segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

1º Parágrafo: As Meninas


Sentei na cama. Era cedo para tomar banho. Tombei para trás, abracei o travesseiro e pensei em M.N., a melhor coisa do mundo não é beber água de coco verde e depois mijar no mar, o tio da Lião disse isso mas ele não sabe, a melhor coisa mesmo é ficar imaginando o que M.N. vai dizer e fazer quando cair meu último véu. O último véu! Escreveria Lião, ela fica sublime quando escreve, começou o romance dizendo que em dezembro a cidade cheira a pêssego, Imagine, pêssego. Dezembro é tempo de pêssego, está certo, às vezes a gente encontra as carroças de frutas nas esquinas com o cheiro de pomar em redor mas concluir daí que a cidade inteira fica perfumada, já é sublimar demais. Dedicou a história a Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte, tudo em latim. Imagine se entra latim no esquema guevariano. Ou entra? E se ele gostava de latim. Eu não gosto? Nas horas nobres, deitava no chão, cruzava as mãos debaixo da cabeça e ficava olhando as nuvens e latinando, a morte combina muito com latim. Não tem coisa que combine tanto com latim como a morte. Mas aceitar que esta cidade cheira a pêssego, exorbita. Qué ciudad será esa? ele perguntaria na maior perplexidade. Tercer Mundo? Terceiro Mundo. Y huele a durazno? Na opinião de Lia de Melo Schultz, cheira. Ele então fecharia os olhos onde eram os olhos e sorriria um sorriso onde era a boca. Estoy bien listo con esas mis discípulas. Enfim, problema dela, o meu é M.N., um M.N. nu em pêlo, muito mais em pêlo do que eu, ele é peludo à beca, assim na base do macaco. Mas um macaco lindo, a cara tão intelectual, tão rara, o olho direito um pouco menor do que o esquerdo e tão triste, todo um lado da sua cara é infinitamente mais triste do que o outro. Infinitamente. Eu poderia ficar repetindo infinitamente infinitamente. Uma simples palavra que se estende por rios, montes, vales infinitamente compridos como os braços de Deus. As palavras. Os gestos se renovando como a pele da cobra rompendo lisa sob a pele velha. E não é viscosa, toquei nela na fazenda, era verde e espessa mas não viscosa. O gesto de M.N. também novo, não é verdade que tudo será como das outras vezes, ele virá de pele limpa, inventando o inventado nas suas minúcias. Se Deus está no pormenor, o gozo mais agudo também está na miudeza, ouviu isto, M.N.? Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços, a cena do biquíni não tinha a menor importância mas assim que começava a tirar os cílios, era a glória. Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo. Pura convenção achar o sexo obsceno. E a boca? Inquietante a boca mordendo, mastigando, mordendo. Mordendo um pêssego, lembra? Se eu escrevesse, começaria uma história com esse nome, O Homem do Pêssego. Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite: um homem completamente banal com um pêssego na mão. Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava e apalpava entre os dedos, fechando um pouco os olhos como se quisesse decorar-lhe o contorno. Tinha traços duros e a barba por fazer acentuava seus vincos como riscos de carvão mas toda a dureza se diluía quando cheirava o pêssego. Fiquei fascinada.


L'année 2012... e o que se espera de 2013 para o Clube de Leitores


2012 arrancou em grande, com o blog a ganhar um concurso como "Blog do ano 2011" na categoria Livros / Poesia / Literatura. Foi uma verdadeira batalha, com imensa gente envolvida a apelar ao voto. Para trás ficaram nomes de respeito do mundo da blogosfera.

É com prazer que anuncio que muito em breve vamos voltar a concorrer. Espera-se o mesmo entusiasmo e alegria. Participar será sempre positivo. Ganhar será especial - não há ninguém que goste de perder.

2012 foi, por isso, um ano de afirmação. O sonho de um pequeno aventureiro transformou-se num projecto que envolve muita gente. Não só os que escrevem aqui, mas todos aqueles que nos acompanham. Os números são impressionantes, mas não vou insistir neles... Basta estar atento a todos os locais onde estamos representados para perceber que o Clube de Leitores arrasta multidões e traz sempre debates interessantes e participados.

A nível pessoal, 2012 representou o fim de um ciclo profissional ligado aos livros. Muito me preocupa o "estado de leitura" dos portugueses. E é inegável que as editoras têm que se adaptar aos tempos que correm. Às muitas que desapareceram e às dificuldades que as livrarias passam; fica a minha luta para que o "objecto livro" não morra e para que a leitura não caia.

Este espaço continua a ser uma montra muito privilegiada do que se faz neste mundo. Este ano trouxe um importante aliado que fez com que o blog saísse do anonimato da sua casa para as ruas - o Bairro dos Livros. Tem sido mágico cruzar-mo-nos com as pessoas que nos teclam e gostam do nosso trabalho. É principalmente por eles que o entusiasmo não esmorece.

O blog continuará a dar estampa do melhor que se faz por cá. Vai celebrar a poesia, a ilustração e pintura, a chegada de novos talentos e a partida de outros. Os seus membros vão estar em sintonia para continuar a reinventar este espaço - de maneira alguma vamos adormecer e desapontar os que nos acompanham.

E não esquecemos a nossa veia de escritores. Apesar de não sermos autores consagrados, todos nós crescemos e nos afirmamos cada vez mais na escrita. Isso é algo que continuarei a procurar com os colaboradores. O blog vai escrevendo o seu próprio livro. Nada me poderia encher mais de orgulho.

Este ano vai trazer mais colaborações de autores. Seja pela forma directa seja pela forma de entrevista. É um objectivo que quero ver cimentado. Este espaço será de quem o quiser usar. Basta apenas alinhar no espírito e filosofia do mesmo. Disso não vamos abdicar - qualidade e originalidade acima de tudo!

Para ser igual à maioria... não vale a pena perder tempo. Não vale a pena existir. Espero que o sonho continue a comandar a vida de todos nós.

Cá estaremos!

Feliz ano de 2013. E boas leituras, pois claro!

Rodrigo Ferrão

a-ver-livros: adeus, ano velho, olá Leon Wyczółkowski

Onde é que ele foi
que passou a correr 
e tão desbragado

Onde foi - deixando 
para trás este rasto de destruição
e meia dúzia de páginas sujas
dos dedos lambidos
dos sonhos desfeitos

Onde é que foi o maldito
que não o quero
voltar a encontrar

* para conhecer mais sobre o pintor polaco Leon Wyczółkowski
siga o link www.pinakoteka.zascianek.pl/Wyczolkowsk

domingo, 30 de dezembro de 2012

Espreitar o passado no Magazine Bertrand


Publicado entre 1927 e 1933, de acordo com informação retirada da Hemeroteca de Lisboa, o Magazine Bertrand, sob a direcção de João de Sousa Fonseca, tinha de tudo um pouco.

Concursos de autores, pequenos contos destinados ao público infantil, informações de carácter geral, estudos fotográficos, anedotas, crónicas femininas, desenhos, enfim, uma verdadeira leitura para todos como se anunciava no seu título.

António Lima (1891-1958),
ilustração para a capa do Magazine Bertrand,
número 42, de Junho de 1930

Sendo seu editor comercial as Livrarias Aillaud e Bertrand, sitas na Rua da Anchieta, nº 25 em Lisboa, por ele passaram nomes de relevo da literatura portuguesa, como sejam, Raul Brandão, Teixeira de Pascoais e Vitorino Nemésio, entre muitos outros.

Numa leve incursão pelas publicações periódicas que maior êxito alcançaram nos anos vinte em Portugal, percebemos que o Magazine Bertrand a par do ABC , a Ilustração e a Civilização, fizeram parte de uma geração de publicações artístico-culturais que convivem com nomes mais conhecidos como a Orpheu, a Revista Portugueza ou a Contemporânea.
Rodolfo da Cunha Reis (1909-1929),
ilustração para a capa do Magazine Bertrand,
número 34, de Outubro de 1929

Poemas de Ano Novo - Com Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade

Cortar o tempo

«Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.

Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para diante vai ser diferente»

Carlos Drummond de Andrade

(foto: Jungle Line - num comboio na Malásia, 2009)

«Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.»

Cecília Meireles

a-ver-livros: exposição indecente e Violeta Lopiz

Toda a nudez será castigada
- e a da alma?
Será alto o preço a pagar
pela indecente exposição
das nossas sombras
dos nossos monstros?

Teremos que expor as chagas
à luz / ao fogo
para as sarar
queimá-las talvez no álcool
dos brindes, na acidez
dos desejos

* para conhecer melhor a ilustradora espanhola Violeta Lopiz
siga o link violetalopiz.blogspot.pt

sábado, 29 de dezembro de 2012

Poema à noitinha... Charles Baudelaire




Os Mochos

«Sob os feixos onde habitam,
Os mochos formam em filas;
Fugindo as rubras pupilas,
Mudos e quietos, meditam.

E assim permanecerão
Até o Sol se ir deitar
No leito enorme do mar,
Sob um sombrio edredão.

Do seu exemplo, tirai
Proveitoso ensinamento:
— Fugí do mundo, evitai

O bulício e o movimento...
Quem atrás de sombras vai,
Só logra arrependimento!»

*Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães (edição Relógio D`Água)

Livros que deram filme... Os Miseráveis, Victor Hugo

Hollywood traz-nos mais um musical - uma fórmula que parece agradar à Academia e ao público em geral. Desta vez com a grande obra de Victor Hugo - Os Miseráveis. Realizado pelo criador de «O discurso do Rei», Tom Hooper; conta com Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Eddie Redmayne, Aaron Tveit, Samantha Barks, Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen nos principais papéis.

Fiquem com o trailer do filme.


«A história passa-se na França do século XIX entre duas grandes batalhas: a Batalha de Waterloo (1815) e os motins de Junho de 1832. Daqui resulta, em cinco volumes, a vida de Jean Valjean, um condenado posto em liberdade, até a sua morte. Em torno dele giram algumas pessoas que vão dar os seus nomes aos diferentes volumes do romance, testemunhando a miséria deste século, a pobreza miserável de: Fantine, Cosette, Marius, mas também Thénardier (incluindo Éponine e Gavroche) e o inspector Javert.»

2013 traz novo livro de João Tordo

2013 traz novo livro de João Tordo: «O ano Sabático», publicado pela Dom Quixote. Para já... só mesmo a capa.



«Nasceu em Lisboa em 1975 num ambiente artístico. Filho do cantor Fernando Tordo e de Isabel Branco que sempre esteve ligada ao cinema e mais tarde à moda. Andou no Liceu Pedro Nunes e «era o único que não jogava rugby», em vez disso lia, 'vício' que lhe pegou o padrasto depois do divórcio dos pais. Acabado o 12º ano, resolveu ir para Filosofia por ser «uma boa maneira de se pôr a pensar». Entrou na Universidade Nova de Lisboa e sentiu o peso da exigência do curso. As aulas de Filosofia medieval marcaram-no e confessa que a partir dali nunca mais viu o mundo da mesma maneira. Depois do curso ainda trabalhou em Lisboa algum tempo como jornalista freelancer mas sentiu a «necessidade de sair daqui e ir viver outras coisas». Foi o que fez e em 1999 rumou a Londres para fazer um mestrado em Jornalismo. A cidade influenciou-o a tantos níveis que quis ficar até «ao limite das suas possibilidades», mas quando deu por si a trabalhar num bar e a fazer traduções percebeu que era tempo de partir. A próxima paragem tinha que ser Nova Iorque - sempre o fascínio das cidades - e os cursos de escrita criativa do City College. Ia às aulas de manhã, servia às mesas de um restaurante durante o jantar e escrevia pela noite dentro.»

a-ver-livros: boletim meteorológico e Lilian Westcott

Deixo no ano velho
a miniatura de mim
versão evidente do que não 
cheguei a ser
bruma, neblina, geada
que nunca a trovoada
sequer o relâmpago

Há quem não nasça
para domar os elementos
senão submeter-se às variações
das latitudes médias



* para conhecer mais sobre a pintora Lilian Westcott
siga o link www.tfaoi.com/newsm1

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O fim do mundo em livros

O mundo não acabou e as profecias caíram todas por terra... pelo menos durante uns tempos. Voltamos outra vez da realidade para a ficção. Se tivesse mesmo acabado, quantos livros teriam deixado fechados na estante ou empilhados na mesa de cabeceira?

Um número considerável, talvez, mas não desanimem. Se o Apocalipse da vida real for minimamente semelhante aos narrados na literatura, há sempre uma boa hipótese de algum de vocês ser o único ou um dos poucos sobreviventes. Tema mais que trabalhado e pensado em múltiplos cenários, um bocado pelas várias artes, literatura, cinema, música, de um tudo um pouco.

Não se encaixando na perfeição no conjunto de posts sobre estudos utopistas e distopias, não deixa de ser um cenário que se enquadra também neste tipo de análise. Mundos inexistentes e pensados em realidades alternativas para o bem e para o mal numa espécie de auto-consciência das marcas da nossa passagem pelo mundo.

Deixo-vos então alguns exemplos da literatura sobre os fins do mundo, ficam de fora centenas de títulos sem contar com aqueles que não sendo fins andam por lá perto. Começando pelo início de todos os inícios:



“Apocalipse”, livro final do Novo Testamento da Bíblia (45 e 90 D.C.)

É intitulado e iniciado pela palavra "Apocalipse" que, no grego, significa "revelação", "descoberta". O autor, identificado como o apóstolo João, descreve eventos futuros que foram revelados a Jesus Cristo, que passou tal conhecimento aos seus discípulos.

“O primeiro anjo tocou a trombeta. Granizo e fogo misturados de sangue foram atirados sobre a terra. Um terço da terra transformou-se em fogo, assim como uma terça parte das árvores e toda erva verde. O segundo anjo tocou a trombeta. Foi lançada no mar como que uma grande montanha ardendo em chamas e a parte do mar converteu-se em sangue. Morreram parte das criaturas que vivem no mar e foram destruídos parte dos navios.”

“O Último Homem”, de Mary Shelley (1826)
Da mesma autora de “Frankenstein”, o livro passa-se no ano 2100. Lionel Verney, filho de uma família nobre lançada à pobreza, é o único sobrevivente de uma praga que, gradualmente, destruiu a humanidade.

“Enquanto isso, o meu pai, esquecido, não conseguia esquecer. Ele lamentava a perda daquilo que para ele era mais necessário do que ar ou comida – a excitação do prazer, a admiração dos nobres, a vida luxuosa e polida dos grandes. A consequência foi uma febre nervosa, durante a qual ele recebeu os cuidados da filha de um camponês pobre, que lhe ofereceu abrigo.”



"A Dança da Morte”, de Stephen King (1978)

Considerado um dos melhores livros do autor, retrata a vida de sobreviventes de um vírus extremamente mortal que se espalha pelos Estados Unidos após um homem escapar de uma instalação para testes biológicos.

"Por volta das quatro horas, nuvens começaram a se formar sobre Manhattan e o som de trovão ecoava de lá para cá entre os muros da cidade. Relâmpagos bifurcavam muito baixo, sobre os edifícios. Era como se Deus estivesse a tentar assustar as poucas pessoas remanescentes fora de abrigo. A luz havia tinha-se tornado amarela e estranha, e Larry não gostava disso."

1º Parágrafo: Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres


O coração tem que se apresentar diante do Nada sozinho e sozinho bater em silêncio de uma taquicardia nas trevas.


a-ver-livros: a procura e Gérard Dubois

Deixa-me procurar a página onde estão as instruções
para combater a rotina e o desinteresse. 

Deixa-me procurar nas entrelinhas o sentido deste caminho
que percorro na senda de uma glória qualquer
Suspende as madrugadas de águas claras 
enquanto procuro o leito certo para o rio 
que corre por dentro de mim 
sem foz

* para conhecer mais sobre o pintor francês Gérard Dubois
basta seguir o link www.gdubois.com

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Poema à noitinha... Fernando Assis Pacheco

A Bela do Bairro

«Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? Quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque

ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor» 


*Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”

A primeira edição de A Musa Irregular apareceu em Lisboa, com a chancela da Hiena Editora, em Fevereiro de 1991. Teria segunda edição em 1996 e terceira em 1997, ambas nas Edições Asa. A presente (da Assírio & Alvim, 2006) segue naturalmente a primeira, efectuando as correcções que o próprio Fernando Assis Pacheco deixou manuscritas.

Cronicando pela Ásia... O dinheiro Cambodjiano

Siem Reap,
18 de Abril 2009

Depressa compreendi que o dinheiro do Cambodja não serve de nada. Aquele país está vendido aos dólares americanos - a caixa de multibanco dava para levantar as duas moedas. Foi em vão que tentei que resultasse, mas não passavam de tostões e cambio é expressão que ali não existe. Diria que uma notinha daquelas devia valer um décimo de dólar. A conversão pareceu-me bastante complicada e não tinha grande apoio da população.

Estava no país do dólar ou nada. Um café valia um dólar, uma água de meio litro ou de litro podia valer a mesma coisa - "one dollar", uma refeição podia ir até aos dois dólares... Tudo custa mais um ou menos um. O que torna o país caro - se compararmos com a Tailândia. Há que estar atento, podemos ser facilmente enganados.


Apesar disto, deu para visitar um pequeno mercado nocturno, jantar e ir a um bar. No mercado havia tanques onde se podia fazer um tratamento para os pés com peixinhos vivos! Por 3 dólares. Mais à frente descobri uma venda de crocodilo. Estava fechada. Presumi que era possível encontrar tudo o que está relacionado com o bicho, mas não fiz mais perguntas... Àquela hora não seria, certamente, iguaria que procurava.


Sentei-me num pequeno bar. Resolvi experimentar pela primeira vez um côco. Não sendo péssimo, também não achei grande graça. As conversas rolavam sobre o plano para visitar Angkor Wat no dia seguinte. E, quase acto continuo, apanhar um avião para a Malásia logo após a descoberta do local.

Angkor Wat estava perto. Ia ver míticos templos perdidos na selva. A excitação não podia ser maior. Não era para menos... aparecem partes deles nos filmes e no no meu melhor imaginário de aventura. 

Estava cansado. Adormeci na cadeira do bar. Não sei precisar quanto tempo, mas foi a primeira etapa para cair redondo na cama...


Rodrigo Ferrão

1º Parágrafo: Felicidade Clandestina


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.


a-ver-livros: águas marinhas e André Neves

Enrodilho-me nas tuas páginas
bordadas a oiros e águas marinhas
sou fiel ao ritmo das palavras que teces

Hei-de encontrar-te do outro lado
para voltarmos a subir às árvores

* para conhecer mais sobre o ilustrador brasileiro André Neves
basta seguir o link confabulandoimagens.blogspot.pt

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Poema à noitinha... Jorge Reis-Sá


Dois Amantes, o Mundo

«dois amantes, o mundo
cada um no seu reino, beijam-se nas praias
quando as ondas batem as areias

o mar é o meu navio,
hoje naufrago feliz

sabes quem sou, as dunas
que se levantam com o vento são
os sonhos do amor que dormita
em sossego nas praias

a terra és tu o mar sou eu»

*Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"  - Campo das Letras

Cronicando pela Ásia... Cambodja: a fronteira

Cambodja, 
18 de Abril 2009

Mesmo antes de entrar neste país, uma pequena descrição da situação na fronteira. Saí da estação e fui levado para uma casa no meio do nada. Para fazer o quê? Bem, nada mais simples: tirar o visto! Sim, tudo aquilo era estranho e nada se assemelhava a uma fronteira. Na verdade não era. Estava ainda uns bons metros à frente. Ali negociava-se a entrada num país. Sem se saber, de facto, se aquele carimbo serviria para alguma coisa.


Tiraram uma foto a cada pessoa e cobraram 1000 Bat para seguir. Queriam acrescentar também a viagem para o destino, mas, para descontentamento dos locais, os estrangeiros resolveram fazer uma aliança e decidi-lo a partir do Cambodja - e não da Tailândia. De facto, foi a melhor opção.

Passei para o lado de lá. Mas não julguem que foi uma recepção calorosa. Na verdade, caminhei por uma terra de ninguém, um bom par de metros. Vi vários tropas armados, alguns muros com arame farpado, um casino (ridículo) no meio daquelas fronteiras - naquilo que parecia ser uma zona de "não agressão". Estradas de pó e gente com a cara tapada. Diria que foi algo assustador.


Fizemos negócio com um táxi para seguirmos para uma pequena cidade junto a Angkor Wat: quarenta dólares, dez a cada. Fomos pelo caminho menos legal, queriam obrigar os estrangeiros a seguir de camioneta. Mas isso tinha implicado pôr em cima da mesa mais dez dólares.

E fizemos alguns quilómetros. Demorámos ainda umas poucas horas para chegar ao destino. Não por culpa da distância, mas porque a estrada era terrível. Havia sítios onde pura e simplesmente havia um grande buraco e os veículos contornavam pela terra batida ao lado. O condutor tinha que estar atento às vacas, motas, pequenos carros apinhados de gente que desgovernadamente se cruzavam por todo o lado. Aproveitei para dormir um pouco - mesmo assim, tirando uma ou outra foto.

Tudo aqui é mais seco e há pouca vegetação. Dá para perceber que é francamente mais pobre que a Tailândia. Na berma da estrada vendem-se recargas de gasolina para os motociclos em garrafas da pepsi, fanta ou coca-cola. 

Dirigi-me a uma Guest House. O calor é absolutamente letal. Sou recebido por uns cãezitos e deixo ficar as coisas. Vou ao multibanco e sou confrontado com novo desafio: duas moedas - a local e "os" dólares. Tirei algum dinheiro local, mas depressa percebi que não foi boa ideia... 


Rodrigo Ferrão

1º Parágrafo: A Maçã no Escuro


Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme. O modo como tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. Até que mais profundamente tarde a lua desapareceu.


a-ver-livros: ao virar do dia com derbyblue

Ao virar do dia
está o futuro
preso das garras do gato
das folhas de um livro
e dos teus olhos de menina

* para conhecer melhor o ilustrador brasileiro conhecido como derbyblue -
na verdade Francisco José de Souto Leite, da cidade de João Pessoa -
é só seguir o link para a sua galeria Flickr

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Poema à noitinha... Sophia de Mello Breyner Andresen


Esta Gente

«Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo»

*Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia"

A Noite de Natal de Sophia


Era uma vez uma menina rica, chamada Joana. Apesar de ser rica, Joana não tinha ninguém para brincar. Um dia, viu passar um rapaz pobre e pensou que seria um amigo perfeito…ficaram amigos!

Na noite de Natal, Manuel, o rapaz pobre, não recebia presentes, por isso Joana foi dar-lhe três dos seus presentes, que tinha recebido.

Quando chegou ao pinhal, percebeu que não sabia onde ficava a cabana onde Manuel vivia. Mas olhou para o céu e viu uma estrela e resolveu segui-la. Pouco depois, encontrou Três Reis do Oriente que também a seguiam. Quando chegou à cabana, viu Manuel e ao seu lado estavam um burro e uma vaca como no presépio em Belém.

Publicado em Portugal pela Figueirinhas, faz parte do Plano Nacional de Leitura, tal como quase a totalidade da sua obra. Foi escrito em 1959 e publicado no ano seguinte. Para além da escrita conta ainda com as fantásticas ilustrações do Júlio Resende.


"Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.

E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.

Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.

Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.

Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas.

Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.

Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário. As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.

Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes."

1º Parágrafo: A Vida Íntima da Laura


Vou logo explicando o que quer dizer “Vida íntima”. É assim, vida íntima quer dizer que a gente não deve contar tudo o que se passa na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa.


a-ver-livros: nudez e János Czencz


Despiu-se na manhã bonita
e amou um livro
como quem ama as sombras

que fazem as libelinhas tontas
nas nuvens baixas

Despiu-se na manhã
e quando deu por isso
vestia a noite que chegou

* para conhecer mais sobre o pintor húngaro János Czencz
siga o link www.terrasoft.hu/czenczj

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Feliz Natal - com o Clube de Leitores! Palavras de Fernando Pessoa

Chove. É Dia de Natal


«Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.»

*Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

1º Parágrafo: A Hora da Estrela


Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.


citação natalinha: Moita Flores

Gaspar há muito que não andava de camelo.
A idade, os ossos, os solavancos do animal já eram peso demais para a saúde do ancião. Mandou chamar a limousine e foi ao cofre procurar um tesouro para levar a Belém. 


Era um mundo de pedras preciosas, metais raros, onde abundava ouro, prata, platina. Hesitou quando olhou os maços enormes de acções de várias companhias petrolíferas. 

Por fim, decidiu-se. Pegou em alguns maços de notas de cem dólares – o rei mago sabia que se tornara no bem mais precioso no país – e saiu.


Francisco Moita Flores




in “O Presépio de Belém” / “Outros Belos Contos de Natal”, Ediraia

a-ver-livros: quatro linhas e Julie Fletcher

À falta do poema perfeito
de natal
escrevo-te quatro linhas sem pudor

Amo-te

* para conhecer mais sobre o trabalho da ilustradora Julie Fletcher
siga o link www.juliefletcher.co.uk


domingo, 23 de dezembro de 2012

O livro do Natal no Porto


Hélder Pacheco é um dos grandes conhecedores da história recente do Porto, com uma vasta bibliografia sobre a cidade. Os seus livros dão-nos sempre uma visão muito humana e vivida, embrenhando-nos nos ambientes e atmosferas de que fala. Este livro sobre o Natal no Porto resulta de um trabalho que o autor foi realizando ao longo de 20 anos.

Este livro mostra-nos as diversas facetas do Porto na comemoração das festas natalícias e sua evolução através do tempo: das ceias dos pobres às ceias dos ricos; as iluminações; o Presépio e a árvore de Natal; o menino Jesus e o Pai Natal; os cartões de Natal. Constitui um levantamento aprofundado da vivência desta festa, que tem tanto de religiosa como de pagã, na cidade do Porto e pelas gentes do Porto.

Publicado em 2002 pelas Edições Afrontamento, onde o autor publica regularmente. Hélder Pacheco, natural da freguesia da Vitória, Porto, é um investigador, escritor e cronista das culturas e tradições populares do Porto. Foi membro da Comissão Nacional de Defesa do Património Cultural e colaborador dos jornais O Primeiro de Janeiro e Público e das revistas O Professor, Vértice e A Razão. É actualmente professor de História Social e Cultural do Porto, investigador das culturas populares do Porto e escritor e cronista do Jornal de Notícias e da revista Sítios e Memórias. Tem mais de vinte obras editadas.

citação natalinha: Bruno Nogueira

“A única coisa que me faz realmente sair de casa no Natal é a Avenida da Liberdade iluminada. Palavra! Tudo o resto acho verdadeiramente deprimente. Não me venham com falinhas mansas dizer que se vai juntar a família porque ela é ‘a melhor coisa do mundo’. A melhor coisa do mundo é alinhar parte da família em cima de um muro de cimento e atirar tijolos aos dentes dos respectivos.

Verdade seja dita, paro sempre para ver as montras iluminadas, mas também paro para ver acidentes no IP5 à procura de um braço ou de uma perna, como de resto paramos todos.

Hoje em dia, o Natal não passa duma grande empresa que abre todos os anos ao público em Outubro.“


 
Bruno Nogueira



 


in “Adoro Rebentar a Boca de Agentes da Emel à Biqueirada, no Natal” / “Outros Belos Contos de Natal”, Ediraia