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sábado, 27 de junho de 2015
Aqui vai nascer um projecto diferente de gin: Caorunn, por Helder Magalhães
Caorunn
a língua tacteia
as formações que se elevam
para lá da boca...
e as paisagens adentram-se
de quantos sabores
se faz o gosto que nos forja
a marca da imortalidade
de quantos foles
se empreende o fôlego da viagem
que determina a chegada
urge romper os céus
na voz que tudo compreende
e permanecer
na natureza feita carne.
Helder Magalhães
a língua tacteia
as formações que se elevam
para lá da boca...
e as paisagens adentram-se
de quantos sabores
se faz o gosto que nos forja
a marca da imortalidade
de quantos foles
se empreende o fôlego da viagem
que determina a chegada
urge romper os céus
na voz que tudo compreende
e permanecer
na natureza feita carne.
Helder Magalhães
Porque aqui vai nascer um projecto diferente de gin, não perca os nossos poemas.
sexta-feira, 26 de junho de 2015
quinta-feira, 25 de junho de 2015
Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações
Meu querido José
Cá lhe escrevo, já com
os pés nas inúmeras ilhas gregas. Que sol, que céu, que mar, que povo, jovem
das andanças de papel!
Tenho peregrinado por
todos estes arquipélagos onde Dédalo brincou e Zeus amava todas as criaturas
sem ainda se haver apaixonado por Europa, essa princesa humanamente imortal,
Isolda dos cabelos dourados de uma antiguidade anterior àquela que vem nos
livros.
Pois bem, tenho comido
e bebido de tudo o que pela magnânima Hellas se cultiva e cozinha. Veja bem que
até virei entusiasma daquela dança que Zorba tão bem performizou! Quem diria!
Eu, celeste bebedor de néctares e de ambrósias carnais, dançando sirtaki como
um cretense!
O tempo recomenda-se,
caro amigo. Hélio tem sido condescendente ao ponto de Poseidon estender o seu
manto azul e líquido por toda esta região bendita pelas oliveiras, pelos deuses
e pelos filósofos!
Envio-lhe um texto que
lhe prometi na semana que passou. (Ainda se lembra da questão do tempo e da sua
itinerância? Reflicta, jovem das dionisíacas mensagens!
Efraim vive debaixo de
água, nadando ao lado das raias enquanto eu vou preferindo um espreguiçadeira,
um panamá luminoso, um ouzo bem
gelado, e um livro. Ou o horizonte.
Um filosófico a
marítimo abraço deste
Seu
Gonçalo Viana de Sousa
Assim que embarcamos neste cruzeiro com um nome
insoletrável, a primeira coisa a fazer-se, como bom turista e como flâneur que se preze, é vaguear pelos
camarotes, pelos luxuosos halls,
pelos cafés e pracetas e casinos e pelo convés, da proa à popa, na segurança e
descanso de que as nossas malas foram acomodadas nas nossas suites, e as roupas
e acessórios devidamente arrumados, perfumados e preparados para os lautos e
marítimos jantares. Após esse primeiro trottoir
(cansativo, pois o cruzeiro tem centenas de metros e pisos e pisos de passeios
e lojinhas e bares e restaurantes, sento-me num bar para respeitar essa que é a
tradição, diria Campos, “antiquíssima e idêntica” de beber um gin bem gelado.
Bebi o meu gin de ervas mediterrânicas, recomendado pelo capitão do cruzeiro,
meu primo em segundou ou terceiro graus. Havíamos zarpado de Génova e em menos
de duas horas encontrávamo-nos em Cagliari, na insular Sardenha. Lembro-me
disto, pois havia uns televisores que iam dando informações a propósito de isto
e daquilo, de tudo e nada. Tanta informação e, contudo, tanta escuridão! Não
sei se terá sido pelo embalar dos gins, que, como sabe, no meu caso, são como
as cerejas, ou pela brisa que soprava pelos dedos de Zéfiro, a verdade é que
adormeci. Devo ter dormido o equivalente a um capítulo de um romance breve,
jovem das ficcionais verdades!
Acordo com um impressionista e laranja lusco-fusco de
Cagliari. Apressado, dirijo-me para o meu camarote, pois a hora de jantar
aproximava-se e era necessário um duche como imperativo categórico e uma camisa
lavada e sapatos engraxados como verdade universal!
Assim que me aproximo da porta do meu camarote sinto
um intenso cheiro a tabaco de enrolar e a cinza queimada misturada com um
adocicado cheiro de água-de-colónia francesa. Entro no meu camarote e para meu
espanto o fumo pairava pelo quarto e pela escrivaninha, onde um sujeito moreno,
dos seus quarenta anos, sorvia impetuosos e sucessivos cigarros. O seu nariz
adunco e o seu pensativo bigode compunham uma face onde era indispensável o
queirosiano monóculo. O homem andava às voltas com um gigante manuscrito onde
eram relatados fartos e inúmeros episódios da pequena e provinciana Lisboa.
Pelo cão! O Eça de Queirós estava sentado na escrivaninha do meu camarote a
escrever o seu maior romance e a única pilhéria que fui capaz de lhe dizer foi
a seguinte: Arre homem, pelo menos abra a janela que o ar aqui está de escachar!
Não foi o facto de um escritor do século XIX estar à minha frente escrevendo a
sua Magnum Opus que me estarreceu,
mas antes o facto de estar a fumar com a janela fechada! E a fumar num camarote
expressamente para não fumadores! O José sabe como o fumo do tabaco me irrita
solenemente! Eça olha para mim, solta uma gargalhada e responde-me, Olá menino!
Então isto são horas de se vir aprontar para o jantar? Foi o ginzinho que caiu
mal, menino? O autor de Os Maias
estava vestido de forma imaculada, límpida, pedante, burguesa e oitocentista. E
eu com os sapatos por engraxar e a camisa por engomar, pensava, enquanto Eça fazia
galhofa da minha situação. Oiça lá, José Maria, o que faz no meu camarote? Isto
não é um paquete com destino ao Suez. O queirosiano inventor voltou a sorrir,
mas desta vez com um certo torcer de lábio. Depois de soltar uma longa e
irónica fumarada disse-me, Se vamos ou não para o Suez, menino, quem não vai
jantar é você que mais parece um
pinto pintão. E a sua roupa não está aqui, menino, você enganou-se. Mas porque pepineira andou você metido? Ahaha, se madame
d’Oriol o vê assim, desmaia! Imagine que Ana de Leon jantava na nossa mesa? Lá se ia o chic importado às prestações e que vem empacotado pelo vapor da
Europa! Ahahaha. Menino. Lave-se, vista-se, perfume-se e durante o jantar não
faça figura de maganão! Imagine o meu desespero e angústia! É que no fundo era
eu quem estava a mais no camarote, que afinal não era o meu, era este seu
servo, para não falar que invadi a mente do nosso grande romancista numa altura
muito má. A certo ponto, este vira-se para mim e diz-me com aquele seu gesto
irónico e delicioso: Faça o favor de sair do meu quarto e da minha realidade,
ora pois! Acorde e volte lá para o sítio de onde veio. Faça boa viagem e seja chic, menino, pois essa camisa
amarrotada denuncia patuscadas suspeitas nas tias Camelas!
Co’a breca, jovem das literaturas doidas, tive mais um
sonho literário! E com Eça de Queirós! Veja lá bem a minha sorte!
Acordo, agora verdadeiramente, e disparo as pernas para
o meu camarote. Abro a porta. O Silêncio e a janela que deixa ver o lusco-fusco
de Sardenha. Acredita que o cheiro àquele mesmo tabaco que o nosso romancista
fumava pairava no ar?
Vá-se lá perceber a mente humana!
Poesia e Gin - duas belíssimas combinações
Porque não fazer poemas ao gin? Porque não largar as formas tradicionais de falar de certas coisas? Há vários mundos por explorar, combinações improváveis, sabores que nos apresentam de diversas maneiras.
Também há muitas marcas, várias formas de saborear e de o preparar, múltiplas combinações possíveis.
Assim como as palavras, assim como a poesia...
Desafiados por bons amigos, lançamos no nosso blog e no nosso grupo esta aventura. É assim que dizemos sim, aqui vai nascer um projecto diferente de gin. Eles e nós juntos, num sonho conjunto de divulgação das coisas boas da vida!
Fiquem atentos, os membros deste grupo vão dar-vos poemas sobre diferentes tipos de gin.
Alguém está com sede?
Também há muitas marcas, várias formas de saborear e de o preparar, múltiplas combinações possíveis.
Assim como as palavras, assim como a poesia...
Desafiados por bons amigos, lançamos no nosso blog e no nosso grupo esta aventura. É assim que dizemos sim, aqui vai nascer um projecto diferente de gin. Eles e nós juntos, num sonho conjunto de divulgação das coisas boas da vida!
Fiquem atentos, os membros deste grupo vão dar-vos poemas sobre diferentes tipos de gin.
Alguém está com sede?
O Clube entrevista os leitores - Gina Matos
Rodrigo - Como descobriste o Clube de Leitores?
Gina Matos - Conheci o Clube de Leitores quando andava à procura de blogs de leitura onde me pudessem indicar livros e ler alguns textos que me despertassem interesse em novas leituras.
- O que te chamou mais a atenção nesta comunidade?
- A princípio limitava-me a ler os posts sem sequer comentar. Não me sentia à vontade, nunca me tinha aventurado a conversar com pessoas para mim desconhecidas e que me pareciam estar num plano mais elevado. Mas descobri que eram pessoas acessíveis com quem podia conversar e assim aprofundar os meus conhecimentos. A pouco e pouco atrevi-me e comecei a comentar e obtive respostas, o que me deixou muito feliz e à vontade para continuar a visitar a vossa casa.
- O facto de todos os bloggers serem também escritores é algo que te entusiasma?
- Fiquei entusiasmada pelos blogueiros serem escritores e tão acessíveis ao público.
- Este blog veio mudar alguma coisa na tua vida de leitora? Recordas-te de alguém que tenhas conhecido e que tenha valido a pena?
- A minha vida em relação à leitura mudou radicalmente, pois além de eu adorar ler, agora podia desfrutar o prazer de conversar com escritores e poetas e exprimir o meu apreço pelo que eles publicavam.
- Como foi passar do mundo virtual ao mundo pessoal com algumas pessoas que conheceste através do Clube de Leitores?
- Através desta troca de mensagens e conversas tenho vários escritores como amigos virtuais e outros que se tornaram pessoais sem nunca ter sido eu a ter a iniciativa de pedir amizade pois, como eu dizia, sou apenas uma simples leitora que adora ler e escrever algumas coisinhas, mas sem grandes conhecimentos gramaticais para poder fazê-lo da forma que vocês o fazem. Também adoro ler histórias às crianças e gostaria de abraçar esse projecto, aliás já estou a tratar disso.
Na minha última estadia no Brasil tentei com a Penélope uma visita à escolinha onde faço voluntariado mas com muita pena não consegui, (não por culpa dela ou minha...). Mas estou a contar os dias para lhe ir dar um abraço pessoalmente à feira do livro.
E também vai ser este ano que vou conhecer pessoalmente a Alice Vieira, pois no ano passado a minha timidez não me deixou.
Já conheci a Ana Almeida pessoalmente e adorei.
- Tens alguma história que te tenha marcado – quer através de um post no blog ou de alguma pessoa envolvida na sua dinamização?
- Gostei muito dos passatempos que promoveram. Levaram-me á descoberta de novos escritores. Tive a oportunidade de ler a Raquel Serejo Martins com o seu livro "A Solidão dos Inconstantes" livro esse que ela me ofereceu através do passatempo que ganhei neste Clube.
Estes passatempos promoveram em mim uma realização pessoal. Afinal também conseguia pôr no papel os meus pensamentos...
- Com que frequência visitas este espaço?
- Eu visito diariamente este espaço.
- Como vês este projecto dentro de alguns anos? Sentes que ainda existe muito para se discutir?
- Penso que no futuro este clube será ainda melhor, pois com os vossos ensinamentos virão mais leitores e escritores e assim teremos uma linda e agradável tertúlia entre todos.
- Numa frase: O Clube é…
- Com o Clube de Leitores aprendi a sair do casulo e expressar os meus sentimentos em palavras, textos ou versos e dá-los a conhecer aos outros sem timidez. Por isso o clube de leitores é: uma segunda casa que considero família. Obrigado
Nota: Eu prometo seguir o Clube de Leitores, na alegria e na tristeza em todos os momentos da minha e vossa vida, até que a falta de crédito ou a internet nos separe.
*Rodrigo Ferrão entrevista os leitores do blog, nos 5 anos deste projecto.
Gina Matos é uma entusiasta seguidora do nosso blog
quarta-feira, 24 de junho de 2015
a-ver-livros: declaração de princípios
Adoro quando a natureza me rouba as palavras
mas leva no leito
gentil
mas murmura ao ouvido, atrevida
e me embala
Ana Almeida
terça-feira, 23 de junho de 2015
palpitação
o corpo expõe-se à verdade
pela água
depois de mergulhado
suspira vir à tona
não sem antes revolver
o negrume entre a lama
na nudez própria do fôlego
a quem os olhos
descreveram a órbita
da morte
quer-se o movimento
trémulo sobre a corrente
palpitação da voz
límpida que eclode à pele.
Helder Magalhães
![]() |
Ed Freeman Photography |
É do borogodó: a mesma espécie
As águas do rio banham a tua, a minha aldeia.
A mesma poeira de terra, mesmas solas gastas dos sapatos
herança de nossos pais.
Não há nada diferente no pão
nem na falta.
E até a pele ressequida de frio e sol
tem mesma sangria desatada de histórias.
A mesma poeira de terra, mesmas solas gastas dos sapatos
herança de nossos pais.
Não há nada diferente no pão
nem na falta.
E até a pele ressequida de frio e sol
tem mesma sangria desatada de histórias.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
MEDO
Medo, da pintora Ana Cristina Dias
Sacode as
nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as
aves que te levam o olhar.
Sacode os
sonhos mais pesados do que as pedras.
Dizia, quase
cantava, a mãe baixinho ao seu ouvido a sossegar-lhe o medo dentro do corpo.
Levava tempo, a mãe
cheia de cuidados, horas escuras e nocturnas, ela um animal assustado que aos
poucos sossegava e dormia, e o sono inquieto, convulso, avulso.
A mãe sabia o que
era o medo, a amargura dos dias, a alegria nenhuma, a vontade nenhuma, de nada,
e às vezes o alívio, o raro conforto, o descanso de pensamentos tortos e indizíveis,
o sossego de não pensar em nada, nada, nada, de flutuar no vazio.
Em pensamentos a
mãe matou-se mil vezes.
Os pulsos cortados,
as cápsulas coloridas de comprimidos, o terraço no topo do prédio, sempre tão
sujo o terraço, só ela e pombos no terraço, se as nuvens baixas o terraço quase
nas nuvens, e ela não nas nuvens, um bando de pombos a atravessar o céu, e ela em
queda, o seu corpo desmantelado no passeio, fiozinhos de sangue a fazer charcos
no asfalto, depois o asfalto sem o seu corpo, o perímetro do seu corpo
desenhado a giz no asfalto, a chuva a fazer desaparecer o giz e os charcos de
sangue, a trazer sem pudor os pés anónimos dos transeuntes.
Leu que, em regra, não
se morre do embate no chão mas sim de ataque cardíaco durante a queda. O
coração dentro do corpo a explodir como uma granada.
Em pensamentos matou-se
mil vezes e não morreu.
Não se morre em
pensamentos.
Ou sobreviveu mil
vezes, diria um optimista.
Haja paciência para
os optimistas.
Não era optimista
nem pessimista, era triste e amarga.
Quem não tem dentro
de si um pouco de tristeza e solidão não é gente, é personagem de anúncio de
televisão. Serve para vender viaturas e detergentes, coisas úteis de facto, mas
sem caroço como a fruta, sem miolo como o pão.
O que será que lhes
justifica e suporta o optimismo, que lhes sustenta os sorrisos nas bocas, a
claridade dos dias, a escuridão interminável das noites?
O que será?
Qual o segredo, quando
tudo torto e escuro e apertado dentro do peito.
Bastava-lhe abrir
um jornal para ter motivos para chorar.
Não precisava sequer
de um jornal para ter motivos para chorar.
É feita de uma
matéria triste e escura.
A tristeza pode ser
tão pesada que não nos deixa respirar.
Passa os dias a
contar até dez, a respirar fundo.
E apesar de todos
os cansaços, de todos os esforços, o que não podia acontecer, aconteceu.
O seu medo maior
concretizou-se.
Percebeu que a
criança, a criação, que pôs no mundo, é feita da mesma matéria escura e triste.
A história a
repetir-se.
A tristeza a ganhar
a guerra.
Por isso, por
prematuramente perceber, porque medo reconhece o medo, desde pequena, ao seu
ouvido, soprava-lhe não canções de embalar, mas palavras de encher o peito de ar,
na tentativa de desenvencilhar os pulmões, de clarear os pensamentos, de abrir
sorrisos.
Depois cresceu e a
mãe, cada vez mais frágil, mudou a ladainha, deixou de falar baixinho ao seu
ouvido, começou a falar alto, imperativa explicava, depois de contar até dez,
depois de respirar fundo, que o medo é como uma nuvem
negra que anda sobre a nossa cabeça, basta largar a corda e deixar que o vento a
leve.
Dizia isto e batia a porta do
quarto.
Batia a porta e desaparecia
semanas inteiras.
E ela não percebia a mãe. Não
gostava da mãe.
Semanas inteiras em que o pai
parecia um trapezista, um palhaço, um artista de circo.
O pai a sair mais
cedo do trabalho para ir buscá-la à escola.
Dias de gelado,
cornetos de chocolate, mesmo se Inverno.
Passeava pela
cidade com o pai sempre a contar, a inventar, histórias de rir, tantas vezes sem
graça nenhuma, depois das quais, no máximo, ela sorria, sorria de pena, a
alegria possível, consciente da idiotice do pai.
E quando
regressavam era noite e a casa estava às escuras. O pai a adiar o regresso a
casa. Tocava à campainha e a casa assustava, porque não se mexia.
Depois, em casa, a
primeira coisa que o pai fazia era pôr um disco a girar no gira-discos, para
não serem só dois, para ter mais gente em casa.
O pai escolhia um
dos discos preferidos da mãe, mas a mãe nunca saia do quarto.
E às vezes dançavam
na carpete da sala, às vezes abraçados, um abraço na certeza de que só se
tinham um ao outro, outras vezes jogavam monopólio e o pai fazia sempre batota
para perder, batota com os dados para ir directamente para a prisão sem passar
pela casa da partida e sem receber dois contos.
Assim, mais ou menos assim, até
que um dia, muitos anos depois se cruzou com as palavras da minha mãe num poema
da Sophia, a voz da minha mãe dentro de um poema da Sophia.
O poema ou o puzzle finalmente inteiro,
completo, desvendado.
Sacode as
nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as
aves que te levam o olhar.
Sacode os
sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu
cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que
os meus gestos te trespassem
De
solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que
a minha voz queime o ar que respiras
E os teus
olhos nunca mais possam olhar.
E nesse dia chorou, chorou como
um vulcão.
Chorou porque tudo viu sem a
névoa da decepção.
Chorou porque percebeu.
Pela primeira vez percebeu a
mãe, imaginou a vida da mãe, os últimos anos de vida da mãe.
Teve de imaginar, porque não
viu, porque não estava lá para ver.
Sem resistência, sem paciência,
afastou-se.
Em rigor fugiu, ou não fosse
humano, não mais do que fraco e humano, a felicidade alhear-se do sofrimento. A
defesa possível. A cobardia.
Fugiu, ou tentou ser feliz.
Que a tristeza da mãe como um
vírus, contaminava, exauria, comia tudo o que era alegria e boa vontade, uma
tristeza gorda, pesada, sem tamanho.
Por isso a mãe de quarentena.
Por isso a mãe não foi ao seu
casamento e mal lhe conheceu os filhos, um menino e uma menina.
Maria Dulce, mãe. Como tu, mãe.
E a mãe sem olhar para o
carrinho onde a pequena criança dormia, numa triste centelha de lucidez, a
dizer baixinho, a repetir baixinho como se um mantra mau, a minha mãe devia
ter-me chamado Maria Dolores.
A tua avó devia ter-me chamado
Maria Dolores.
A mãe a sair da sala sem um
beijo, sem um adeus, a fechar-se no quarto, no seu mundo.
E no quarto a mãe à janela. A
janela fechada, a cortina corrida.
A mãe a ver a vida a passar na
rua embrulhada em luz, em vidro, em linho bordado.
A mãe a dizer-lhe adeus sem lhe
dizer adeus sem tirar os olhos da janela.
Foi a última vez que viu a mãe,
de costas, imóvel à janela, lembrava um quadro do Hopper, para anos depois
encontrar a mãe dentro de um poema da Sophia, para por fim chorar, chorar de
cansaço, de tristeza, de saudade, de revolta, de alegria, chorar o que não
chorou no funeral da mãe, dia de chuva em que o alívio foi maior do que a dor,
o que fez com que a dor fosse ainda maior do que o alívio.
Por fim chorou pelos abraços
que sempre lhe faltaram, pelo abraço de adeus que nunca teve, mesmo se um
abraço incompleto, mesmo se só os seus braços a abraçar o corpo imóvel da mãe, mesmo
quando a mãe, de costas para ela, de olhos no seu mundo por uma janela.
***
Este texto, esta small SONG, teve como ponto de partida o quadro supra,
trabalho da pintora Ana Cristina Dias.
Mais trabalhos em:
http://eu-e-a-pintura.blogspot.pt/.
a-ver-livros: das mãos
Das mãos se faz
o sonho
o fruto mais desejado
a flor, a casa
a viagem
que Adamastor algum afundará
das mãos a água
o matar a sede
o afago, o aceno.
Das mãos o sabor infindo
do futuro
temperado a saudade
e uma pitada de pano
das mãos o livro
o aperto
leves, largas
quentes, amorosas
como as que embalam
o caminho
rasgadas nas rosas que não
chegaram a abrir-se
das mãos,
enfim,
a despedida, espero,
se alguém houver a quem
Ana Almeida
o sonho
o fruto mais desejado
a flor, a casa
a viagem
que Adamastor algum afundará
das mãos a água
o matar a sede
o afago, o aceno.
Das mãos o sabor infindo
do futuro
temperado a saudade
e uma pitada de pano
das mãos o livro
o aperto
leves, largas
quentes, amorosas
como as que embalam
o caminho
rasgadas nas rosas que não
chegaram a abrir-se
das mãos,
enfim,
a despedida, espero,
se alguém houver a quem
Ana Almeida
O Clube entrevista os leitores - Bruna Carvalho
Rodrigo - Como descobriste o Clube de Leitores?
Bruna Carvalho - Conheci o Clube quando me contactaste para partilhares o trabalho do meu boneco Bai'má Benda.
- O que te chamou mais a atenção nesta comunidade?
- A grande qualidade de tudo aquilo que apresenta, divulga e partilha, a parceria que tem com várias pessoas e seus projetos e a divulgação que faz dos mesmos, tornando-o realmente numa comunidade, um lugar de partilha, e a forma informal como o faz, sempre com boa disposição.
- O facto de todos os bloggers serem também escritores é algo que te entusiasma?
- Sim, é muito bom!
- Este blog veio mudar alguma coisa na tua vida de leitora? Recordas-te de alguém que tenhas conhecido e que tenha valido a pena?
- Sim veio, com o blog passei a conhecer mais autores, mais livros, novidades e eventos. E conheci-te a ti, o que valeu muito a pena pois claro, ah ah ah!
- Como foi passar do mundo virtual ao mundo pessoal com algumas pessoas que conheceste através do Clube de Leitores?
- Ainda não tive essa oportunidade.
- Tens alguma história que te tenha marcado – quer através de um post no blog ou de alguma pessoa envolvida na sua dinamização?
- Não há nenhuma em específico, todas as histórias e posts que vejo vão deixando a sua marca, nem que seja por uns minutos, enquanto viajo através delas. Mas devo dizer que ver postado o meu boneco deixou uma marca especial! Nem queria acreditar! Ah ah ah... Mas isso já é outra história!
- Com que frequência visitas este espaço?
- Praticamente todos os dias. Se não for diretamente no blog, é através dos posts no Facebook.
- Como vês este projecto dentro de alguns anos? Sentes que ainda existe muito para se discutir?
- Vejo o projeto sempre a crescer! Acho tem pano para mangas e que há sempre o que discutir, partilhar, desenvolver, divulgar e por aí fora! E faço votos para que isso aconteça, pois quando a coisa é boa, a gente habitua-se ah ah ah.
- Numa frase: O Clube é…
- (como diria o meu amigo Bai'má Benda) do caraças!!!!!
Um abraço Rodrigo. Mais uma vez parabéns e obrigada pelo blog!
C.L. Foreber!
*Rodrigo Ferrão entrevista os leitores do blog, nos 5 anos deste projecto.
Bruna Carvalho é a autora do Bai'má Benda - também aqui no Clube de Leitores
domingo, 21 de junho de 2015
Todos os meus amigos vão ser tudo a todas as horas
Todos os meus amigos são espetaculares, fantásticos, sublimes, geniais. Grande sorte a minha em me dar com gente tão talentosa. Acontece que meia dúzia deles vão ser os melhor sucedidos gestores do mundo, quatro ou cinco génios por certo serão especialistas nas coisas das Matemáticas e afins e tenho também três amiguinhas que não menos vão ser que as mulheres mais bonitas do mundo, curioso que nenhuma tenha de nome Maria Carla. Mas mais curioso ainda é que enquanto vão ser eles tudo a todas as horas continuo eu a perder-me nos desenhos animados da manhã de Sábado, a fazer pirâmides de canetas (canetas sempre sem tampa, desgraça) nas aulas de Português, e, ao menos isto todos os dias e a todas as horas, a andar com as meias trocadas. É o meu dia feito da seguinte forma, atentai
Mal chego a casa e me ponho à vontade, a minha mãe a tirar o avental e a ralhar-me
-Então rapaz foste outra vez com uma meia de cada nação para a escola, não tens atenção nenhuma, os professores ainda te baixam as notas por causa disso e depois não podes ser arquiteto nem veterinário nem advogado nem juiz
Pouco demoro a ignorá-la e então eu no quarto a fim de qualquer coisa relacionada com livros e histórias e coisas dessa espécie, no exato momento chega a minha avó e desde logo eu interrompido
-Então rapaz já sabes para que curso queres ir, dava jeito um médico na família, eu e o teu avô já não vamos para novos e queremos ver um médico na família, ouviste, queremos ver um médico na família
Por isso eu rapidamente a delegar essa responsabilidade para os meus irmãos que tão mais talentosos que eu
-Ouviram, é preciso um médico na família, um de vocês tem que ser médico, tirem à sorte desenrasquem-se
Nisto no devido acompanhamento da esposa chega o meu avô e
-Então rapaz vais ser engenheiro como o teu pai, vais ser engenheiro ou professor, decide-te lá
Nesse momento eu a pensar se quererá ele que eu seja professor de Matemática ou de História ou de Física ou de Economia ou se quererá apenas que eu professor a fim de me tratarem como doutor Gonçalo ou professor Gonçalo ou outra distinção dessa gíria
-Não avô não gosto dessas coisas, vou ser escritor de sonhos
E com estas palavras os olhos dele caídos e pisados, no chão mortos, a cara a mais desiludida do mundo e quase uma lágrima a desabrochar
-Escritor de sonhos o que é isso, se queres dizer escritor de livros fazes mal, tens que arranjar ofício que dê papel, deve um homem ter sempre troco no bolso
Depois de pausa sofrida eu a pensar-lhe nas palavras e realmente ele com alguma razão, são os velhos sabedores destas ciências
Finalmente chega o meu pai todo engravatado e com uma das alças da pasta do computador servindo de esfregona
-Já marquei as férias, vamos duas semanas ali à Índia e ao Brasil e ao Dubai e à Austrália
E o meu avô para mim, já recuperado dos tormentos
-Vês do que te falo, troco no bolso, atenta no teu pai
Vá lá que tenho uma gaveta cheia de sonhos e os bolsos a transbordarem de vontades, há de servir isso como troco nalgum sítio. Em caso negativo, desenvolvo vida a atentar na genialidade dos meus amigos. Pode ser que algum deles se lembre dos sonhos que na juventude lhes emprestei e quem sabe mos devolva já com as arestas limadas, presente precioso, uma troca em que o tempo prolonga o infinito da amizade e onde já não há lugar para génios.
Gonçalo Naves
Imagem tirada daqui: http://tagaiatin.blogspot.pt/2011/04/indecisao-parte-3.html
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