sábado, 15 de março de 2014

Desafio poético à solta no facebook!

Anda por aí um jogo à solta no facebook... "Tagar" amigos para que publiquem poemas em 24 horas no mural! Fui desafiado pela Ana Maria Brito Jorge e ganhei de prenda estes 5 poemas! Que belas prendas, diria.

Ana Paula Oliveira:

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar?


*Manuel António Pina

Ana Almeida:

O Apanhador de Desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade das
tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor os meus silêncios.


*Manoel de Barros in "Memórias Inventadas: a Infância" (2003)

Teresa Carreiro:

/Estão todas as verdades
à espera em todas as coisas:
não apressam o próprio nascimento
nem a ele se opõem,
não carecem do fórceps do obstetra,
e para mim a menos significante
é grande como todas.
(Que pode haver de maior ou menor
que um toque?)

Sermões e lógicas jamais convencem
o peso da noite cala bem mais
fundo em minha alma.

(Só o que se prova
a qualquer homem ou mulher,
é que é;
só o que ninguém pode negar,
é que é.)

Um minuto e uma gota de mim
tranquilizam o meu cérebro:
eu acredito que torrões de barro
podem vir a ser lâmpadas e amantes,
que um manual de manuais é a carne
de um homem ou mulher,
e que num ápice ou numa flor
está o sentimento de um pelo outro,
e hão-de ramificar-se ao infinito
a começar daí
até que essa lição venha a ser de todos,
e um e todos nos possam deleitar
e nós a eles./


*Walt Whitman, in "Leaves of Grass"

Marcos Pereira:

Não tenho lágrimas
estou mais baixo
junto à cal

Vejo o solo extinto
Não oiço ninguém
e não regresso

Adormecer talvez
junto a uma estaca
com uma pequena pedra
sobre as pálpebras


*António Ramos Rosa, "A Intacta Ferida"

Raquel Serejo Martins:

Minha Senhora de Mim

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito


*Maria Teresa Horta

A nova música dos Clã, rodeada de livros!


Letra: John Ulhoa
Música: Hélder Gonçalves
Tema extraído do álbum CORRENTE, dos Clã


A PAZ NÃO TE CAI BEM

Se o amor faz sofrer
Se a paixão faz doer
O que o ódio fará

Não soube o que dizer
Magoei sem querer
Mas não queres perdoar

Discutiste
Insististe
E pior não me ouviste
Nem me viste chorar

Eu cedi
Concordei
Admiti que errei
Mas só queres guerrear

E eu sei
Não tem fim
Não queres a paz que trago em mim
Não Não

Argumentos que ferem
Silêncios torturam
Gestos são letais
E afinal, pra quê mais?

Concordar jamais
Mesmo que eu diga sim
E eu sei

Não tem fim
Não queres a paz que trago em mim
Vi também que a paz em ti não fica bem
Não Não

Oh Não
E eu vou
Vou desandar daqui
Antes que o céu
Decida desabar sobre mim

Eu sei
Não tem fim
Tu não queres a paz que trago em mim
V também que a paz em ti não fica bem

Não tem fim
Tu não queres a paz que trago em mim
Sei também que a paz em ti não fica bem
Não Não

foto tirada de aqui.

Foto frase do dia: Ray Bradbury

sexta-feira, 14 de março de 2014

Ismael Sério: «19 invernos»

Ismael Sério, 19 anos, escreve desde os 12 sem que nunca ninguém tivesse reparado.

19 invernos
Vi paraísos e infernos, Lugares desabitados e artificiais, modernos Conheci caras e rabos , deuses e diabos, Generais e cabos, patrões e escravos Calados, explorados, sem os seus ordenados pagos, Cresci, evolui, aprendi que não vivo sem quem amo Sou a haste partida de um ramo Que floresce numa era dramática, Em que a tática supera a teoria na prática. É triste mas ris-te. Já viste? Eu falho, tu falhas, Erro, corto, noto e ao mesmo não volto. Voto. Vota, boneco de corda, Aborda o que te rodeia. A moda incomoda o modo como eu estou! Estou bem. Não mudo o que sou. Sei que tudo sou para não ser ninguém. Sou um alguém tranquilo, que vê para além daquilo Que a sabedoria contém. Ontem fui, hoje sou, amanhã serei. Não sei quem, mas sei o presente que tenho pela frente. Serei sempre eu e não alguém que imagino, Para que não ande às voltas sem um rumo certo Para o meu destino. Sou um protetor da paz através do raciocínio Num país em declínio, em que as massas são Atraídas pelo fascínio. Que seja feito o extermínio de cabeças ocas No domínio. Estou cansado mas inconformado. Não paro Nem amuo, continuo. Sou criança com esperança de vencer Que não se cansa de lutar ferozmente, dia e noite pela mudança, Sem receio de perder. Eu, o agasalho do nada, a sombra do meu ser, A sede inventada do meu poema a crescer. A minha escrita é a capa de quem veste a nua realidade. Trago a verdade, como quem pinta na rua com força de vontade. Não tenho o mundo na mão, Tenha a menos ou a mais, o meu erro é o meu cais. Nunca é demais, para mim, responder sim a cada senão. Se uma porta de fecha, da mesma maneira se abre. Eis a palavra-chave POESIA, o alto império, Pensamento em elevação do argumento mais sério. Quando o sonho é grande e o erro enorme, A ambição ganha fome, a angústia não some, A autoestima não come e o pensamento mal dorme. Há sempre uma forma não esperes que do nada se forme Recupera o que perdeste. Tudo se transforma.
*Ismael Sério
foto: http://www.estufa.pt/

Agradecimento a Vanda Fino, pela partilha do poema.

Regador de ideias

Merci à Sajad Zafranchi...


Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 


a-ver-livros: banho

Banho-me no ilíquido
prazer de morrer
ao sol
imersão total na luz aquosa 
deste dia
plena purificação
ritual celebração
viagem

até à escuridão

Ana Almeida

* para saber mais sobre Hope Gangloff
siga o link www.hopegangloff.com

quinta-feira, 13 de março de 2014

Eu poético: «Morrer»

Morrer

só existem três formas de morrer.

morrer devagar.
..............................
....................
..........

a tempo de dizer adeus,
pedir desculpa uma vez mais
e saber perdoar quem nos magoou.

começamos a arrumar a casa,
a tratar dos papéis.
convocamos os interessados no património
e deixamos as memórias escritas numa caixa.
saboreamos o pôr-do-sol como se fosse o último,
comovemo-nos com a promessa de uma onda no mar
e com o nascimento de uma vida.

(sim, uma vida que vem tomar a nossa).

devagar sofremos a conta-gotas,
revoltados com a ideia de um futuro.
os nossos sonhos passam a condição
e são arrumados na estratosfera da consciência.

deixamos de mandar em nós,
agora quem manda é o corpo.
o corpo que todos os dias apodrece.
sempre mais.
sempre um bocadinho mais...

morrer de repente.
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sem tempo para dizer um ai
ou sequer ver a vida em rodapé.

a surpresa instala-se:
"ainda ontem estava tão bem, comadre.
e olhe, já cá não está...
a vida é mesmo assim -
não valemos nada, mesmo nada."

fica tudo desarrumado, mesmo o mais íntimo segredo.
e os outros questionam-se do paradeiro do número de conta,
onde estão as chaves de casa
e quem é aquele que afirma ser o filho.

não há tempo para pagar dívidas
nem para gozar o dinheiro que nos sobra.
alguém fica com ele, no problem.
who cares?
who fucking cares?

morrer de amor.
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morrer
de
amor
não
tem
explicação
nos
poemas.

Rodrigo Ferrão
Foto: Rodrigo Ferrão

Foto frase do dia: Italo Calvino

Finalmente Aleksandr Soljenítsin

A Sextante recupera um grande nome da literatura Russa, prémio Nobel em 70.


Sinopse:

Escrito em 1965, «Zacarias Escarcela» é um dos últimos textos soviéticos de Soljenítsin. O autor-narrador faz o relato de um passeio de bicicleta, na companhia da mulher, em busca da história russa. Neste conto, bem como nos outros cinco que compõem a presente antologia («A bem da causa», «Miniaturas», «A mão direita», «Que pena!», «A procissão pascal»), Soljenítsin, poeta das miniaturas da existência, nunca abdica de uma ironia sempre presente em surdina, nem de um leve sopro poético que torna o insignificante em símbolo.


Aleksandr Soljenítsin

Escritor russo, de nome verdadeiro Aleksandr Isaevich Solzhenitsyn, nasceu em Kislovodsk, no Cáucaso, a 11 de Novembro de 1918. O pai morreu na guerra, antes do seu nascimento. Aos seis anos, muda-se com a mãe para Rostov, onde vem a fazer estudos de Matemática. Participa na Segunda Guerra Mundial, sendo várias vezes condecorado. Uma carta dirigida a um amigo, em que expressa as suas opiniões sobre Estaline, leva-o à prisão e é condenado a trabalhos forçados. Em 1962 publica "Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch", um depoimento sobre o sistema prisional. "O Primeiro Círculo" e "O Pavilhão dos Cancerosos" , editados em 1968 no estrangeiro, trouxeram-lhe o reconhecimento internacional. Agosto 14 corresponde ao início de uma vasta obra de natureza histórica. Em 1970 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura, mas receando que lhe interditassem o retorno ao país, não foi recebê-lo a Estocolmo. Pouco depois da publicação de "O Arquipélago de Gulag" em Paris, em 1974, é preso, julgado por traição e, finalmente, condenado ao exílio. Instala-se nos Estados Unidos, prosseguindo a sua obra literária e procurando reunir os dissidentes na sua luta contra o sistema vigente na URSS. Em Setembro de 1991 foi por fim ilibado da acusação de traição pelo governo soviético e em Julho de 1994 volta à Rússia. Escritor de inspiração católica, a libertação interior do homem é o tema central da sua obra e a razão da sua luta.

*fonte: wook.pt

quarta-feira, 12 de março de 2014

Um barulho em tons de azul



Nasceu numa ilha.
Uma de nove.
Se fizesse a prova dos nove, noves fora zero ou um arquipélago.
Quando lhe perguntavam de onde era, primeiro dizia o nome de um arquipélago.
Um arquipélago no meio do Atlântico, a caminho para a América.
Só à segunda pergunta falava da sua ilha.
A Terceira.
E contava das lagoas, das caldeiras, das serras, do vulcão, do chá, do tabaco, da cana-de-açúcar, das vacas, dos donuts, dos aviões, dos óculos à aviador, dos americanos.
Mais contava que houve um tempo em que a todo arquipélago chamavam as Ilhas Terceiras, em respeito pela ordem cronológica das descobertas, porque depois do arquipélago das Canárias, as Ilhas Primeiras e do arquipélago da Madeira, as Ilhas Segundas.
Depois, como se houvesse uma ordem, contava dos naufrágios, das embarcações, das fragatas, das escunas, dos navios, dos vapores, dos lugres, dos brigues, das galeras, dos iates e dos patachos e das tempestades, dos ciclones, do vento carpinteiro.
Vento carpinteiro? – Perguntavam com um ponto de interrogação vertical como um ponto de exclamação.
Contava e ninguém sabia.
Contava e escutavam, uns curiosos, outros entediados, nunca precisou de um bocejo ou de um olhar camuflado para um relógio, de pulso ou de parede, para perceber um ouvinte em estado de tédio.
Perante o enfado alheio o seu silêncio.
Sabe que não deve gastar o latim em vão.
Sabe que em regra as pessoas perguntam sem querer saber a resposta.
Não sabe porque é assim. Apenas é.
Assim que em regra o seu silêncio.
Assim, nunca chegou a contar, como se houvesse uma ordem, como é viver à deriva no mar sob um céu baixo e aquático.
Como é viver sufocado por água por todos os lados e por horizontes intermináveis.
Como é viver sem chão, porque dentro de um barco.
Desde pequeno as palavras do avô, sempre as mesmas, que as ilhas são, naves, navios, feitos de chão e pedra, um chão sem habitantes, porque num navio: tripulantes.
Talvez por isso, não sabe dizer, meteu-se como o avô a marinheiro.
Envelheceu também.
A velhice é um naufrágio.
Hoje, com a mesma idade e sem avô, parece o avô, nos olhos o mesmo azul desbotado e líquido, as rugas iguais na forma iguais no lugar, e para evitar morrer do mesmo mal a boca vazia porque sem o cachimbo por inquilino, os dentes em melhor estado, percebe a insuportabilidade da solidão e a necessidade de falar mesmo quando ninguém a ouvir, apesar do seu silêncio ou do barulho das cagarras sobre o mar.



O polvo Jean Cocteau

« Le poète est exact. La poésie est exactitude. Depuis Baudelaire, le public a, peu à peu, compris que la poésie était un des moyens les plus insolents de dire la vérité. »

Jean Cocteau, Portraits-Souvenirs (1935).


Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Snobidando: Luna Miguel

In QUARTO DE HÓSPEDES, Língua Morta, 2013 (na Snob também)

Luna Miguel
Acompanhe a página da Livraria Snob no Facebook. Abre brevemente, em Guimarães. Pode lá encontrar este e muitos outros textos.

ALA... que é poesia XV

Continuo a juntá-los, colecção de pequenas pérolas que hão-de fazer um colar para usar em dias de festa, os poemas que António Lobo Antunes escreveu por aí, como mais este de hoje.
"Fado do Pedinte da Igreja dos Mártires" surge em forma cantada pela voz de Vitorino, no disco "A Canção do Bandido" de 1995. Leiam e ouçam.

Ana Almeida


Fado do Pedinte da Igreja dos Mártires 

Ai telhados de Lisboa
ai sombras que a noite tem!

que bando de pombos voa

desde Alfama à Madragoa

do Bairro Alto a Belém?



Ai se eu tivesse dinheiro

comprava-te uma andorinha,

um porquinho mealheiro

e uma rosa de cheiro

p’ra te cheirar à tardinha.



Ai lábios tristes de vinho

caixa de esmola a meu lado!

quando me sentir sozinho

minha viola de ceguinho

canta comigo este fado.



Deixa-me ficar contigo

sentado à porta da igreja

como ando por castigo

de muletas de mendigo

neste verso que te digo

anjo ou diabo, salvo seja.

António Lobo Antunes 


PARA VER O VÍDEO SIGA O LINK
http://www.youtube.com/watch?v=CuCV86Q9hGI

terça-feira, 11 de março de 2014

Poética ganha o passatempo «Pretérito Perfeito»



Parabéns Poética. Vai levar para casa o livro Pretérito Perfeito, da Raquel Serejo Martins.

O que tem que fazer agora? Contactar o blog para sabermos a sua morada! Procure-nos no facebook (na página ou no grupoou envie email para: blogueclubedeleitores@gmail.com

O que se pedia era responder à seguinte questão - Se fosse um verbo, qual seria? Em que tempo, e porquê?

E esta é a frase vencedora, com grande mérito. Parabéns!

Poética

Uma nova entrada no dicionário: 
poemar v. 1 ler e escrever poemas junto ao mar; 2 salvar a humanidade com poemas lidos e escritos junto ao mar
Uma nova entrada na gramática: 
Poemar – verbo unipessoal, apenas se conjuga no Presente do Indicativo, na 3ª pessoa do singular que é muito plural.
Exemplo: O mundo poema.

É do borogodó: procura-se um pai, de Drummond de Andrade

"O rapaz dirigia seu carro pela Avenida Brasil, rumo ao aeroporto do Galeão, onde ia receber o pai, que voltava do Chile, e eis senão quando…

O resto, imagina-se. Foi naquela noite de fevereiro em que o Rio, mais uma vez, transbordou de seu nome, e a cidade voltou a padecer os desmoronamentos, os desabrigos, as angústias e as mortes injustas de uma enchente. Na rua congestionada, ninguém avançava. Chuva matraqueando, tempo fugindo, todas aquelas pessoas em prisões de lata e vidro, temendo o pior. E o pai que deveria chegar às 20 horas. O pai chegando. O pai chegou? Ele não está familiarizado com esta bagunça em forma de cidade. É idoso. Mora em outro Estado. Como é que o pai sairá desta?

Inútil pensar nessas coisas, porém elas se pensam por si, na cabeça impotente. Nisto se abre, por milagre, um espaço suficiente para manobra, mas em sentido inverso ao do Galeão. O rapaz, menos por iniciativa própria do que por imposição dos motoristas que vinham atrás, aciona o motor, que pega também por milagre. A duras penas, sem saber como, volta para casa. Madrugada alta quando ele chega, mulher e filhos na maior aflição.

- Meu pai?
- Uê, você não trouxe seu pai? Aqui ele não apareceu.
Nem podia aparecer, claro. O Galeão fora do mapa. Que fazer? Os telefones, naturalmente, mudos. O jeito é esperar que a manhã traga serena tranquilidade, com esperança de aeroporto e salvamento. Sem dormir. Quem dorme numa dessas? O rapaz espera os escritórios se abrirem, na manhã ensopada. Corre ao escritório da companhia de aviação:
- Meu pai, o professor X, chegou?
- Bem, o avião chegou, mas sobre seu pai não podemos informar.
- Como não podem? Então sabem que o avião chegou e não sabem quem veio nele?
- É, não sabemos.

De novo, rumo ao Galeão. O trânsito ainda está difícil, porém não impossível. Pelo caminho, trágicos sinais deixados pelo temporal. No Aeroporto, a pergunta continua sem sorte:
- Não sabemos se ele desembarcou ou não.
- E a lista de passageiros?
- Não está conosco.
- Está com quem, então?
- Não sabemos.
Um informante, melhor, um desinformante faz ironia:
- Numa sessão espírita, o senhor encontra seu pai.
- Eu só desejo que um dia o senhor se veja na minha situação, para ouvir isto de alguém, e sentir vontade de fazer com ele o que eu sinto vontade de fazer com o senhor.
- Desculpe, eu…

Mas o filho já demandava outro balcão, fazendo a eterna pergunta, e ninguém sabia dizer-lhe onde estava, se é que estava em algum lugar, o pai vindo do Chile. Chile? A palavra soava diferente, como se contivesse não sei que partícula perigosa. As autoridades sabiam tanto quanto a empresa, isto é, nada.

Classificado no Jornal do Brasil: Perdeu-se um pai na Ilha do Governador. Botar também no rádio. Meu pai, meu pai. Como pôde sumir assim? Aconselham-me a ir à Polícia Marítima e Aérea, na Praça Mauá. Mas daqui não saio sem vasculhar todo o Aeroporto. Ali está uma garota de chapeuzinho verde…

Felizmente para as histórias confusas de hoje, existe moça de chapeuzinho verde, fada ou coisa semelhante, que descobre o perdido e, de bonificação, ainda sorri para a gente. O rapaz expõe-lhe o problema do pai. Pela primeira vez alguém ouvia, considerava e buscava resolver o problema. Ela saiu e voltou, com outro sorriso no rostinho de relações-públicas.
- Seu pai chegou sem novidade. O nome dele está na relação de passageiros desembarcados.
- E para onde o levaram, que não aparece?
- Para lugar nenhum. Deve ter dormido por aí, até o temporal passar.
- Mas não apareceu em casa.
- A essa hora já deve estar lá. Volte e há de encontrá-lo.
Não é que estava? Calmo, contando à nora e aos netos uma noite em banco de aeroporto, resignado, à espera de o toró passar.

Meu pai! Que susto! Que desinformação! Que alívio! Etc. O rapaz lembrou-se de Londres, onde perdera duas pastas num táxi, com passaporte e tudo, e na manhã seguinte a polícia o chamava para receber de volta os objetos recolhidos por um serviço policial que só não resolve o caso de quem perdeu a memória. Tivera vontade de telegrafar para Londres: Procurem meu pai na enchente aqui no Brasil. Felizmente, repito, a moça de chapeuzinho verde, sozinha, valia tanto quanto a Metropolitan Police."

Drummond de Andrade *

* escolhido por Penélope Martins

a-ver-livros: respiração

Respiro na nesga 
de luz 
que a tua ausência
ainda não apagou

respiro 
sôfrega 
no jogo de sol e sombra 
que desenha 
saudade nas paredes

respiro por entre 
o ondular suave
das cortinas
pestanas dos dias
guelras da alma
perdida

Ana Almeida

* para saber mais sobre a pintora galesa Gwen John
siga o link www.bbc.co.uk/arts/yourpaintings/artists/gwen-john

segunda-feira, 10 de março de 2014

Foto frase do dia: Ernest Hemingway

Bom regresso, Lídia!

Lídia Jorge, uma das mais notáveis escritoras portuguesas, está de volta com este «Os Memoráveis», publicado pela Dom Quixote. Fiquem com as primeiras pistas... e façam uma boa leitura!


SINOPSE:

Em 2004, Ana Maria Machado, repórter portuguesa em Washington, é convidada a fazer um documentário sobre a Revolução de 1974, considerada pelo embaixador americano à época em Lisboa como um raro momento da História. Aceitado o trabalho, regressa, contrata dois antigos colegas, e os três jovens visitam e entrevistam vários intervenientes e testemunhas do golpe de Estado, revisitando os mitos da Revolução. Um percurso que permite surpreender o efeito da passagem do tempo não só sobre esses "heróis", como também sobre a sociedade portuguesa, na sua grandeza e nas suas misérias. Transfiguradas, como se fossem figuras sobreviventes de um tempo já inalcançável, as personagens de Os Memoráveis tentam recriar o que foi a ilusão revolucionária, a desilusão de muitos dos participantes e o árduo caminho para uma Democracia. Paralela a esta acção decorre uma outra, pessoal e íntima: a história do pai da protagonista, António Machado, que retrata em privado o destino que se abate sobre todos os outros. Todos vivem na Democracia, uma espécie de lugar de exílio. Mas um dia, todas as misérias serão esquecidas, quando se relatar o tempo dos memoráveis.

Emílio Miranda, dia 13

Concordas?

É ridículo pensarmos que o silêncio nos ajuda a pensar;
Avarento de todas as vozes, engole-nos os pensamentos
E as lembranças e a consciência que tínhamos de nós.
Inventamo-nos numa outra forma com que preenchemos
O nosso vazio: o que deixamos na ânsia de nos despedirmos…
É ridículo acreditarmos que o tempo cura todas as feridas
Quando estamos permanentemente a abri-las em novas
Memórias… É ridículo, não concordas?

Emílio Miranda 

Foto: Cláudia Miranda

a-ver-livros: a raiz

Na palavra
a raiz
do bem e do mal
e do resto
do que fomos juntos
e jamais seremos
separados
da lágrima, do sangue
e do sal suor saudade
que a primavera 
empurra
de novo
para este peito

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor alemão Olaf Hajek
siga o link www.olafhajek.com

domingo, 9 de março de 2014

Cronicando pela Ásia... a descer o Laos até Vang Vieng

Descendo o Laos »» Vang Vieng,
08 de Maio de 2009


Parti de manhã cedo numa mini-van. Comigo seguiam um francês de meia idade e uma prostituta asiática, um inglês hippie (o John), o australiano Ângelo e a sua namorada Rossana.

Vim a falar muito tempo com John. Um daqueles que só se encontram nestas viagens. Tinha vindo da Índia, de onde estivera os últimos seis meses. Parecia encantado por estar a contar as suas histórias. De como estivera preso na Holanda por posse de drogas. 'Leves' - como dizia...

Foi ele que me falou da Índia, como ninguém o havia feito. De repente cresceu em mim a urgência de lá ir. Só conhecia a Índia de Hermann Hesse, Aravind Adiga ou de Arundhati Roy - a Índia dos livros. E o que aquele homem fez... foi contar mais uma história - a sua. E a sua, misteriosamente, era já a minha.


O Laos é um país esplêndido. A estrada vai descendo e contornando montanhas sem fim. Os montes sucedem-se uns atrás dos outros, num verde muito colorido. Volta e meia lá aparecem umas casas e uns cafés, umas mercearias e pequenas lojas para turistas. Tudo numa pobreza agoniante, sem explicação. Já tinha percebido que o Laos é um país duro, mas foi a descê-lo que soube o quanto.




Depois de uma pausa na área de serviço (com a melhor vista que já tive), lá fomos para as últimas horas. Faltavam 3, de uma viagem que demorou 8. Um pouco antes de pararmos, o francês pegou-se connosco - simplesmente por irmos a falar. Dirigiu-se a nós com vários insultos, numa rudeza inexplicável. Afirmando-se dono e senhor da carrinha e do silêncio que dizia ter direito. Aquela pega fez com que o resto da viagem fosse tenso e passado em silêncio. E foi para esquecer.


Chegado a Vang Vieng, procuro o rio. Sei que é do outro lado que se encontram uns bungalows, onde pretendo passar esta noite. Observo a cidade, que não é mais que um grupo de casas separadas por uma estrada. Muita gente a passar, sentadas em cima de camionetas de caixa aberta. Outras seguem de bicicleta. Na verdade, esta cidade é uma pequena aldeia. Mas tudo aqui é bonito.  E simples.



Passo o rio e chego à minha nova casa. Lá estou eu no paraíso, uma vez mais. O lugar é inóspito, nada tenho à minha volta a não ser paisagem. Por entre as casas pastam vacas e o único barulho que ouço é o dos badalos. Entro na minha cabana, tomo banho e deixo-me dormir um pouco. Enquanto faço tempo para jantar, pego num livro e leio. Sinto o balouçar da cama de rede que tenho na varanda. E apenas isso importa agora... Que bem me soube descansar um pouco.



Rodrigo Ferrão 

Jack Kerouac (Sur la route)

Jack Kerouac (Sur la route).


Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Pedro Guilherme-Moreira lança «Livro sem Ninguém»

Saiu pela Dom Quixote o 2.º romance do escritor Pedro Guilherme-Moreira. Finalista do Prémio Leya, este novo trabalho tem cento e sessenta páginas e uma boa história para conhecer.


SINOPSE:

Na rua do arco-celeste há sete casas, cada uma de sua cor; e também um café, uma horta, um jardim, uma florista, uma sucata, um infantário e uma escola. Mas, embora lá vivam pessoas - que frequentam o café, trabalham na horta, lêem no jardim, compram flores para oferecer a quem amam, se desembaraçam dos seus podres ou jogam à bola no recreio -, esta história é contada apenas pelas coisas que lhes pertencem à medida que vão mudando de lugar, e por isso se diz que o livro é sem ninguém. E, ainda assim, durante este ano extraordinário, acontece de tudo na rua: há quem se apaixone e quem se separe, quem nasça, quem morra, quem mate e até quem, depois do trauma, consiga uma vida nova. Mas, como em todas as ruas, havemos de encontrar nesta preconceitos, dúvidas, alegrias, segredos e desgostos. Enquanto isso, o tempo vai passando sem darmos por ele, mas a montra da florista e o que se colhe ou semeia na horta nunca nos deixam perder do mês em que estamos.

Num romance profundamente original, a um tempo cru e delicado, poético e realista, Pedro Guilherme-Moreira usa o microcosmos da rua para desenhar o retrato da sociedade contemporânea e abordar temas tão polémicos como a xenofobia, a violência doméstica, a repressão sexual ou o envelhecimento. E - miraculosamente - sem precisar de ninguém.