Terminei minha oficina com um tempo estratégico de folga. Apanhei o
livro na bolsa e sentei no chão com as crianças para leitura dos
primeiros capítulos.
- Ah, você vai ler?
Alguém perguntou ou reclamou, não sei dizer ao certo, o que sei dizer
é que eu retruquei com nova pergunta para saber quantos deles leem
todos os dias e chateada escutei que somente uma das crianças tinha o
“estranho” hábito.
- E o que vocês fazem a noite, quando estão em casa?
Insisti um pouco, eu sei, e nem deveria porque a resposta foi
“novela, novela, novela e mais novela”. Quase me desesperei porque uma
vozinha no grupo disse que vê novela para relaxar e que leitura é como
“fazer lição”.
Morri por alguns instantes, mas felizmente ressuscitei no terceiro segundo.
- Certo, eu vou começar a ler “Os Risadinhas” para vocês. Não vamos
terminar hoje porque temos pouco tempo e o livro é longo, mas
continuamos um pouquinho a cada novo encontro.
Um capítulo com quadro de aviso no meio e uma explicação esdrúxula
sobre biscoito, cookies e curativos. O tom da voz acompanha a narrativa
um tanto quanto inesperada, mas sempre muito investigativa.
Tenho para mim que os adultos deveriam levar muito a sério os livros
escritos sob o rótulo “literatura para infância”. Mas isso é outra coisa
e eu devo agora voltar ao texto original, por favor, desculpem a
distração.
Pois bem, o segundo capítulo do livro, ou melhor, “O Retorno ao
Capítulo Um”, já aponta qual o rumo da história: tudo é muito mais
complexo do que sonha sua óbvia filosofia cotidiana.
“Os Risadinhas” são seres que cuidam das crianças e eles existem no
mundo desde que o primeiro homem das cavernas grunhiu de forma
irresponsável para a primeira criança das cavernas, porque “Os
Risadinhas” detestam injustiças cometidas contra qualquer tipo de
criança e por isso inventaram “o tratamento”.
Coisa confusa? Se você acha isso confuso, melhor ligar a televisão e
ver qualquer tipo de programa de rima chulé com pé e para por aí.
O “tratamento” aplicado pelos “Risadinhas” é cocô. Nos dias atuais,
cocô de cachorro, mas naquele tempo das cavernas, por falta de cachorro,
a coisa era bem maior…
Sim, quando um adulto comete uma injustiça contra uma criança, como
deixá-la sem jantar por um motivo irrelevante, o “tratamento” é
aplicado.
Eu garanto aos senhores e às senhoras, inclusive perguntei isso aos
meus filhos, é muito raro que me aconteça o “tratamento”. Minha filha
mais nova lembrou de apenas um episódio em que eu meti o tênis no cocô
de cachorro… Deve ter sido depois de tê-la colocado de castigo por ter
cortado os próprios cabelos (como se o visual dela já não fosse o
suficiente).
Em compensação, meu marido vive pisoteando cocôs. Parece incrível,
mas é. E os meus filhos me disseram que isso acontece porque ele tem
muito (muito, muito) menos paciência com eles do que eu.
Voltando ao começo e largando de lado a questão da paciência X cocô
de cachorro, lá nos primeiros parágrafos quando as crianças me disseram
que leitura é como “fazer lição” e que novela é que é bom para se
divertir, devo dizer que “Os Risadinhas” foram tão bem compreendidos que
foi absolutamente impossível encerrar a oficina no horário combinado.
O ponteiro do relógio acusou, mas as crianças me pediram um último
capítulo e eu, que detesto injustiças, avancei uns minutinhos para
benefício da leitura (que não é lição).
Terminamos nossa tarde assim:
- Penélope, ler é muito divertido, pena que ninguém lê comigo na
minha casa desse jeito assim que você faz com os olhos e com a voz.
Para dizer a verdade não fiz nada de especial com os olhos e com a voz. O livro é que é bom mesmo.
Em tempo, “Os Risadinhas”, de Roddy Doyle e com desenhos de Brian
Ajhar, Editora Estação Liberdade, de São Paulo, obra que veio parar na
minha casa depois de indicação supimpa da amiga Tati Van der Moes e eu
comprei no sebo porque livro felizmente não gasta e nem acaba a pilha.
Penélope Martins