeira,
uma cadeira de lona onde sentado se preparava para um tratamento de rotina aos
calos – que pelo menos os pés não lhe dessem sossego, pensou quando soube.
A cadeira cedeu,
ao sentar-se, ao seu peso, e caiu batendo com a cabeça na laje do terraço. –
Esta a versão do calista, o senhor Hilário.
Já o senhor Manuel
Marques, barbeiro, testemunha que o mesmo caiu directamente no chão
desamparado, dada a ausência da cadeira (a cadeira desarrumada, fora do seu
lugar, mais uma evidência de que as coisas têm o seu lugar) onde pretendia
tomar assento, não para tratar dos calos mas para ler o jornal.
Facto sem
contestação é que o Presidente do Conselho, apesar de dorido não quis ser visto
por médicos e mais pediu segredo, obviamente de Estado.
Debilitado, um mês
depois foi substituído por Marcello Caetano, no entanto, até morrer, em 1970,
como se mantivesse o pleno exercício das funções continuou a receber visitas,
supostamente de trabalho, e sem manifestar suspeitas quanto à sua situação, a
despachar os assuntos da nação, em nada sendo contrariado pelos que o rodeavam,
assim que, com ironia, de certa forma respeitaram-lhe a vontade, porque no fim,
sempre guardaram um segredo, o segredo que mais lhe conveio.
Cinco anos depois,
no mesmo jornal, a morte do Generalísimo conseguiu
arrancar-lhe um sorriso, um sorriso cansado, um sorriso de alívio.
Parecia o fim de
uma época.
Contudo, havia uma
coisa que, como um mosquito, não deixava de o incomodar, o facto de mais uma
vez um ditador chegar ao fim dos dias a acreditar que o regime em vigor.
Não que ao de
Santa Comba ou ao Galego, desejasse fim semelhante ao de Mussolini, executado
com a companheira Clara Petacci, os corpos depois, pendurados pelos pés e
expostos à execração pública durante vários dias na Piazza Loretto em Milão.
Apenas teria
gosto, todo o gosto em que tivessem percebido o fim do correspondente regime,
do pesadelo que conseguiram inventar e instalar.
Porque não é a
mesma coisa morrer numa cama aliviado a chás de cidreira e paninhos húmidos
sobre a testa ou morrer fuzilado contra uma parede.
Ainda em 1975
Matilde morreu.
O sorriso
indestrutível de Matilde desapareceu, sessenta anos apenas, tão nova, tão
rapariga.
Foi mesmo o fim de
uma época.
Matilde morreu,
faltavam cinco dias para o Natal, faltou tudo para o Natal, o seu sorriso, as
rabanadas, a estrela no pinheiro, o pinheiro, as luzes, o seu sorriso, os
sonhos escuros, lembravam brigadeiros, porque, como ela gostava, polvilhados
com excesso de canela, o seu sorriso, a vaca, o burro, os reis magos no
presépio, o presépio, o seu sorriso, os villancicos, Matilde a
cantar, o seu sorriso.
Pero mira cómo beben los peces en el río
Pero mira cómo beben por ver al Dios nacido
Beben y beben y vuelven a beber
Los peces en el río por ver a Dios nacer.
Aprumava a voz a
copinhos de xerez e tirava-o para
dançar, no meio da cozinha, da sala, do corredor e ele dançava com o seu
sorriso.
O Natal sem
Matilde deixou de ser dia de calendário.
Todos os dias do
calendário perderam sentido.
A casa vazia, o
quarto vazio, o lado esquerdo da cama vazio, sem Matilde e sem o seu sorriso,
um nevoeiro dentro de casa, chuva e humidade.
Na casa-de-banho,
tanto o frio que chegou a nevar.
E o silêncio a
evidenciar o barulho do frio, barulho nenhum, o silêncio absoluto.
Deixou de se ouvir
respirar.
Deixou de se ouvir
pensar.
O seu coração
sincronizado com Matilde.
O seu coração
assíncrono.
Um AVC.
As mazelas de um
AVC.
O lado esquerdo do
corpo atrofiado, como não podia deixar de ser, pois se lhe roubaram o coração.
O pai neste estado
não pode viver sozinho.
Trazes a Matilde?
– Pergunta, quase que pergunta, não pergunta.
Sabe que a Matilde
morreu mas não tem ninguém com quem lhe dê gosto conversar.
O pai tem de tomar
uma decisão.
Não se lembra do
que decidiu.
A memória torta,
com o lado esquerdo do corpo.
Foi viver para um
lar.
Uma casa cheia de
gente e todos os sorrisos em ruínas ou fáceis de destruir.
Destruiu vários
sorrisos.
Comentários ruins
e escarninhos que fazia à medida e de propósito para magoar.
Fez inimigos.
E aos poucos, na
lentidão dos caracóis ou dos velhos de bengala, agora precisa de bengala, fez
amigos.
Amigos da
fisioterapia, das caminhadas (também terapêuticas), da petanca, das cartas, dos
cigarros fumados às escondidas, dos filmes impróprios para menores e senhoras
de bem, das confidências e de outras necessidades do corpo, dez anos depois de
Matilde e apesar de os dois velhos tudo parecia novo porque uma curiosidade a
estrear.
Se fossem
apanhados podiam dizer como as crianças que só estavam a brincar, e não era
mentira.
O quotidiano no
lar a mostrar um excesso de semelhanças com os dias de caserna, o tempo a mesma
textura, as contendas, as derrotas, os triunfos dos pequenos gestos, apertar um
botão, dar um laço aos cordões dos sapatos, tomar um banho, as saudades de
casa, a indiferença perante a morte e por vezes a tristeza, uma tristeza que
parecia capaz de matar.
E mesmo dentro da
tristeza a alegria.
A alegria contida
das senhoras quando se preparavam para um funeral, o vestido ou o fato, os
brincos, as malinhas de mão, os penteados, os lábios discretamente pintados.
Assim as semanas.
Os fins-de-semana
diferentes e semelhantes entre si.
Passava os dois
dias com os filhos. Os netos crescidos e um tão parecido consigo, o mesmo
nariz, a mesma cor nos olhos, os mesmos defeitos, os mesmos sonhos e para mais
o mesmo nome, a história a correr o risco de repetição.
Passava semanas de
férias com os filhos.
A presença
constante dos filhos fazia-o diferente no lar, mostrava que tinha família, que
podia talvez ir embora se quisesse, conferia-lhe autoridade e respeito.
Assim os primeiros
anos no lar.
Vinte anos que o
tempo passa.
Até que um segundo
AVC.
O carinho dos
companheiros maior.
Limpavam-lhe a
saliva que transbordava do lado esquerdo da boca, passeavam-no na cadeira de
rodas, liam-lhe as notícias boas dos jornais.
Dois anos depois,
depois do andarilho, voltou à suficiência da bengala, à saborosa lentidão dos
caracóis.
O tempo a passar
quase igual, o lar cada vez mais cheio de pessoas que não conhece, a alegria de
um livro, de um cigarro, de um quadradinho de chocolate todos os dias, a
tristeza de precisar de ajuda para tomar banho, para apertar os botões da
camisa, e nos sapatos não atacadores, uma revolução, fitas de velcro.
E hoje no lar dia
de festa porque acontecimento inédito a merecer cobertura de canal televisivo
nacional. O lar em alvoroço, as senhoras de vestido colorido, as unhas pintadas
na cor do vestido, os senhores de fato e gravata, os sapatos engraxados a
rigor.
Porque o dia de
sol, a festa no jardim, a relva aparada, uma passadeira vermelha.
Hoje faz 100 anos,
ao seu lado os amigos possíveis, os filhos, os netos, dois bisnetos, no bolo,
insistiram, 100 velas, hoje, sonhou com Matilde e quando acordou pensou que
nunca pensou que viesse a ter fôlego para tanta vida.
Raquel Serejo Martins