terça-feira, 30 de outubro de 2012

Clube de Leitores COM_vida: Jorge Silva Melo


A VÁRIAS VOZES

Disse-o a maravilhosa Natalia Ginzburg (editada entre nós pela Cotovia há alguns anos e os volumes não esgotaram): quando começamos a escrever teatro, deixamos de usar o nosso "eu". "Eu" tanto pode ser o jornalista que inventámos como a celebridade que esse jornalista na nossa imaginação vai entrevistar. Ou "eu" pode ser a criada que abre a porta. Ou a rapariga frívola que casou "per allegria", como escreveu logo na sua primeira peça "Casei contigo por alegria". É esse o prazer arrebatador do teatro: o narrador explode em várias vozes, elas encontram-se, desencontram-se, revelam-se, escondem-se, calam-se. "Nunca mais deixei de ter esse prazer, de inventar personagens que posso tratar não por "ele" ou "tu" mas cada uma como um outro "eu".
E é esse o prazer de ler teatro, irmos de passeio pelas vozes nuas das personagens, sem sabermos como se vestem naquele dia, nem sabermos bem como é mobilada a casa "elegante" ou o "tugúrio" que nas sempre breves indicações de cena lá surgem. Cresci a ler teatro (mesmo quando não pensava tirar disso o magro sustento) que na altura era publicado nas mesmas editoras e nas mesmas colecções que os melhores romances. E lia Jean-Paul Sartre na Europa-América, Arthur Miller ou Ibsen na Presença, Max Frisch na Portugália, Jarry na Minotauro, Camus nos Livros do Brasil. Agora, a edição de teatro soltou-se das editoras chamadas normais, tem pequenas prateleiras ao fundo das poucas livrarias, é coisa de especialistas (o que contraria profundamente a sua longa e universal história...). Cotovia, Bicho do Mato, Relógio d’Água ainda ousam publicar de vez em quando - e autores fantásticos. A Livraria do Teatro Nacional (no Rossio) tem uma boa selecção e encontram-se raridades. E nós, os Artistas Unidos, publicamos os Livrinhos de Teatro: livros pequeninos, baratos, modestos, maravilhosamente paginados pelo Pedro Serpa a partir do desenho que para nós criou o Olímpio Ferreira. E já editámos setenta títulos, ou seja, umas cento e muitas peças, inéditas, de vários países, de muitas línguas, muitos autores. Uns venderam pouco, outros já esgotaram. E agora revejo provas de um que sairá no início de 2013, que bom: este que vai na imagem. Quem diria? Com a idade, já cheguei a editor de Jean-Paul Sartre. Que honra, que alegria.


Jorge Silva Melo
(Convidado do Clube de Leitores)

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