sábado, 20 de outubro de 2012

Poema à noitinha... William Blake

A Imagem Divina

«Compaixão, Pena, Paz & Amor,
Todos lhes rezam no seu sofrimento;
E a estas virtudes de tanto fulgor
Entregam o seu agradecimento.

Compaixão, Pena, Paz & Amor
É Deus, nosso pai adorado,
Compaixão, Pena, Paz & Amor
É o Homem, seu filho amado.

Tem Compaixão humano coração,
E tem a Pena uma face humana,
Amor, a forma divina de eleição
E a Paz, o traje que irmana.

Todo o homem, em todo o clima,
Que, com dor, reza como é capaz,
Reza à forma humana divina,
Amor, Compaixão, Pena & Paz.

A humana forma amar é um dever,
Para os ateus, os turcos, os judeus;
Compaixão, Amor & Pena, haja onde houver,
Também é lá que encontrareis Deus.»


*in "Canções da Inocência". William Blake nasceu em Inglaterra em 1757. Foi poeta e também escritor.

Das Utopias, no início não era um verbo



Nos dias que correm é um assunto que faz cada fez mais sentido. Pela situação politica do país e do mundo. Pelos desafios que se colocam às várias gerações. Porque só compreendo a vida com debate de ideias e com confrontos quotidianos para a realização pessoal e colectiva, fica aqui mais uma espécie de sub-tema para o blogue. Não quero que se torne uma categoria até porque não sei se voltarei a escrever desta forma sobre este assunto e não sei se alguém o quererá fazer.

Para além de muitos dos meus livros favoritos se enquadrarem nesta temática também na parte do cinema muitos são os que poderia encaixar nesta gaveta. Um assunto que sempre me despertou curiosidade e sobre o qual fui descobrindo algumas coisas.

Utopia tem como significado mais comum a ideia de civilização ideal, imaginária, fantástica. Pode referir-se a uma cidade ou a um mundo, sendo possível tanto no futuro, quanto no presente, porém num paralelo.

A Utopia como a conhecemos hoje, é um termo "inventado" por Thomas More que serviu de título a uma das suas obras escritas em latim por volta de 1516. Segundo a versão de vários historiadores, More fascinou-se pelas narrações extraordinárias de Américo Vespucio sobre a recém avistada ilha de Fernando de Noronha, em 1503. More decidiu então escrever sobre um lugar novo e puro onde existiria uma sociedade perfeita.



"A Utopia" de More é uma ilha afastada do continente europeu, Rafael Hitlodeu não diz com convicção em que oceano ela fica, apenas diz que foi parar lá depois de embarcar numa das viagens de Américo Vespúcio, e voltou depois. A Ilha da Utopia, como já diz o expressão criada por More, abarca a sociedade ideal, inatingível, que traduz um estado de bem estar dos seres humanos. O livro, dá significado para o termo usado como título, fazendo certo tom irónico ao descrever a ilha. A capital, Amaurotum que significa “cidade do sonho”, é banhada pelo rio Anidro, rio sem água, seus cidadãos são alopolitas “cidadãos sem cidades”, governados pelo príncipe Ademos “aquele que não tem povo”, e os seus vizinhos são os Achorianos “homens sem país”.

A admiração de Thomas More por Platão certamente fez ter uma certa inspiração para "A Utopia" da "República". Assim como na "República" o livro se passa na forma de um diálogo, na "Utopia" More trabalha com a mesma questão. More trabalha com questões exactas de dimensão citando que a ilha é mais larga no meio, onde mede trezentos e vinte quilómetros, segundo More todo o interior da ilha pode ser usado como porto, dessa maneira os barcos fluem sem nenhuma dificuldade.

More relata a sociedade perfeita, numa visão mais próxima disso, assim como Campanella e o próprio Platão, todos temos a sociedade perfeita que queríamos ao menos que se efectivasse de forma a dar segurança, liberdade, respeito, que pudesse protelar por um futuro mais justo e de qualidades identificáveis com os desejos dos cidadãos.

O porquê desta súbita ideia?
O Câmara Clara, na RTP2, de 14 de Outubro, com a investigadora Fátima Vieira, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

O programa pode ser visto a partir deste link CÂMARA CLARA de 14 Out 2012 - RTP Play - RTP

In A Duração dos Crepúsculos


Livro de família, porventura. Ou tê-lo-ia obtido num alfarrabista?
Por vezes, no comércio de livros usados, deparava-se com preciosidades. Quase sempre, provinham de bibliotecas desfeitas por heranças. Nem se imaginava.
Ao morrer o senhor duma casa antiga, vão-se logo buscar as cadernetas do dinheiro. O cadastro das terras. Abrem-se também os baús antigos, que ainda guardam o cheiro da pimenta e da cânfora. Reparte-se.
Pede-se o rol da livraria. Latim, português, outras línguas. Volumes de várias épocas, este mais estimado que aquele. Maços de configurações diferentes. Precintas em ourelo de linho. Algumas sedas. “Trambolhos!”
“E se vendêssemos?”, pergunta um dos herdeiros. À experiência.
“Oh, não!”, grito da tia mais velha. Olhos rasos de lágrimas.
Mas a opinião dela não conta. Chama-se alguém que faça lotes. Que leve a leilão.
Não interessa quem irá comprar. Não importa que, mais tarde, se venha encontrar a mulher das castanhas embrulhando-as à dúzia numa folha daquelas.
Sim! As heranças são dos piores inimigos dos livros. O pior, tirando os incêndios.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Tive o privilégio de falar contigo, Manuel António Pina

Não preciso de falar da tua obra, das tuas crónicas no JN, dos teus poemas, dos teus livros ou dos teus gatos. Porque o nosso blog já tratou de fazer isso inúmeras vezes. Nós aqui somos apenas mais uma extensão da tua imortalidade. Porque um homem não morre quando deixa assim pedaços de si. E da forma como tu fizeste...

Provavelmente gostarias de saber o que dizem de ti agora que estás morto. E brincarias com o assunto. Com certeza acharias patética as saudades que deixas nos corações das pessoas. Gozarias com todos aqueles que nunca ouviram falar de ti e que agora aparecem tristíssimos a expressar pesar. Até a mim puxarias as orelhas, porque pela primeira vez te trato por "tu". Quase que aposto que acharias piada a esta mania dos homens começarem a tratar alguém assim mal se morre... Mas é a nossa tendência de santificar os que partem. De dar sentido à morte. Assunto que para ti estava bem resolvido.

Lembro-me perfeitamente das perguntas que fizeste da última vez que te atendi. Uma delas era se ali havia livros de Steiner. Não encontravas na livraria que costumavas frequentar, porque havia uma zanga com a editora. E sorriste quando descobriste que estava lá o que querias. E levaste «Os Livros Que Não Escrevi». Um pouco irónico, não?


Vi-te mais tarde na Feira do livro deste ano. Vi-te a caminho da livraria onde ias mais vezes (onde também já trabalhei). E achei-te doente. Mas não liguei muito. Em Setembro tive a confirmação que tinhas um problema grave. E, naquela sala, toda a gente ficou triste. Porque todos te conhecíamos. Porque todos te seguíamos e respeitávamos. Porque todos nós já te lemos.

Compravas livros de Direito para a tua filha. Passavas por lá a levantar a encomenda que ela tinha feito pela internet. Não te demoravas muito, mas ias sempre a tempo de perguntar qualquer coisa. Fazias uma observação ou outra. Ficavas preocupado com os portugueses e com o facto de eles estarem a cortar nos livros.

E nós... Bem... nós sempre te fizemos tributo! Durante mais de seis meses os teus livros estiveram ao balcão. «Como se Desenha uma Casa» era reposto quase a todo o tempo. Chegou a fazer parte dos mais vendidos da semana. Notável, mesmo sabendo que foste o Prémio Camões em 2011. Mais admirável, por ser um livro pequeno (mas cheio de vida). Com uma capa bonita e um título escolhido a rigor. Fantástico por ser de poesia...

Vou ter saudades de te ver. Vou ter saudades de te apertar a mão. De falarmos de livros, autores e do mundo. Acompanhava a tua crónica diária no jornal. E era o meu pensamento para aquele dia. Discutido tantas vezes com a minha última colega do mundo das livrarias. 

Deixei a profissão sem me despedir de ti. O tempo não permitiu. Ficam agora as minhas palavras. Para também eu deixar perpetuada a opinião que guardo das pessoas que gosto. 

Não quero perder a oportunidade de ver o documentário feito por Alberto Serra sobre ti. E aqui deixo apenas o início... Para que todos os que não te viram possam conhecer a voz que tantas vezes ouvi.

Até sempre, meu amigo!

É que hoje partiu um amigo... Manuel António Pina

Morreu esta tarde...

Manuel António Pina, amigo, jornalista, poeta e escritor tinha 68 anos, nasceu no Sabugal, licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Vivia no Porto e foi jornalista do Jornal de Notícias durante três décadas, sendo repórter, redactor, editor e chefe de Redacção, mantendo até há poucos meses, na última página do JN, a crónica "Por outras palavras" e foi ainda cronista da "Notícias Magazine".

Além do Prémio Camões que lhe foi atribuído em 2011, Manuel António Pina foi distinguido ao longo da sua longa carreira literária e jornalística com inúmeros prémios, nomeadamente o Prémio de Poesia da Casa da Imprensa (1978) ; Prémio Gulbenkian (1987); Prémio Nacional de Crónica Press Club/ Clube de Jornalistas (1993); Prémio da Crítica, da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários" (2002); Prémio de poesia Luís Miguel Nava (2003) e Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores/CTT (2005).A sua obra está traduzida em França (francês e corso), Estados Unidos, Espanha (espanhol, galego e catalão), Dinamarca, Alemanha, Países Baixos, Rússia, Croácia e Bulgária.

Por outras palavras o podia descrever. Por outras palavras podia fazer uma homenagem. Por outras palavras porque há sempre outras palavras para tudo. Hoje ficamos um bocadinho mais pobres, porque é desta riqueza que nos faz falta. São estas as partidas que nos deixam efectivamente um povo mais pobre.

Porque, para palavras, as dele


1º Parágrafo: Contos Orientais


O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling erravam pelas estradas do reino de Han.


* Tradução de Gaëtan Martins de Oliveira

a-ver-livros: existência perante Eric Drooker

Há um homem no alto de ti
sentado sobre tudo o que leu

há uma mulher, algures,
talvez encerrada num livro

há uma voz que cheira a papel
e há nuvens que trazem enredos

há figuras de estilo 
embrulhadas para presente 
esquecidas sobre a mesa 
à espera de outro natal 

e há uma história que não contas 
não vá a realidade tecê-la

* para conhecer mais do artista nova-iorquino Eric Drooker
siga o link www.drooker.com

Pensar... um jogo de sombras com livros

Não sei de quem é a foto. Não sei de quem é a ideia. Andei a pesquisar... e nada. Mas adorei este jogo de sombras. E a mensagem que transmite.

Como não vos quero deixar totalmente desarmados, decidi pegar num pensamento do escritor alemão Bernhard Schlink. É do seu livro «O leitor», publicado em Portugal pela Asa.


"(...) hoje reconheço, naquilo que então aconteceu, o esquema por meio do qual o pensamento e a acção se conjugaram ou divergiram durante toda a minha vida. Penso, chego a um resultado, fixo-o numa conclusão e apercebo-me de que a acção é algo independente, algo que pode seguir a conclusão, mas não necessariamente. Durante a minha vida, fiz muitas coisas que não tinha decidido fazer, e não fiz outras que tinha firmemente decidido fazer. Algo que existe em mim, seja lá o que for, age; algo que me faz ir ter com uma mulher que já não quero voltar a ver, que faz ao superior um reparo que me pode custar o emprego, que continua a fumar embora eu tenha decidido deixar de fumar, e que deixa de fumar quando me resignei a ser um fumador para o resto dos meus dias.
Não quero dizer que o pensamento e a decisão não tenham alguma influência na acção. Mas a acção não decorre só do que foi pensado e decidido antes. Surge de uma fonte própria, e é tão independente como o meu pensamento e as minhas decisões."

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

«Porque sou pobre»

"Ideias Soltas... Em qualquer dia... a qualquer hora"

Nunca me senti pobre por a minha pele ser velha e gasta.
Nunca me senti pobre por ter vestido de chita desbotada e cheio de remendos de outras chitas.
Nunca me senti pobre por me lavar com sabão azul e branco e a minha pele cheirar apenas a limpeza.
Nunca, mas nunca, me senti pobre por ter as mãos calejadas do trabalho árduo e as minhas pernas vestirem meias pintadas de varizes.

Mas...

Sou pobre, muito pobre porque me roubaram a esperança; porque as escadas que tenho que subir na vida têm a cor do desalento; porque olho em frente e vejo-te sem rumo.
Roubaram-me a única coisa que me torna pobre, verdadeiramente pobre: a fé!

Elsa Martins Esteves

"Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza"

Foto emefeelingflashes

1º Parágrafo: Jogos da Idade Tardia


Na manhã de 4 de Outubro, Gregorio Olías levantou-se mais cedo do que habitualmente. Tinha passado uma noite confusa, e pelo amanhecer acreditara sonhar que um mensageiro com uma tocha aparecia na porta para lhe anunciar que o dia da desgraça tinha chegado por fim: “Levanta-te, pinguin, que os tambores já se ouvem aqui perto!”, disse-lhe. Olhou o quarto envolto em penumbra e imediatamente, derrotado pela ilusão de estar a sonhar acordado, voltou a fechar os olhos. “Ora, ainda é tarde para fugir”, respondeu naquele estado de sonolência, e embora por um momento se tenha considerado a salvo, adivinhou em seguida que se continuasse a prosseguir no absurdo acabaria por encontrar nele as leis lógicas que o aparentavam com a realidade. Então reuniu forças para dizer, “Estou perdido”, e acrescentou, “perdido na selva amazónica com uma caixa de sapatos e uma navalha de várias lâminas”, e compreendeu novamente que estava a erguer um parapeito de urgência para se defender das ciladas do mundo. Mas as palavras deviam ter perdido as suas propriedades mágicas. Para o confirmar, disse em voz alta, “penibán”, e ficou atento, para escutar os efeitos de uma declaração tão formidável. Não aconteceu nada: nem sequer as velhas coisas de sempre, com os seus ilustres nomes de sempre, levantaram o mais ínfimo protesto contra a irrupção do intruso. Um relógio bateu as oito, e o tempo ameaçou então recuperar o seu sentido linear.


* Tradução de Egito Gonçalves

a-ver-livros: nudez e Alexandra Muirhead

Abraço a nudez 
que sinto
ao ler-te

Sei-me despida de mim

* para saber mais sobre a pintora escocesa Alexandra Muirhead
siga o link  local.stv.tv/glasgow/going-out/events-info/glasgay

Poema à Noitinha 2... António Ramos Rosa

Enquanto não chega a meia-noite há tempo para mais um poema. Afinal é ainda o aniversário de António Ramos Rosa, nascido em Faro a 17 de Outubro de 1924. E o poeta merece que o escutemos assim, em respeitoso silêncio, num poema que é um hino a quem o lê.

"A Leitora

A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer."

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Poema à Noitinha... Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade volta a este blog, uma das suas casas. As vezes que forem necessárias. Para nos fazer roubar um sorriso. Antes de irmos dormir.

O Silêncio

«Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.»


 *Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio."

1º Parágrafo: Um Capricho da Natureza


Algures durante o dia, a rapariga deixou cair um dos novos nomes e apareceu sob o seu outro nome. Enquanto mastigava a pastilha elástica e se deixava balouçar no assento trepidante, vendo acenar nos apeadeiros secundários as crianças negras e o gado das pastagens desaparecer, assustado pela passagem do comboio, num tropel de medo no horizonte, a rapariga pôs na prateleira Kim, com o seu panamá escolar e envergou a figura de Hillela. As meias castanhas escorregaram-lhe ao longo das pernas, fazendo-lhe uma comichão agradável. A seguir, desenterraria as sandálias e um vestido da mala e mudaria de roupa sem se preocupar com a presença no compartimento de outras mulheres. Ia, como das outras vezes, ter com aquela tia, uma das irmãs da mãe, junta da qual nada lhe faltava. Vinha do colégio de raparigas da Rodésia para onde, como responderia se lhe perguntassem porque não estava a estudar na África do sul, fora mandada pelo facto de o seu pai se ter fixado em Salisbury. Não era a única rapariga cujos pais se haviam divorciado ou separado, ou lá o que era que tinham feito. Mas era a única Hillela entre todas as Susans e Clares e Fionas que a cercavam. Que nome seria aquele? Não podia responder que não sabia. Responderia, sim, e sem um instante de hesitação, que, de qualquer maneira, toda a gente a tratava sempre pelo seu segundo nome, Kim. Com o passar dos anos, até o professores a tratavam simplesmente por Kim, e só por Kim. Ninguém estranhava já quando ia com as outras Kims, Susans, Clares e Fionas à Igreja Anglicana todos os Domingos, embora nos registos do colégio a sua ficha relativa ao “credo religioso” a declarasse judia.


* Tradução de Miguel Serras Pereira
* Nadine Gordimer foi Prémio Nobel da Literatura em 1991

a-ver-livros: o intervalo com Sarah Joncas

Faz-se o intervalo
e descobrem-se nas entrelinhas
as traças que devoram
o que é belo
e o que é importante
e o que é simples

e deixam apenas os enredos
mais obscuros
e os mais amargos 
dentre os finais

Nem todos os livros
merecem a capa que envergam

* para conhecer mais do trabalho da pintora canadiana Sarah Joncas
basta seguir o link www.teapartylove.digitalinkz.com

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Dulce Maria Cardoso vai ser condecorada Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras da França



A escritora Dulce Maria Cardoso vai ser condecorada na quarta-feira, em Lisboa, com as insígnias de Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras da França, atribuída pelo Ministério francês da Cultura.

De acordo com uma nota de imprensa da Embaixada de França em Lisboa, a cerimónia de entrega das insígnias está marcada para as 18:30 de quarta-feira, no Palácio de Santos, com a presença do embaixador Pascal Teixeira da Silva.

Criada em 1957, a condecoração da Ordem das Artes e Letras corresponde a uma das mais altas distinções honoríficas da República Francesa e homenageia personalidades que se destacaram pela sua contribuição na difusão da cultura francesa.

A França já distinguiu algumas dezenas de personalidades portuguesas com esta Ordem, como Manoel de Oliveira, Amália Rodrigues, Joaquim Benite, Álvaro Siza Vieira, Júlio Pomar, António Lobo Antunes, João Bénard da Costa e Agustina Bessa-Luís.

"Ao entregar esta prestigiada condecoração a Dulce Maria Cardoso, a França deseja reconhecer a escrita que emocionou inúmeros leitores em Portugal, em França e em muitos outros países e homenagear esta brilhante escritora, que tem desempenhado um papel importante na divulgação da cultura francesa", justifica a embaixada na nota de imprensa.

Nascida em Trás-os-Montes, em 1964, Dulce Maria Cardoso passou a infância em Angola.

Regressou a Portugal na "ponte aérea" de 1975, como muitos portugueses, na sequência do processo de descolonização daquele país africano, e estudou na Faculdade de Direito de Lisboa, tendo escrito argumentos para cinema, contos e romances.

Em França, estão publicados alguns dos seus contos e as obras "Campo de Sangue" (2002) e "Os Meus Sentimentos" (2005).

Com o romance “O Chão dos Pardais”, publicado em 2009, recebeu o Prémio Pen Club 2010. “O Retorno”, editado em 2011, sobre a experiência dos retornados de Angola, foi distinguido com o prémio especial da crítica LER/Booktailors.

O livro "O Retorno" já foi Livro do Mês aqui no blogue, se quiserem recordar o que foi escrito na altura é só seguir o link - Livro do Mês "O Retorno".

1º Parágrafo: Os Papéis de Rachel


Chamo-me Charles Highway, embora ninguém pensasse tal coisa ao olhar para mim. É um nome muito escorreito, bem viajado, caralhudo, e, olhando-se para mim, eu não sou nada disso. Para começar uso óculos, e desde os nove anos. e a minha figura de estatura mediana, sem traseiro, sem peito, o tronco enfezado e as pernas arqueadas conjugam-se de maneira a afastar qualquer sugestão de aprumo. (De modo algum, já agora, se deverá confundir este modelo particular com as elásticas compleições tão populares entre os meus contemporâneos. São muito diferentes. Lembro-me que costumava dobrar quase duas vezes as bainhas das minhas calças, e inchar o traseiro com camisas destinadas a homens crescidos. Agora, porém, visto-me mais conscienciosamente, não tanto com gosto mas com intuição.) Mas possuo uma daquelas vozes estridentes que estão na moda, das que têm uma habitual ressonância irónica, excelentes para promover inquietação entre os velhotes. E imagino que haja também algo de estranhamente desencorajador no meu rosto. É anguloso, porém delicado; nariz fino e comprido, boca larga e estreita – e os olhos: ricamente pestanudos, de tom ocre-escuro com um leve matiz de castanho-avermelhado… ah, como estas palavras parecem desadequadas.


* Tradução de Jorge Pereirinha Pires

* Revisão de Pedro Ernesto Ferreira

Inéditos de Agustina e Sophia



Em vez do a-ver-livros deixo-vos hoje outro olhar sobre a literatura, na prática novas da bem-vinda edição de inéditos de duas grandes escritoras, uma viva ainda, por pouco ao que tudo indica, outra muito viva mas apenas na memória dos leitores.

Desde ontem, dia do 90.º aniversário de Agustina Bessa Luís, que estão nas livrarias dois inéditos da escritora, dando assim início a uma nova coleção da editora Babel exclusivamente dedicada a obras da autora. A colecção Contemplações editará pequenos textos da escritora, sobretudo de natureza ensaística. O primeiro intitula-se “Kafkiana", quatro textos com reflexões de natureza literária sobre a situação do homem kafkiano face ao mundo e a ele próprio, e o segundo é um conto, “Cividade”.
Entretanto, via Guimarães, a chancela habitual de Agustina, prepara-se para fazer sair do prelo "Breviário do Brasil", um país fortemente marcado na sua memória devido ao pai lá ter vivido 25 anos. Tem tudo um prenúncio de morte que dói, não tem? Afinal, Agustina está afastada há anos devido a “doença indeterminada”.

Mas deixo-vos o link para a notícia alargada, da Lusa no site da RTP.

Entretanto, outra grande senhora das letras nacionais já desaparecida, Sophia de Mello Breyner Andresen, está hoje também na berlinda. Mais logo, pelas 19 horas, na Livraria Bertrand Chiado, em Lisboa, é apresentado por Hélia Correia o conto “Os Ciganos”. Curiosamente, este é um inédito inacabado da poetisa, encontrado em 2009 entre o seu espólio, destinado a crianças e jovens - e que foi terminado por Pedro Sousa Tavares, o neto jornalista, sendo agora publicado pela Porto Editora.

Também neste caso vos deixo o link para a notícia alargada, texto da Lusa no Público.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Chegou o cadáver


Não vale a pena tentar negá-lo: o cadáver passeou-se pelos jardins do Palácio de Cristal durante o festival organizado pelo Bairro dos Livros, em que o Clube de Leitores participou de forma activa. E sobreviveu para chegar hoje até nós, aqui.

Estamos a falar do Cadáver Esquisito que prolongámos pelos vários dias do evento.
Se não faz ideia do que seja esta coisa com um nome tão tétrico, temos alguma informação para si lá no fundo do texto. Vá espreitar primeiro e volte depois aqui para melhor usufruir deste exercício literário.

E siga o Cadáver!

"O Jardim é um palácio que floresce entre pavões e bancos
Confusões e felizes prantos que nos habitam o interior
Das recordações dos disparates e da evolução do mundo, que
Avança com ou sem razão das esperas que não acontecem
Pois o tempo, ou a falta dele, esse é o grande problema.
Estas esperas devem pois, ser bem calculadas.
Pois agir sem pensar não é de todo aconselhável
Assim, vejamos a situação:
O corpo estava a entrar em decomposição.
A cara estava branca, gelada, apesar do calor da noite.
A solidão estava marcada, bem presente.
E sono, muito sono realmente!
É no estado em que o homo sapiens se tem encontrado
Desde o início da sua civilização
Não interessa
Tudo era natureza
Tudo era morte
Tudo se torna em veludo azul
A coisa mais rara neste mundo, as pessoas pensarem por si próprias.
É raro mas quando acontece é mágico.
É assim que vivemos, sorrimos e amamos. Por isso vamos a isso.
Mas cuidado…
Os lobos e as meninas andam por aí
E sabem sempre o que querem!
Mas o que quererão afinal? E será que alguma vez o saberão?
 Essa é a questão filosófica que se impõe!
Essa e a questão da origem do universo das bandas desenhadas
que surgem nas bancas das papelarias sem ninguém saber como!
Como é que ninguém sabia dessa porcaria!
Tanta coisa para nada!
Aumentando a vontade de conquistar o infinito, sem porém
Julgar a vontade do(s) outro(s).
E acham-se importantes por fazê-lo!
Acho graça a essa gente, a nossa gente.
A nossa gente é capaz de tudo.
Andar desalinhada, só isso!
No dia em que descobrir o seu próprio poder, tudo acontecerá!
Somos uma gente capaz! Capazes!
A propósito de capazes, acho que ou capaz de comprar uma bimby…
Ando a pensar nisso há tempo… Acho que vou…
Comprar o tal livro da selva e, mergulhando na sua leitura
Vou viver a aventura que ele me sugerir
Não sei o que vi nele, nem o que me atraiu. O olhar transparente?
O sorriso nos lábios grossos? Não sei. Bem todo o caso
Embarquei na aventura.
O primeiro dia foi repleto de medos, inseguranças… e à medida que
O dia ia passando mais eu me libertava destes medos e deixava a energia
Fluir, e um sorriso aparecia na minha cara.
«Mandato de despejo aos mandarins da Europa! Fora!
Se quiserem ficar lavem-se!»
E lavem-se de preconceitos e opiniões
Lembra-te que é hoje! Sim, hoje, porque é hoje que estás a ler isto. Aliás, agora!!!
Acabei de ler e vou “desencanar” o burro. Alea jacta est!
“Alea jacta est”. Afirmação de boa memória e omnipresente
Nos livros de Asterix, que me encheram a infância.
A infância, aquele tempo em que não tinha horários e passava
O tempo a brincar!! Além do Asterix, havia a pequena sereia 
Mas o meu preferido era o Bocas. Um boi vermelho, vestido com
uma jardineira de botões amarelos. A sua melhor amiga, a tartaruga Mike
ficou muito feliz ao saber que o jardim estava lindo e cheio de flores.
Ao ver tudo aquilo quis abraçá-la e agradecer para todo o sempre.
No sempre a eternidade do amor e a salvação!
Mas um belo dia o canto de jades esfumou-se. O encanto foi-se.
E ele ficou com uma caixa cheia de sonhos vazios.
Pensou como gostava dela…
Como ela era injusta.
Nunca preparava o café a meu gosto.
E ainda dizia: “a culpa é tua”.
Mas nem sempre a culpa é nossa!
Não queiras pôr culpas onde não queremos!
Sentimento que inflama, que nos aprisiona.
Perdoa-te e vive com a tua alma por inteiro!"

INFO:
Cadáver esquisito - cadavre exquis - é um jogo colectivo inventado por volta de 1925 em França pelo movimento surrealista, pretendendo subverter-se o discurso literário convencional.
O cadáver esquisito - nome que advém do primeiro exemplo conhecido deste jogo, que rezava "O cadáver esquisito beberá / o vinho novo" - tinha como propósito colocar na mesma frase palavras inusitadas agregando mais de um autor.
Na prática, cada pessoa escreve duas linhas, dobra o papel tapando a primeira e deixando à vista apenas a segunda, que cabe ao autor seguinte continuar.
Porque não experimenta este jogo um destes dias com o seu grupo de amigos?

Nota: Obrigada à Patrícia Cunha pelo trabalho árduo de carregar o Cadáver e recolher os seus 'restos mortais'! ;-)

1º Parágrafo: As Cidades Invisíveis


Partindo dali e andando três dias para levante, o homem encontra-se em Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas pavimentadas a estanho, um teatro de cristal e um galo de ouro que canta no alto de uma torre todas as manhãs. Todas estas belezas o viajante já as conhece por tê-las visto também noutras cidades. Mas a propriedade desta é que quem lá chegar numa noite de setembro, quando os dias já diminuem e as lâmpadas multicolores se acendem todas ao mesmo tempo por cima das portas das lojas de peixe frito, e de um terraço uma voz de mulher grita: uh!, lhe apetece invejar os que os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.


* Tradução de José Colaço Barreiro
* Revisão de Miguel Martins Rodrigues

a-ver-livros: a mensagem com Lori Pensini

Bebi o copo de água
mas nem assim foram mais fáceis
de engolir 
as palavras

Olhei as flores garridas
e nem assim deixaram de ser
a preto e branco

Às vezes nem todo a vontade do mundo
pode transformar a mensagem
em amor

* para conhecer mais do trbalho da pintora australiana Lori Penini
siga o link loripensini.com

domingo, 14 de outubro de 2012

(A)o dobrar de uma esquina

(ao domingo) Letras Focadas

“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”


Texto do escritor Emílio Miranda

«Como todas as suas lojas, também aquela ficava numa esquina. A Esquina era por isso, na verdadeira aceção da palavra, um conceito baseado no aproveitamento de esquinas para a implantação de pequenas áreas comerciais. E, dado o sucesso alcançado, continuaria a ser. Pelo menos enquanto fosse ele o dono e o mentor da ideia.

A sua juventude havia sido uma descida ao inferno.
A queda humana é tão fácil que chega a surpreender!
Num dia bebes um pouco mais, no outro, um grupo de amigos convida-te para um cigarro – sentes-te importante! –; hoje fumas um charro que te desinibe, amanhã tomas uma «pastilha» que te conduz ao nirvana; juntas tudo e conheces todos os paraísos. Correção: todos os infernos. Porque rapidamente percebes que os paraísos por onde vagueias estão povoados de demónios.

Levou anos a afastar-se de todos os abismos por onde vagueou, entre tentativas e recaídas, mas finalmente, com a ajuda certa, sentiu-se finalmente capaz de intentar a fuga. Dia após dia, deu passos no sentido correto, e apesar de não ter descoberto o tão ansiado paraíso, nunca estivera tão perto disso, como agora.

Através do recurso ao microcrédito, abriu a sua primeira loja. Durante anos tinha polido esquinas, agora era chegado o tempo de transformar as esquinas em lugares melhores para se estar. Em lugares de boas descobertas.
Por isso, a ideia de chamar à sua loja Esquina.

O sucesso inicial e muito trabalho possibilitaram-lhe, em pouco tempo, abrir outra Esquina e depois outra.

Já ia numa dezena.

Hoje abriria a sua 11ª loja. Era curioso como havia tantas esquinas abandonadas, devolutas; tantas esquinas à espera de serem transformadas em locais mágicos.

Talvez um dia conseguisse que em nenhuma se voltasse a vender pesadelos.

– Bem-vindos! – começou por dizer, dirigindo-se aos amigos e conhecidos, mas também à cerca de uma dúzia de anónimos que, encantados, apreciavam, como se o fizessem pela primeira vez, os artigos expostos. Nada de mais: nas suas Esquinas, havia apenas lugar para corações. Dezenas, centenas, de múltiplas formas, texturas e cores. Muitos, com sabores. A framboesa, morango, chocolate, caramelo. Em caixinhas de diversos tamanhos, mas com uma única forma. Todas com uma mensagem promissora. – Muita gente me tem perguntado como surgiu esta ideia, de abrir as minhas lojas em esquinas de rua. Pois bem, não me cansarei jamais de o explicar: um dia alguém me disse de forma depreciativa que eu nunca passaria de um polidor de esquinas. Quis que não deixasse de ter razão. E é isso que tenho feito; polido esquinas feias e arruinadas. – Risos. – O porquê dos corações? Das mensagens? Dos sabores que adoçam a alma? Ao contrário do que poderia supor-se, o mundo é um local carente de amor, onde todos buscam a mensagem (seja na forma de uma palavra, de um paladar ou de um aroma) capaz de os encorajar. Desejo sobretudo que ao dobrar de uma esquina cada um descubra a sua. Afinal, o que é a vida senão um sucessivo dobrar de esquinas?»

Foto Elsa Martins Esteves