sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das sensações



A meu pedido, José, Gonçalo revela hoje mais uma impressão do seu impublicável Cadernos de Nicosia.
Quanto aos episódios que relatam o dia em que conheci Gonçalo teremos tempo. O que interessa, pois, é dar voz ao nosso flâneur.

Cantar de Grilo

            Sim, ao longe, perto do luar e da montanha azul e profunda, a noite canta em folguedos de guitarras e de pandeiretas. As fogueiras crepitam alto, o fumo do pinho estala nos ouvidos e nas canecas de barro que mergulham no verde e atracam na broa de milho.
            Um grilo canta e silva pela encosta da ermida do santinho. As velhas juntam-se nas noites de verão no largo do pelouro, e o granito é a tácita testemunha de gerações de alcoviteiras e vidas miúdas. O forno nunca arrefece a não ser nos invernos mais rigorosos. A bica nunca cessa o seu rumorejar fresco de água pura adormecendo nas bacias ou nos tanques lavadouros. Figos sumarentos e sedosos são colhidos em noites de festa, enquanto as raparigas namoradeiras pensam em futuros de oiro e nos enxovais como promessa de uma vida nova. A noite canta folguedos e a minha imaginação fica presa nessas aldeias de outros tempos como um síndrome de algo proustofilicamente perdido. E pasmo, assim, como quem deseja perdurar em palavras apenas lidas pelo esquecimento.
            Efraim, o desejo de humanidade em cada cantar de melro, em cada gorjeio de água é tão doloroso quanto delicado.
            Deste quarto de hotel, o mundo não é mundo. É apenas uma janela com vista para Nicosia. E ainda há pouco divagava por aldeias caiadas de lareiras que, mornamente, crepitavam família e segurança…
            Façamos as malas, Efraim! Partimos ainda esta noite, no primeiro navio que estiver disponível! Nicosia começa a enfastiar-me de tanto sol e de tanta lua e de tantas promessas de um mar azul e acolhedor. Deita fora todas as fotografias. Queimas as de Maria Adelaide. Faz com que as imagens dessa mulher impossível e imaginária desapareçam da realidade e da ficção, já que os seus cabelos são descrições de romances realistas escritos lá longe, na França de Oitocentos.
            Livra-te somente das fotos, meu amigo. Fiquemos mais uns dias, até semanas. Nicosia ainda tem o mundo para nos oferecer. Para onde iríamos a esta hora da noite, quando podemos escutar este suave cantar de grilo?
            Sentemo-nos e escutemos esse pequeno cantar de grilo, leve, suave, breve.
            Todas as belezas são efémeras. O tempo corrói o caruncho dos ouvidos das casas e dos palácios, carcomendo as perucas, tanto sociais como humanas.
            Nem whisky ou música conseguem, hoje, nesta noite de Agosto (ou Setembro?) acolher o tremer inseguro que sinto nas minhas mãos. Que fizemos da vida Efraim?
            Que fiz eu dos meus propósitos de lírios e amores? Maria Adelaide, volta, vem para mim, mais uma vez, só mais uma vez. Vem, meu amor rebuçado de linho. Meu amor doce e riquinho. Vem, Maria Adelaide, minha nossa senhora das coisas possíveis que procuramos, nunca em vão. Sempre em vão.
            Sei que Efraim não queimou as fotografias. Ele sabe a importância de todos aqueles rostos, inscritos a sépia e a esquecimento.
            E tudo isto por causa de uma noite de aldeia em festa!
            Volta para a cama, Viana de Sousa, diz-me Efraim. Volta para cama e esquece-te da noite.
            Eu volto para a cama e fecho os olhos.

            A realidade não existe.

Rodrigo no Brasil das letras: dia 3

Este poema apanhou a minha lente no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

A foto é minha - Rodrigo Ferrão

Foto frase do dia: Mário Cesariny


*Cesariny

Poesia em matéria fria: Cecília Meireles

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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Que frase escolhem? Passatempo «Brasil»

P.V.P.: 19,90 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 432
Editora: Editorial Presença

Qual é a frase que escolhem para ser a vencedora do passatempo «Brasil»?

Estas são as cinco melhores frases a concurso. E vão agora a uma grande final que decorre até dia 12. As mais votadas ajudam o júri a decidir os vencedores - basta comentarem este post (aqui no blog, na página do facebook ou também no grupo).

Boa sorte!

~~__~~

Diogo Fernandes

O que mais gosto no Brasil são as pessoas. A vida. A descontracção. A despreocupação. A alegria de viver. Todos estes ingredientes fazem da população brasileira a mais carinhosa, amável e prazerosa de se conviver. Impossível não sorrir com um brasileiro. Impossível ficar triste junto de um brasileiro. De uma forma sempre "bacana" e "legal", os dias passam mas a mentalidade não regride. O povo brasileiro continua jovem, vivo e "bem lá no alto". Com os brasileiros aprendemos a viver a vida como deve ser vivida: com vida.

Ana Paula Oliveira

Sob o céu azul, estendem-se quilómetros de areia branca, abraçada pelo mar e por frondosa mata, que conduzem à pequena e formosa vila piscatória cujos restaurantes, lojas e feiras de artesanato maravilham os turistas com o seu toque de rusticidade sofisticada. Biodiversidade, beleza natural e encanto moram na Praia do Forte.
O mar, que acorda nervoso, vai relaxando ao longo do dia. Ao final da tarde, completamente calmo, alonga-se, lânguido, e mostra todo o seu esplendor.
Este é o local certo para fugir ao ruído e à confusão. Onde silêncio, calma e paz rimam com calor, boa disposição e festa. E, para alimentar a festa, apenas a 60Km, a cidade de S. Salvador da Bahia, de flagrantes contrastes e cheia de História, envolve quem lá chega. Logo nos deixamos seduzir pelo ritmo dos berimbaus e pela alegria da capoeira, pelo odor e sabor da fruta, pela cor das baianas e das paletas dos pintores, pela música saída dos sinos das inúmeras igrejas. Mas a maior emoção é o encontro com Jorge Amado cuja presença se sente e se toca e se respira.
- Sorria, você está na Bahia – dizem-nos.
E é impossível não sorrir, não dançar, não conversar, não beber uma agradável caipirinha, não saborear um delicioso sorvete de frutas exóticas, não encher a alma com tanto que este cantinho do paraíso tem para oferecer.
Não conheço outros lugares cariocas, mas Brasil é isto. Sinto-o.
(texto adaptado de um que escrevi em 2011 e publicado na revista Fugas)

André Silva

Adoro no povo brasileiro a sua vivacidade,
E a sua alegria é de alucinar,
E já desde tenra idade,
Que esta cultura quero experienciar!

No Brasil adoro o clima e o seu calor,
E no seu povo a sua boa disposição,
Um dia quando lá for vou percorrer com fervor,
Os seus recantos de manhã ao serão!

E esta obra quero muito ter,
Para os meus conhecimentos do Brasil preservar,
E aqui prometo que se vencer,
Corro de Paredes até Ovar!

DanielaMP

Para começar o Brasil é simplesmente lindo tornando-se complicado enumerar o que mais gosto nele.
O clima é sempre convidativo, pois mesmo com chuva o tempo está quentinho.
As praias estão rodeadas de gente simpática e de atracções turísticas e gastronómicas sem igual.
O Carnaval é um evento completamente do outro mundo! O espírito de festa, a alegria contagiante das pessoas, algo inexplicável.
Todas as noites são noites de festa, com muita música e gente bem vestida.
Até a língua é bonita e curiosamente basta umas horas no Brasil para que sem darmos conta estarmos também a “falar brasileiro”.
Sem esquecer que no Brasil existem vistas e monumentos fantásticos que para quem o visita são quase como obrigatórios.

redonda

A literatura: Jorge Amado (comecei a ler Gabriela, Cravo e Canela e continuei com todos os que fui apanhando, D. Flor e os seus dois maridos, O País do Carnaval, Suor, Tieta do Agreste, Tocaia Grande), Erico Veríssimo (li a trilogia O Tempo e O Vento, Clarissa, Olhai os Lírios do Campo e Caminhos Cruzados), José de Alenquer (O Guarani, Iracema), José Mauro de Vasconcelos (Meu Pé de Laranja Lima - li-o com treze anos e depois mais três ou quatro vezes e chorei sempre que o li - Rosinha minha Canoa, Doidão e A Ceia, e uma das minhas escritoras preferidas, Lygia Fagundes Telles pelo livro As Meninas mas também Ciranda de Pedra. Pelos livros parece-me que estive um pouco lá. Pela fascinação dos livros, comecei também a ler as revistas Terra, Veja, Isto é e Época (entretanto só a a Veja é que continua a aparecer à venda), a ouvir a música e a experimentar a comida, picanha e moqueca de peixe. Um dia gostava de ir lá.

*O vencedor terá que enviar-nos a sua morada. Em caso de não o fizer, o Clube atribuirá o livro a outro(a) finalista. Fique atento!

Rodrigo no Brasil das letras: dia 2

Este poema apanhou a minha lente no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

A foto é minha - Rodrigo Ferrão

Já há prémio Nobel da literatura: Patrick Modiano


Patrick Modiano recebe o Prémio Nobel da Literatura de 2014

Patrick Modiano nasceu em Boulogne-Billancourt, nos arredores de Paris, em julho de 1945, e publicou o seu primeiro romance, La Place de l'Étoile, em 1968. Com Rue des boutiques obscures obteve, em 1978, o Prémio Goncourt. Em 1972, recebeu o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa.

Considerado hoje um dos mais importantes escritores franceses, e autor de uma vasta obra, foi distinguido recentemente com o Grande Prémio Nacional das Letras e com o Prémio Margerite-Duras.

Do catálogo da Porto Editora consta o seu romance mais recente, O Horizonte

*in wook

Press Release

9 October 2014

The Nobel Prize in Literature 2014
Patrick Modiano

The Nobel Prize in Literature for 2014 is awarded to the French author Patrick Modiano

“For the art of memory with which he has evoked the most ungraspable human destinies and uncovered the life-world of the occupation”.

Foto frase do dia: Lispector

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Eu poético: «O fim dos dias»

O fim dos dias

cai uma chuva de morte,
sopra um vento gelado
e ouvem-se os pobres a gemer na rua por onde passo.

hoje é dia de te chorar.

na janela daquela casa
avisto uma criança que espreita.
condensa nela a vida que tu abandonaste,
num olhar que afirma
esperança,
amor,
um futuro.

no jardim do cemitério
percebo a presença de um gato.
ele ignora as almas que partiram
e as que se mantêm de pé.
o seu instinto não se presta a essas coisas
dos estados maiores da tristeza.
nunca provou uma lágrima
nem esteve no mar
para sentir o sabor do sal.

o caixão é entregue ao fogo,
os homens e mulheres vestidos de negro afagam-se.
depois cada um toma o seu carro
e volta a casa.

antes de dormir penso:
se na morte um dia descanso em paz,
na vida a minha existência permanece em guerra.

saio na manhã seguinte armado,
pronto a matar os obstáculos à felicidade
- sabendo que são mais os que me derrubam.

e entretanto...
vejo que a criança
sai de casa de mãos dadas à mãe,
os pobres
dormem sob e sobre as caixas de cartão
e o gato
passa por mim levando um pardal na boca.

felizmente há quem viva
indiferente à inevitabilidade
do
fim
dos
dias.

Rodrigo Ferrão
Foto: Rodrigo Ferrão

Rodrigo no Brasil das letras: dia 1

Este poema apanhou a minha lente no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

A foto é minha - Rodrigo Ferrão

Visite o museu em http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/

Ciclo do Emílio - dia 3

 3.

Há amores que não morrem e perduram
No tempo
E nos constroem e destroem e reconstroem
Por dentro
Há amores que nos escrevem
E nos riscam
E nos libertam
E há amores
Que nos prendem, que nos transformam em asas e em vento…
E há amores que nos amam e outros que amam ainda mais
E outros e outros
Que lembramos
Que se transformam em pensamento
E em estradas atravessando desertos…
E há amores
De todas as cores
De todas as idades
Cidades, rios e velhas árvores
Sussurrando-nos,
Pejadas de aves que nos encantam…
E há outros
Que nos dilaceram
E nos matam
E nos matam
Para além da morte!


20/8/2014

Poesia em matéria fria: Cacaso

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terça-feira, 7 de outubro de 2014

Ciclo do Emílio - dia 2

2.

Uma espada afiada é mais verdadeira
Do que uma promessa
Uma espada mata
Ou corta
Ou rasga apenas
As entranhas
Mas uma promessa
Uma promessa
É uma espada de dois gumes
De três gumes
Uma estrela que corta
Em todas as direções
Que rasga
E dilacera
Não quando acerta
Mas quando falha!

20/8/2014

*Emílio Miranda

É do borogodó: no meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade

"No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra."

Carlos Drummond de Andrade


Para marcar os 40 anos do poema “No meio do caminho”, Carlos Drummond de Andrade publicou, em 1967, o livro Uma pedra no meio do caminho — Biografia de um poema, no qual reuniu uma ampla seleção com o que foi dito sobre os famosos versos. O Instituto Moreira Salles lançou em 2010 uma nova edição do livro concebido pelo próprio Drummond, ampliada pelo também poeta Eucanaã Ferraz. Por ocasião do lançamento, o IMS produziu um vídeo com a leitura de “No meio do caminho” em vários idiomas.

Penélope Martins

a-ver-livros: relação transitiva

Há poesia no silêncio
e silêncio nos teus olhos

Portanto
há poesia
nos teus olhos

Ana Almeida

* para saber mais sobre a ilustradora americana Kelly Vivanco
siga o link www.kellyvivanco.com

Começar o dia a sonhar?

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Apesar das Ruínas

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

*Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Antologia Poética'

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Entrevista a Torga, por Cremilda de Araújo Medina

Miguel Torga

Conduzida por Cremilda de Araújo Medina, publicada originalmente no Diário de Lisboa, de 25/11/1949 e republicada em seu livro: Viagem à literatura portuguesa contemporânea. Rio de Janeiro:Nórdica, 1983.

Apresentação:

É difícil chegar a Miguel Torga. Ou ao dr. Aldolfo Rocha, que atende em um velho consultório, em Coimbra, com a especialidade anunciada na placa: médico de ouvidos, nariz e garganta. Há muitas versões sobre o temperamento do velho poeta, mas todos são unânimes de que não dá entrevista. Portanto, ninguém estimulou a tentativa de acesso ao autor de Bichos. Nada como ser persistente no delicado itinerário da busca dos artistas. Após alguns contatos telefônicos, eis que, a um mês de trabalho, Torga decide ceder e marcar a entrevista em Coimbra.

No primeiro momento, as explicações. Por que tão arredio a entrevistas? Torga justifica: os jornalistas estão sempre atrás do incidental, dos fatos mais aparentes, superficiais, dos aspectos sensacionalistas do homem, não do escritor. Não que não compreenda que essa é a perspectiva do jornalista, mas o que o irrita é o desconhecimento da obra do artista. Não Lêem seus livros e querem, por simples curiosidade, ver como é o homem, como se comporta. Afinal, Miguel Torga tem plena consciência de que o que tem a dizer está dito em seus poemas, contos ou ensaios.

Isolamento, alienação do momento português presente? Só quem não conhece seus textos pode caluniá-lo de egocêntrico. Sempre foi um homem que interferiu no momento certo e nunca se escondeu durante o período da ditadura. Pelo contrário, faz questão de insistir com ênfase, se expôs muito. (Torga em seu consultório, abre um grande armário de livros – as edições de mais de 50 anos de produção literária – e vai com a mão certa à obra que procura). Nada como provar com texto inquirindo sobre a posição do artista no sistema:

- O espírito criador é, por natureza, heterodoxo e dinâmico. E é justamente por isso que ele é um tambor de destaque em todas as tiranias. Vendo com desespero que não conseguem fazê-lo vegetar no caldo de cultura morno e temperado onde geram as mediocridades, perseguem-no sem dó nem piedade. Mas ele é ágil e sutil: escapa-se por entre os dedos da mão que o estrangula, e pelo vão das grades que o prendem.

Perguntaram-lhe ainda nesse distante 1949, numa campanha eleitoral em que fazia parte das oposições: e pensa que será desta vez que entre nós o artista se libertará?

- Pelo menos vai em bom caminho. Quando do outro simulacro de eleições, disse-lhe que vinte anos de ditadura não tinha abalado o espírito de liberdade do nosso povo e que, se fosse necessário, recomeçaríamos o calvário. Assim aconteceu, como se vê. A oposição continua viva e inabalável, mais aguerrida ainda, porque nestes três anos só houve motivos para cada um redobrar as suas convicções. Longe de compreender e de tolerar, o governo só violentou e tripudiou. Pisou mais o povo, ofendeu e desrespeitou a inteligência, esvaziou de conteúdo as legendas da sua propaganda. Por isso, as fileiras dos seus adversários viram-se ainda mais engrossada.

Foi então cobrado: como escritor, votaria contra a situação?

- Contra a atual situação, como escritor que quer ser livre; e pelo candidato da oposição, como cidadão que quer ter direitos e obrigações. E creia que sem nenhuma ilusão quanto ao Eldorado do futuro. Os escritores portugueses não ignoram que a herança é má e que será preciso muito esforço e muita abnegação para arrumar a casa. Mas, visionários que são, acreditam na melhoria constante do homem e sabem que para esse aperfeiçoamento se dê, é necessário que haja experiências, mudanças, tentativas, recomeços.

Torga termina de ler este texto de 1949, publicado no Diário de Lisboa a interrogação: Eu isolado do mundo à minha volta? Sempre fui muito participante. Miguel Torga atesta, com outros textos reunidos em Fogo preso, que nunca se valeu de uma linguagem indireta, alegórica, para interpelar o poder. Qual a atitude do artista diante da sociedade? Disse-o também de público nos anos 40: “A atitude de todo artista verdadeiro não pode ser neste momento senão de inteira e franca comunhão com a grande massa dos país. Os artistas não constituem uma classe. São livres e mágicos servidores de quem tem a verdade e a história pelo seu lado. Ora, a verdade e a história estão, como sempre estiveram, do lado do povo.”

Torga confidencia: disse coisas terríveis a Salazar. Como, por exemplo, de que a luta seria ganha por aquele que vivesse mais. O poeta era mais jovem e reconhece a malícia do argumento. No fundo, porém, o que ele se julga é, acima de tudo, um resistente. Traz consigo a saga de um resistente, velho transmontano que fez das pedras do caminho a própria fortaleza. Hoje, aos 75 anos, vê Portugal como uma grande confusão. Claro, a liberdade é uma conquista irrefutável. Todo o resto é simples questão de tempo para construir. Oito anos de revolução são muito pouco. Nós, segundo Torga, vivemos um tempo curto, apressado. A história vai mais devagar.

E o Brasil? Miguel Torga começa por amolecer. Sua expressão se abranda. Não está mais em posição de defesa, quer saber de notícias da terra em que viveu um período precioso de sua juventude. (Um tio, que tinha uma fazenda em Minas Gerais, o recebeu para trabalhar no campo. Foram tempos duros, de sol a sol, mas guardou fortes lembranças dos poucos anos que viveu aqui. Voltou a São Paulo em um congresso, na década de 50, e da ligação com o Brasil saiu um livro, Traço de união.) Torga quer saber como vai a situação da liberdade de expressão no Brasil. Ouvia-se falar, em Portugal, naquele momento, da produção do filme Pra frente Brasil, de Roberto Farias. O poeta pondera: “As ditaduras concedem liberdade de forma muita lenta. São terríveis na destruição das lideranças política e na destruição do sistema educacional.” Lembra ele que a escola primária, no fim do século XIX, era, em Portugal, uma instituição muito sólida e muito avançada. Tudo isso se perdeu com a ditadura.

Ainda falando do Brasil, Torga não esquece duas pessoas que lhe são muito caras afetivamente. Guilhermino César (atualmente professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que deu curso em Coimbra e também é um importante poeta (mineiro), tornou-se grande amigo de Torga. De Érico Veríssimo, que também conheceu de perto, guarda boas lembranças. (A esta altura, o porte ascético do poeta transmontano mostra sinais evidentes de ternura, imagem contraditória à que corre em Portugal).

Causa espanto um escritor que começou a publicar em 1928, que tem uma obra considerável em poesia, ficção, ensaio e teatro, nunca ter suas obras publicadas por uma grande editora. Os portugueses respondem ao mistério com um traço do caráter de Torga: ele próprio edita seus livros, cuida da distribuição e controla tudo. Há até os que apontam certa mesquinhez em dois comportamentos típicos: nunca oferece livros, nem sequer autógrafos. Mas o poeta desmentiu, no contato direto, essa acusação – deu de presente três livros. Quanto ao problema da editora, já que não faltaram nem faltam atualmente inúmeras ofertas, Miguel Torga diz que não haveria editor no mundo que o aturasse. Faz emendas permanentemente em provas e em livros publicados. Então, vale a pena ter uma gráfica, em Coimbra, acostumada com ele e contendo apenas letreiros de titulo, autor e cidade onde edita. São também famosas as histórias do tempo da censura. Se uma parte da edição era apreendida, havia a outra, em posse do escritor, escondida em algum lugar, que logo circularia.

O que mais preza nesse caos político que o rodeia? A grande liberdade interior. Sente-se um homem coerente consigo mesmo. Em 1977, quando foi a Bruxelas receber o Grande Prêmio Internacional de Poesia, deu uma entrevista (fato inédito para Portugal) a um jornalista belga. Nesse momento, enfatizou sua dupla vida de médico e escritor: “Exerço a medicina desde 1933 e tenho consultório em Coimbra. Nasci numa das províncias mais pobres de Portugal. Aos 13 anos, o meu pai, segundo uma tradição bastante arraigada no meu país, mandou-me, sozinho, para o Brasil. Naquele país vivia um tio meu que dirigia uma fazenda, mas ignorava se ele era vivo ou não vivo. Fui e encontrei-o. Trabalhei, durante cinco anos, nessa exploração agrícola e, depois, regressei a Portugal. Fiz o meu liceu em três anos e, a seguir, os estudos médicos. Procurei sempre ser um homem completo. O interesse que sempre tenho concedido aos meus concidadãos, quer como concidadãos, quer como doentes, fez com que me sentisse sempre mais próximo dos homens”.

A propósito, houve uma rápida interrupção no encontro de Coimbra. O dr. Adolfo Rocha conversou com uma humilde paciente que veio consultá-lo a respeito da receita que tinha na mão. Com o máximo de delicadeza e até mesmo carinho fez questão, a dúvida foi esclarecida. Retomando o assunto, Torga faz questão de dar seu justo perfil, o de um homem de coragem (que se arriscou o máximo no tempo de Salazar e chegou a ser preso), e, acima de tudo, de um resistente. No fundo, ele está plenamente integrado com as personagens a quem deu vida na poesia ou na ficção: “Homens inteiros, saibrosos, altos, espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas da terra. Cobrem-se com varinos, mantas e mais roupas de serrobeco ou de colmo. Aos vinte anos, quando não aos dez, depois da vida militar, alguns emigraram para o Brasil. Os que ficam, cavam a vida inteira. E quando morrem, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim de um longo e trabalhoso dia”. (Um reino maravilhoso, conferência de Torga, em 1943). A opção monástica em Coimbra, é, segundo o escritor, a tentativa de “ser todos”. Assim se define e assim dá conta de quem é. Quanto aos outros escritores em Portugal, recusa-se a falar. Não sabe, não quer saber. Só sabe de si próprio. Neste sentido, numa despedida bem mais afetiva que aos primeiros instantes de contato, denota curiosidade sobre a sintonia ou não das versões sobre ele e aquela que no final predominou. Sente-se contente, realizado ao desmanchar a imagem de inacessível: recebeu-me para a entrevista, esclarece, porque encontrou outra pessoa resistente... Manifesta, então, certa preocupação: que não leve para o Brasil uma má impressão de Coimbra. Afinal, uma viagem especial para encontrá-lo. O alto e ascético poeta se despede com um abraço e sai do consultório rapidamente para um tratamento de fisioterapia marcado aquela hora. Mas volta da escada. Quis achar mais um livro – o que fala do Brasil – para dar de presente. Traço de união (1955), começa assim: “Portugal devia fazer com o Brasil o que certos autores exigentes fazem com os livros que escrevem: refundir sempre que possível a versão original”.
Entrevista:

– A sua opinião sobre o atual momento político português?

É a de todos os escritores que não estão emprenhados na conservação de sombras prepotentes.

– Sombras?

Pois. O que é tudo isto senão um pesadelo que é preciso sacudir? A realidade que lhe deu corpo já morreu há muito na Itália e na Alemanha, condenada pelo consenso universal. E os epígonos são sempre cinzas, por mais vida que aparentem. O fascismo português, do fim da guerra para cá, lembra-me sempre um ultra-romantismo político: já todos a quererem naturalismo e verdade, e ele ainda no “Vai alta a lua na mansão da Morte”...

– Os artistas continuam então rebeldes e progressivos?

É a função deles. O bom de Camões, que é sempre um exemplo em tudo, deixou o Velho do Restelo a gemer na praia e seguiu viagem ocmo os descobridores. O espírito criador é, por sua natureza, heterodoxo e dinâmico. E é justamente por isso que ele é um tambor de festa em todas as tiranias. Vendo com desespero que não conseguem fazê-lo vegetar no caldo de cultura morno e temperado onde geram as mediocridade, perseguem-no sem dó nem piedade. Mas ele é ágil e sutil: escapase por entre os dedos da mão que o estrangula e pelo vão das grades que o prendem.

– E pensa que será desta vez que entre nós ele se libertará?

Pelo menos vai em bom caminho. Quando do outro simulacro de eleições, disse-lhe que 20 anos de ditadura não tinha abalado o espírito de liberdade do nosso povo, e que se fosse necessário recomeçaríamos o calvário. Assim aconteceu, como se vê. A oposição continua viva e inabalável, mais aguerrida ainda, porque nestes três anos só houve motivos para cada um redobrar assuas convicções. Longe de compreender e de tolerar, o Governo só violentou e tripudiou. Pisou mais o povo, ofendeu e desrespeitou a inteligência, esvaziou de conteúdo as legendas da sua propaganda. Por isso, as fileiras dos seus adversários viram-se ainda mais engrossadas. De maneira que por este caminho...

– Portanto, inteiramente confiante na vitória?

Sim. Para já, com eleições livres; para o futuro, com a evidência de que não há dique que resista aos rios todos de Portugal.

– Fé?

Certeza. O tempo só trabalha a favor do futuro. E o futuro somos nós. O mal é não se ver na oposição a parte consciente e permanente da Nação. Julgam-nos um bando de lunáticos e de traidores, quando na verdade representamos a única coisa que presta num país: o anseio, a inquietação, a vontade constante de caminhar.

– É então por uma solução inteiramente nova do caso português?

Sou pelo movimento, pela variedade, pelo jogo de contrastes, por tudo o que não seja monotonia.

– E acredita que será possível em Portugal uma renovação assim?

É preciso ter confiança no homem, e, no caso particular, no homem português. Não andar todos os dias a humilhá-lo com restrições cívicas. É urgente salvá-lo e nome duma certeza fraternal nas suas virtualidades de cidadão. Descrer dum português acessível à razão, à lógica, à demonstração, parece-me uma falta de amor e de patriotismo.

– E a desordem? E o perigo de certos caminhos?

Em primeiro lugar, começa a ser uma crueldade andar todos os dias a chamar-nos desordeiros, a nós que temos tido a paciência de marcar passo metidos na ordem há tanto tempo. A esse respeito, eu até ia por uma conclusão contrária: que há em nós uma vocação colegial que é necessário combater. Quanto ao perigo de certos caminhos... Eu sou por todas as experiências sociais que o homem queira fazer livremente. Não se deve pôr entraves de nenhuma espécie às tentativas que um povo consciente faça para melhorar o seu corpo e a sua alma. Não foi certamente sem remover o marasmo econômico e mental em que viviam que certos paises, pequenos ou grandes, conseguiram o bem social que gozam.

- Mas dizem que o nosso povo não tem essa consciência política...

Porque ninguém lha deu, nem quer dar. Com ludibrios constantes, a açaimes cada vez mais apertados, é que ele não a arranja. Por uma lado, pede-se-lhe que vote. Que é o seu dever, que é o seu direito. Por outro, ri-se-lhe na cara publicando resultados eleitorais que o fazem corar, ou pregando publicamente que o sufrágio é uma estupidez social.

- O problema vem de longe...

Pois vem. Mas com uma pequena diferença: no tempo da República havia pelo menos respeito pelo principio em si. E isto, parecendo que não, é meio caminho andado. Ninguém pode dignificar uma coisa em que não acredita. Os outros, com todos os seus defeitos, davam pelo menos mais esperança... lógica. E é justamente sobre uma base lógica que o país, enjoado de sofismas, pretende construir. Queremos uma democracia consciente, igualitária, onde cada indivíduo só não tenha liberdade de prejudicar o semelhante. Esse individuo terá sempre alguma coisa de pessoal e de sagrado a dizer na causa comum. Será essa qualidade insofismável da sua opinião a força da sua humanidade e as sua alegria de viver.

- Como escritor vota então contra tudo o que está?

Voto eu e vota toda a gente que quer ter dignidade na sua terra. Toda a gente que não possa, em consciência. Eleger um candidato que já se deixou nomear várias vezes.

- Em conclusão...

Contra a atual situação, como escritor que quer ser livre; e pelo candidato da oposição, como cidadão que quer ter os direitos e obrigações. E creia que sem nenhuma ilusão quanto ao Eldorado do futuro. Os escritores portugueses não ignoram que a herança é má, e que será preciso muito esforço e muita abnegação para arrumar a casa. Mas, visionários que são, acreditam na melhoria constante do homem, e sabem que, para que esse aperfeiçoamento se dê, é necessário que haja experiências, mudanças, tentativas e recomeços.

Ciclo do Emílio - dia 1

1.

Isola-te e morre
Ou então escreve
Escreve poemas e romances fantásticos
Fantásticos no poder de deslumbrar
Fantásticos no poder de levar alguém para dentro de um sonho
Como se fosse o sonho e o sonhador
Como se fosse o poeta e o poema.
Isola-te e escreve
Escreve o que te vai na alma
Com a dor das palavras
Deita tudo para fora
Como quem vomita ou chora
Chora a vomitar e vomita mais ainda
Vomita as entranhas
Um bom vómito pode dar um excelente poema
Um poema de amor
Ou de morte
Um poema que anuncie um amanhecer
Menos escuro do que a noite
Isola-te
Mas não te separes do que amas
Mesmo que esse amor te doa
Mesmo que te doa respirar
Sem amor morres
Por isso resta-te sempre o amor das palavras
Fluindo gráceis
Fluindo gráceis

Fluindo gráceis…

20/8/2014

*Emílio Miranda

a-ver-livros: teimosia

Partem à minha volta
fico
a guardar as paisagens
que apodrecem
na ausência

a guardar as raízes
desgarradas

Teimosia
de querer pisar a terra
onde caem
as lágrimas

Ana Almeida

* para saber mais sobre o ilustrador espanhol CarLos C. Laínez
sigam o link carlosclainez.blogspot.pt

Poesia em matéria fria: Daniel Faria

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domingo, 5 de outubro de 2014

Foto frase do dia: Dostoievski


O regresso da máquina de escrever

"Condenada ao desaparecimento, pela chegada do computador, a máquina de escrever regressa de forma inesperada. Qual a origem deste fenómeno?"

Começa assim o artigo da Courrier Internacional, 
retirado do Jornal Finantial Times, Londres.

"O seu martelado tac-tac-tac era tanto sinónimo de redacção de um jornal como a escrita à mão ou o fumo dos cigarros. Uma ilustre lista de escritores, de Jack Kerouac a Ernest Hemingway, usava-as para fazer as suas palavras sangrarem sobre as páginas em branco. 

 

Ernest Hemingway à esquerda, Jack Kerouac à direita, com as suas máquinas de escrever

No entanto, a máquina de escrever parecia destinada a juntar-se ao telégrafo e à disquete nas prateleiras da tecnologia supérflua. Estarão as preocupações com a vigilância da internet a fazê-la regressar?

Na sequência de uma reportagem publicada no semanário económico alemão Wirstchaftswoche, o Diehl Group, uma holding alemã de tecnologia e defesa, confirmou que usa máquinas de escrever convencionais para "assuntos sensíveis."

De facto, tal como os críticos da comunicação social foram céleres a apontar, existem as organizações de espionagem que poderiam voltar a interceptar comunicações dactilografadas, como faziam antigamente. 

Em vez disso, o principal motor do recente ressurgimento da máquina de escrever parece ser o dos jovens universitários, tipos criativos e gente com preocupações de estilo - uma mescla que não é habitualmente conhecida por evitar ser o centro das atenções.

Edward Michael, da Swintec, uma empresa de máquinas de escrever da Nova Jérsia, explica outro aspecto da presente atracção: "Quando nos sentamos em frente ao computador, vamos ver o e-mail, entramos num chat com alguém, passamos pelo Facebook - e não começamos a trabalhar nos primeiros 45 minutos. Com uma máquina de escrever, ficamos logo  100% concentrados. 

(...) continua a haver imensas razões românticas para o uso de uma máquina de escrever: "Falaram-me de escritores que escrevem os seus romances na máquina de escrever e que, em vez de carregarem numa tecla e voltarem atrás para apagar uma palavra, voltam a bater toda a página. E enquanto dactilografam, pensam um pouco mais e melhoram o texto", diz Edward Michael. "Quando se bate novamente uma página, muda-se a história de todos nós."

Excertos do artigo: As máquinas de escrever voltam a fazer-se ouvir, Courrier Internacional
Outubro de 2014. Autor: Chris Bryant. Tradução de Ana Cardoso Pires. 
Artigo original disponível em: http://www.ft.com/cms/s/0/6d480dcc-13d6-11e4-b46f-00144feabdc0.html#axzz3FHOO5clE

Apanhei-te a ler... dia 22

Michael Jackson

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