Meu querido José,
Escrevo-lhe
nesta manhã de véspera de Natal, sabendo de antemão que já se encontra ausente
desta que foi a “fantástica Coimbra”, noutros tempos e noutras andanças.
No
entanto, escrevo-lhe na mesma, sabendo que escrevo para uma inexistência da sua
parte, temporária. Mas há-de voltar, jovem frenético. Há-de ler estas linhas
com alguns dias de atraso, o que me dá um certo conforto, pois acredito que as
palavras, assim, têm um tempo de silêncio e maturação, como um belo fruto
vermelho e maduro que se desfaz nos lábios, ou então como um bom vinho, frutado
e suave. (…)
Voltando
ao que me levou a escrever-lhe neste dia: o Amor. É verdade, jovem futurista
para dentro e modernista do avesso! Nesta triunfal antemanhã do nascimento do
paradigma de Deus judaico-cristão e greco-romano venho eu, do alto do meu
metro e setenta e nove, e dos meus maus sessenta e oito anos, falar-lhe do
amor. Mas sossegue, menino. Falarei do amor que me impressiona, claro está,
em Wagner, mais propriamente, naquele momento final, único, belo e
transcendente: a morte por amor. Outros amores
ficarão para mais tarde, não só na escrita, como na vida.
Se
conseguir, encontre pelo mundo virtual e medonho essa parte final dessa
indizível ópera, interpretada por Horowitz, num belo e longo piano negro. É
imperativo que se escute os minutos finais enquanto se lê esta intragável
impressão! Aliás, a música será como o antídoto, bem lenitivo, que anestesiará
o compassivo leitor, deixando este predisposto à mediocridade que mais à frente
se segue. (E que não se segue, pois envio somente um esboço. Talvez da próxima
envie o texto completo. Tenho tido alguns problemas com a datação destas impressões.
Efraim insiste para que se escreva tudo no computador, para que não se perca nenhum
texto, mas, sabe como sou, pouco ou nada, nada mesmo me interessa ter isto
escrito por aí. O que se conseguir
ler é o que subsistirá. O resto, meu caro, é esquecimento).
Sabia
que o compositor esteve três dias para conseguir obter uma gravação, a seu ver,
perfeita? Veja bem o trabalho que as coisas belas dão! Agora imagine quando
falamos de amor! Irra!
Bem,
são estas curiosidades que tornam o mundo wagneriano numa galáxia constituída
por órbitas inimagináveis, onde a poeira cósmica é, nada mais nada menos do que
o Absoluto. (Devo admitir que esta última frase saiu-me bastante bem! Não bebo
há 5 horas! Imagine se eu vivesse sem o inevitável líquido âmbar!)
Por
isso, esta impressão que ora lhe mando, impublicável, breve e discreta, pois é
assim que vejo o amor nos nossos dias, irá deambular, turistar ao som das
partituras finais, se não mesmo a final!, de Tristão e Isolda.
Ainda
irei escrever-lhe, muito, bastante!, sobre Wagner e a sua Transcendência em
estado humano, mas não hoje. O Cadernos
de Nicosia, além de impublicável, é uma coisa demasiado séria, com Wagner a
mais, e com demasiadas chatices para ser lido por meia sala cheia, daí esta
impressão seguir incompleta ( de forma propositada).
Desejar-lhe-ia
um feliz Nascimento da ficção redentora, se lesse isto ainda hoje, antemanhã
desse pagão acontecimento de luz e redenção. Assim, desejo-lhe boa sorte para a
impressão que se segue, que me parece muito mais curta que esta missiva,
aborrecidíssima, que longa vai há já muitas linhas.
Efraim
ainda dorme, mas manda-lhe sempre um abraço semítico. Dentro em breve irei adormecer, com o amanhecer de Coimbra.
Muito
seu.
Gonçalo
V. de S.
O Amor (Liebestod por Horowitz)
Que seja capaz de amar a Humanidade o
coração mais nobre e mais terno. Enquanto isso, que o meu copo nunca seja como
a minha vida: um vazio líquido.
Esta manhã, Efraim, tentei, e consegui,
sair deste quarto de hotel e desta varanda literariamente cosmopolita. É Agosto
(ou Setembro?) deste ano de (mas em que ano estamos?) e sinto o mundo e os
passeios desta capital deste país navio aos solavancos, como um grande e inútil
soluço metafísico.
Mas afinal, o que é, para mim, o Chipre,
senão uma sensação estrangeira do que mais pátrio sinto: o movimento, a mudança?
Somos, ainda que sem o saber, turistas
na nossa vida e vagabundos da vida dos outros. Entramos na vida dos outros como
um leitor que desvirgina um romance vezes e vezes sem conta, parecendo, até,
haver algum prazer masoquista, ainda que plenamente estético, neste turistar
como vagabundo. Eis o viajante do século XX! Já nem precisa de sair de casa, ou
do seu quarto de hotel, para viajar pelos quatro mil milhões de cantos de um
mundo esdrúxulo. Ser flâneur é viajar pelas janelas dos quartos e pelas varandas
de todos os hotéis cosmopolitas, ainda que ninguém acredite. Mas tu
conheces-me, Efraim. Por mais que o dia pareça ser doloroso, enfrento-o como um
Tristão de Pub irlandês, e viajo por aí como um rafeiro elegante, exqui e mal traduzido.
Faço um trottoir matinal, como quem toma um banho vitoriano. Vou ciciando,
para dentro, como fariam os pederastas amigos de Mr. Gray., uma cançoneta
qualquer, e, não sei como, o amor despenha-se por mim adentro como uma barragem
que de inexpugnável só tem o passado que a incontrolável corrente de água fulva
e funâmbula apaga. Num instante.
Inexplicavelmente, a água fulva
transforma-se nos ruivos cabelos de Isolda, não a falsa, fingida e mentirosa,
mas sim na outra Isolda, a bela, pura, cândida, nume, graciosa, perfumada e santa.
A santa Isolda de Wagner. Porque em Wagner, o amor é como o perdão para os
seguidores de Cristo: o caminho da perfeição.