terça-feira, 2 de maio de 2017

teia



ao início das tardes soalheiras
levavas-me pela mão
fazíamos o caminho lado a lado
as sombras uma teia
tecendo-nos como os dias
em crescendo
ensinaste-me a arejar uma casa
o sol vinha à janela
rindo a toda a extensão da pele
e as plantas
que me dizias para regar
talvez continuem
a crescer na água dos gestos.


Helder Magalhães


Ineke Kamps Art

maçã mal cabida, um poema de Carla Diacov com o borogodó necessário e absoluto

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faz já dois candelabros que ela não olha para trás uma mulher de olhar para trás mas então agora é o prato chinês os ossinhos do pato no canto perto da mão esquerda o garfo com seus dentes virados para o quadro onde um cavalo e sobre ele uma garotinha forçando o rosto num raio de sol muito mal pintado num tom de maçã mal cabida ali pobre pobre beleza pobre mal cabido ali faz já umas três ou quatro eternidades que ela não olha para trás metodologia de sondar sem ver uma faca no assoalho de cupins uma vaca bordada no guardanapo novo uma mulher e um homem e uma roda de tortura uma vaca bordada na cara da mulher onde o homem maria de deus uma propaganda de desodorante e uma cachoeira e a torradeira quebrada uma vaca bordada na cara dela e se ela se botasse a cantar e se se ela botasse a querer lamber um peito marinho e se ela se botasse a pensar num estupro supracoreografado uma vaca e três ou quatro búfalos que ela não ela usa um terno cinco tamanhos maiores faz treze luas que ela não faz treze náuseas que ela não olha para trás uma sala escura bordada no estofo da cadeira vazia uma mesa tão longa que ninguém deu-se a bordar um tipo incerto de deus que fez da incerteza da mulher coisa bordada no quadro com a maçã sobre o rosto mal chaveado cavalo sob menina rija sobre raio de sol fruto de fruta mal cabida ali se ela se bota a voltar a olhar para trás se ele se bota a pensar em sexo com talheres de azar se ela se bota a criar uma boa superstição com taças já uma colisão de ângulos entre a janela e o espelho que ela não [olha para trás se ela se bota a querer o tórax a devolver a coxa e a asa se ela se bota a entortar o quadro uma maçã e uma rigidez infantilizada e uma cor de tortura uma carcaça bordada na cara da mulher onde o homem maria de deus onde o homem se ela se bota a cruzar os ossos essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca se ela se bota a estranhar os milagres ali sobre a mesa sob as unhas se ela se bota a pentear a franja com o garfo se ela se bota a cruzar os ossos ou os dedos ou as pernas se ela se bota a contrair o útero se ela se bota a relaxar o útero essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca se ela se bota a contrair o útero entre o primeiro e o último sopro fatal faz já onze moscas que ela não olha para trás

***


* no vídeo, maçã mal cabida, poema de Carla Diacov na voz de Penélope Martins.

** este post é mais uma publicação para nossa ponte de afetos, Brasil e Portugal, sob rubrica É DO BOROGODÓ, dirigida por Penélope Martins.

*** livros de Carla Diacov estão presentes no catálogo Douda: https://doudacorreriablog.wordpress.com/