sábado, 30 de julho de 2011

in O Passeio no Domingo

"Nunca lho dissera, talvez mesmo julgasse que ele o ignorava – não o considerava muito esperto – mas atribuía-lhe todos os seus males e a falência total das esperanças que tivera. Levara anos a amaldiçoar o dia em que tinha posto a sua vida inteira nas mãos daquele homem quieto e trabalhador, mas tão inútil para a vida como a mais passiva das suas reses. Devorava-o o patrão, havia vinte anos, no escritório onde continuava a pagar-lhe o mesmo ordenado do dia em que lá entrara, devorava-o ela com os seus olhares tristes e acusadores que o faziam baixar os olhos. Devoravam-no todos um pouco, os que riam, os que sofriam, os que lutavam por um sonho impossível. E isso parecia-lhe intolerável. Sentia-se ferida não por ele mas através dele. O marido era a vidraça que deixava passar os raios de sol que a queimavam. Por isso estava velha aos quarenta e cinco anos e havia muitos – pedrara-lhes o conto – que não cantava e que não ria. Sorria só, às vezes, a uma ou outra pessoa que encontrava, mas isso não passava de um gesto de delicadeza. Como estender a mão ou baixar a cabeça a alguém.

Embora nela nada recordasse tal coisa, também foram uma rapariga fresca e desejável, com muitas esperanças no futuro e o coração grande de sonhos, que julgava realizáveis porque, pensava ela, não eram ambiciosos. Entre eles figurava o de uma casa bonita, de um amor eterno e de um ou dois filhos, dois seria o ideal. Não os tivera, porém, a esses filhos que sonhara, o amor foram-no corroendo o tempo e os desejos não conseguidos, e a casa, onde moravam por ser de renda antiga, era velha, húmida, desconfortável, e chovia lá dentro no Inverno. Era uma pobre mulher atraiçoada por um marido fiel e que um dia – uma noite – em frente dele a trabalhar na sua escrita, dera consigo só no mundo incapaz de lhe dizer uma frase qualquer, dessas que se dizem para encher o silêncio. Não, os ressentimentos acumulados haviam-lhe secado a voz, e as frases que tinha para lhe dar eram todas elas curtas e estritamente necessárias.

Ele sabia isso tudo, embora nunca tivesse descido à profundidade da sua dor. Era um homem simples, suficientemente optimista para pensar que os grandes sofrimentos exigiam sempre grandes desgostos."

de Maria Judite de Carvalho

sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Minha Religião é o Novo


'A minha Religião é o Novo.
Este dia, por exemplo; o pôr do Sol,
estas invenções habituais: o Mar.
Ainda:
os cisnes a Ralhar com a água. A Rapariga mais bonita que
ontem.
Deus como habitante único.
Todos somos estrangeiros a esta Região, cujo único habitante
verdadeiro é Deus (este bem podia ser o Rótulo do nosso
Frasco).
Dele também se podia dizer, como homenagem:
Hóspede discreto.
Ou mais pomposamente:
O Enorme Hóspede discreto.
Ou dizer ainda, para demorar Deus mais tempo nos lábios ou
neste caso no papel, na escrita, dizer ainda, no seu epitáfio que
nunca chega, que nunca será útil, dizer dele:
em todo o lado é hóspede,
e em todo o lado é Discreto.'

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Abrindo o Catálogo da Relógio D'Água

 Outro dia andei às voltas com o catálogo da Relógio D'Água. Logo nas primeiras páginas, mesmo antes da enumeração dos livros que a editora dispõe, três citações (prendas) que convosco partilho:

«Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que acreditámos ter deixado de viver, aqueles que passávamos com um livro preferido.»

Marcel Proust, Dias de Leitura

«Continuo a fazer de conta que não sou cego, continuo a encher a minha casa de livros. Há dias ofereceram-me uma edição de 1966 da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença desse livro na minha casa, senti-a como uma espécie de felicidade. [...] Senti como que uma gravitação amistosa. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade concedida aos homens.»

J. L. Borges, O Livro



 «A essência do acto perfeito de leitura é, como vimos, de reciprocidade dinâmica, de resposta à vida do texto. O texto, embora inspirado, não pode ter uma existência significativa se não for lido (que estímulo de vida existe num Stradivarius que não é tocado?). A relação do verdadeiro leitor com o livro é criativa. O livro tem necessidade do leitor tal como este tem necessidade do livro.»

George Steiner, Paixão Intacta
 
Agradeço à Relógio D'Água todo o trabalho extraordinário que faz há muitos anos pelo livro em Portugal.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Dias dedicados a valter...

Percebam porque é que valter hugo mae está, novamente, a ser alvo de todas as atenções:



"Quando eu tinha 8 anos veio morar para a casa ao lado da dos meus pais um casal de brasileiros com duas filhas moças. Ao chegar, o casal ofereceu uma ambulância ao quartel de bombeiros da nossa vila e toda a vila se emocionou. Foram os primeiros brasileiros que eu vi fora da tv, fora das novelas. Eu e os meus amigos fomos ao quartel dos bombeiros apreciar a ambulância nova, bem pintada, que se mostrava a todos como prova bonita da bondade de alguém. O meu pai tinha um carro pequeno, velho, difícil de levar a família inteira dentro. A ambulância era enorme, um luxo, como se fosse para transportar doentes felizes. Eu e os meus amigos ficamos estupefactamente felizes.

Depois, algumas mulheres e alguns homens mais delicados reuniam-se diante da senhora e das moças brasileiras e faziam perguntas sobre as novelas. Naquele tempo, passavam com muito atraso em relação ao Brasil, e todos queriam saber avidamente quem casava com quem na Gabriela.

A senhora e as suas duas filhas, porque sabiam o que ia acontecer nas novelas, eram aos olhos de todos como adivinhas, gente que via coisas do futuro, gente que viveu o futuro e que se juntou a nós para reviver o passado. Por causa disto, eram mágicas e as pessoas queriam a opinião delas para cada decisão.

A minha mãe pediu à nova vizinha a receita para fazer pizza, porque ainda não havia pizzarias e só víamos nas revistas como deviam ser bonitos e saborosos aqueles círculos de pão e queijo coloridos pousados nas mesas. Passámos a comer uma pizza de atum com muitas azeitonas pretas. Ainda hoje peço nos restaurantes pizza de atum com a esperança de que seja exactamente igual à da minha infância, mas nunca é.

As moças brasileiras eram mais velhas do que eu e ficaram amigas das minhas irmãs. As minhas irmãs saíam com elas à rua inchadas de orgulho, porque as pessoas todas, sempre comovidas com a ambulância, fazia vénia e sorriam. Havia gente que dizia que as moças brasileiras eram as mais belas de todas. Elas eram, na verdade, sorridentes, e eu senti que também seriam muito felizes na nossa pequena vila.

Um dia a minha imã mais velha fez anos e foi festejá-los com uma festa na garagem das brasileiras. Na noite desse dia, ali pelas oito horas, uma outra menina, filha de um vizinho português, mostrou-me tudo. Não foi a primeira vez, mas eu queria sempre ver, embora ela não quisesse sempre mostrar. Um amigo meu surpreendeu-nos e quis ver também, mas a menina respondeu que não. Ela disse que mostrava apenas a mim porque eu era amigo das brasileiras. Entendi que as brasileiras eram como um toque de Midas que me transformava num menino de ouro.

Aos dezoito, aquele que é o meu amigo mais irmão chegou do Brasil e ingressou na minha escola. Eu instintivamente corri atrás dele. Queria ser amigo dele como se fosse vital para mim. Ele mostrou-me Titãs e Legião Urbana. Eu achava que o Renato Russo ia salvar a minha vida com aquela canção do Tempo perdido. Quando o Renato Russo morreu, chorei muito e passei só a chorar quando ouço o Tempo perdido. Eu não sei se a arte nos deve salvar, mas tenho a certeza de que pode conduzir ao melhor que há em nós, para que não nos desperdicemos na vida.

O Alexandre, esse meu amigo brasileiro, mudou tudo em mim para melhor. Adorava viajar de comboio com ele quando entalávamos as meias mal cheirosas nas janelas para que arejassem durante a marcha. Nesse tempo, o Alexandre ensinou-me a perder aquela vergonha que só atrapalha. Porque os portugueses sempre foram meio envergonhados.

Hoje, temos quase quarenta anos, ele casou com uma portuguesa e tem filhos. Eu, não. Fiquei para tio a escrever romances, e os romances tornaram-se fundamentais na minha vida, como a máquina de fazer espanhóis. Sonhei sempre em vir ao Brasil e vim várias vezes, faltava vir como escritor, publicado e recebido. Pois aqui estou, a Flip fez isso, não esquecerei nunca, sinto que fazem de mim um homem de ouro, agradeço a todos muito por isso."

valter, foste à televisão e esgotaste os teus livros na loja onde trabalho!

Fica a entrevista de Judite de Sousa a valter hugo mae.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

in Tanta Gente Mariana

“Mas hoje são vinte e quatro de Janeiro e daqui a três ou quatro meses começo a esperar a morte.
Sinto-me só, mais do que nunca, ainda que sempre o estivesse estado.

E enjoada comigo mesma como se me tivesse provado. Um pedaço de pão que depois de se mastigar durante muito tempo acabasse sabendo mal. Sabendo a mim própria, aos meus próprios sucos. Cuspi-me com desagrado para cima da cama e aqui fiquei líquida e espapaçada. É um estado de espírito entre o calmo e desesperado com uma leve ansiedade à mistura. Por vezes sinto medo desta solidão maior do que nunca foi, imensa. Mas já me vi bastante e acabo de reparar que nada mais tenho a dizer-me. Nada mais.

O tempo também parou. Os ponteiros do relógio continuam a andar, mas as horas são iguais, deixaram de existir as que eram feitas para comer e para dormir, as horas de falar com os outros, as de trabalhar – onde isso vai! – e as que eram unicamente minhas. Agora todas me pertencem, não dou por elas. Só há noite e dia, mas a manhã deixou de ser princípio e de limar as arestas às coisas. Tudo parou. Até os carros que passam na rua e as vozes que vêm lá da fora, porque já não entram em mim. Até a chuva que bate na vidraça porque o seu ruído passou a ser silêncio.

Ela aparece às vezes com todos os diminutivos de que dispõe no momento. Porque não vou dar uma voltinha? Quero que me traga alguma coisa da rua? Então não me animo? Está um dia tão lindo, um sol tão quentinho…

…porque me lembrei de repente que não comia desde a véspera e isso pareceu-me extraordinariamente importante.

…dizia que eu esperava demasiado das criaturas de Deus sem pensar que elas eram simples criaturas de Deus.

Papéis bordados a letra miúda que eu desconheço. Mais firme, mais igual, mais redonda. A minha letra de agora engelhou e amoleceu com a minha cara e as minhas mãos, com o meu próprio corpo de seios flácidos, de carne desbotada e só.

E as frases que me ocorriam deram-me de súbito uma grande vontade de rir.
- Estás a sofrer, Mariana – disse o Luís. – Para quê tudo isso. Chora, se te apetece.
Ai a vaidade dos homens! Como havia eu de chorar, porque havia eu de chorar se tinha comigo o meu filho? Porque ele se ia, julgava ele… A vaidade dos homens, a incrível e ridícula vaidade dos homens…

As mãos tremiam-lhe sobre a secretária. Não que fosse um bom homem. Não. Era grosseiro, injusto, autoritário. Simplesmente estava a viver o seu momento de bondade.

Detesto as donas de casa. Se são pobres, esfalfam-se a trabalhar, se são remediadas ou ricas arranjam uma ou mais pessoas para se esfalfarem em seu lugar. De qualquer modo são escravas do trabalho ou então da vigilância com outras escravas à suas ordens. A vida a correr lá fora, os maridos e os filhos a correrem com a vida, metidos nela, e as donas de casa a esfregar, a limpar, a dar brilho aos metais. Ou a ver as outras fazê-lo. Olhe que o pó não está bem limpo. Olhe que a torneira não está bem areada. Isto não pode continuar assim, isto tem de acabar, olá se tem! O que a vida já correu e elas sem a verem. Sem darem por nada. Ficaram sozinhas e não se dão conta. O marido morreu sem nunca ali ter estado, os filhos fugiram para se casar com outras donas de casa que estavam escondidas dentro de raparigas bonitas, alegres e apaixonadas. E a vida continua. Olhe que isto não pode continuar assim, olhe que isto tem de acabar, olá se tem. E os filhos dos filhos a pensarem em fugir e a sonharem com outras raparigas apaixonadas…


A enfermeira tomava profissionalmente parte no meu desgosto.

A enfermeira chegou-se a mim, passou-me a mão pelos cabelos. Gritei-lhe que se fosse embora, gritei tanto que as das outras camas se calaram e durante muito tempo só se ouviram na enfermaria os meus soluços e o choro assustando dos recém-nascidos.

- Verá como ele lhe arranja qualquer coisa… É muito meu amigo, fica até contente por me ser agradável. É uma excelente pessoa. Admirável como homem particular e como homem público… Por que está a rir?
O eterno costume de me rir de coisas que não tinham graça para os outros…

Eu dantes gostava… Talvez ainda gostasse, quem sabe? Entrei por isso, lembro-me agora, só para saber se ainda seria capaz de gostar de qualquer coisa.

Levei as mãos à cara e tirei-as molhadas.

É o meu fim, o único. Não posso escolher outro, não há outro para mim: Pela primeira vez alguém me vem buscar, alguém me procura. Porque não hei-de estar feliz, eu, a escolhida?
E não posso. Sinto-me violada e virgem. Muitas coisas em mim e completamente vazia. Vazia porque até a esperança se foi. A esperança mas não o meu desejo de viver. Mesmo neste quarto que tem um cheiro mau que eu já não sinto, mesmo com o António longe de mim e o Fernandito a beijar uma mãe que não sou eu, mesmo assim eu queria viver. Como sei. Como posso. E a vida a gastar-se cada dia mais, a gastar-se sem eu a ter vivido.

- Pois não acha, D. Mariana? Não acha que era muito melhor?
Eu não sabia do que se tratava mas acenei afirmativamente. Ficou muitíssimo contente.
- Pois é melhor D. Mariana, é melhor, lá nada lhe falta.

Hoje vou para o hospital. Julguei que podia morrer neste quarto mas não, ainda não. Meti na mala o meu retrato talvez me deixem olhar para ele, não sei. A D. Glória vestiu-me como se eu já estivesse morta. Pôs-me o chapéu da pena, embrulhou-me no casaco, fez-me calçar umas meias suas porque eu não tinha nenhumas sem buracos. Estamos ambas à espera do táxi que a Augusta foi buscar. A D. Glória vem também. É como se fôssemos ambas ao meu enterro.”

Como, Morte, Temer-te?


'Como, morte, temer-te?
Não estás aqui comigo, a trabalhar?
Não te toco em meus olhos; não me dizes
que não sabes de nada, que és vazia,
inconsciente e pacífica? Não gozas,
comigo, tudo: glória, solidão,
amor, até tuas entranhas?
Não me estás a sustentar,
morte, de pé, a vida?
Não te levo e trago, cego,
como teu guia? Não repetes
com tua boca passiva
o que quero que digas? Não suportas,
escrava, a gentileza com que te obrigo?'

Maria Lúcia Lepecki

Morreu Maria Lúcia Lepecki. Professora Catedrática, ensaísta e crítica literária. Dedicou-se ao estudo da obra de Camilo Castelo Branco, objecto da sua tese de doutoramento. Fez também importantes análises à escrita de Fernanda Botelho, José Cardoso Pires ou Júlio Diniz.


Mulher de causas no difícil Mundo Literário, manifestou-se contra o Novo Acordo Ortográfico. A sua última obra publicada é 'Uma Questão de Ouvido - Ensaios de Retórica e de Interpretação Literária', pela Dom Quixote.

"Eu sempre achei que o acordo ortográfico não é preciso: um brasileiro lê perfeitamente a ortografia portuguesa e um português lê perfeitamente a ortografia brasileira"