sábado, 14 de abril de 2012

É bom O RETORNO a grandes romances assim...


«Dulce Maria Cardoso publicou em 2001 o seu romance de estreia, Campo de Sangue, Grande Prémio Acontece, escrito na sequência de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. Desde então publicou os romances Os Meus Sentimentos (2005), prémio da União Europeia para a Literatura, e O Chão dos Pardais (2009), prémio Pen Club. A antologia de contos Até Nós foi publicada em 2008.

A sua obra está publicada numa dezena de países e é estudada em diversas universidades. Estão em curso propostas de adaptação cinematográfica de alguns dos seus contos e romances.»

Começo a análise do romance do mês de Março pegando no historial da escritora (que aparece bem no fim). Isto para vos explicar que considero absolutamente notável o seu percurso - que acaba de ver este seu último trabalho, O Retorno, premiado como Romance do Ano 2011. Acho justo apelidar Dulce Maria Cardoso como uma das mais talentosas da sua geração e um nome já consagrado em Portugal. Nem sempre os prémios contam a história do autor, mas neste caso, estou plenamente convencido da justiça dos mesmos.

Já tinha algumas obras de Dulce aqui em casa na pilha dos livros por ler. Foi uma surpresa quando a Luma Garbin escolheu este em particular para nos acompanhar em Março. Surpresa no sentido que antecipou a minha leitura em muito tempo e, provavelmente, potenciou a leitura antecipada de todos os próximos... Não há que enganar: Dulce Maria Cardoso tem um estilo de escrita corrida, bem caracterizada e é muito bem documentada - neste caso tanto historicamente como nas emoções e especificidades de cada personagem.

A trama trata de um assunto muito sério entre dois países - Portugal e Angola. Confesso que tenho hoje a sensação que esta época era saltada nas aulas de História da escola. Obviamente sabia muito pouco sobre o tema ao pormenor. Sabia o que eram "Os Retornados", mas estava longe de imaginar a maneira como foram conduzidos de volta a Portugal. E muitos deles - como o personagem Rui e a sua irmã - nem podem ser incluídos neste retorno, porque já nasceram lá.

Pura ignorância minha não saber que foram instalados em Hotéis, aos montes. Ou mesmo saber que os seus bens ficaram parados em contentores sem se perceber muito bem de quem eram ou para quem iam. Não foi um assunto bonito, não foi não senhor! É, de facto, um marco histórico de extrema importância. Não pode ser um problema simplesmente ignorado. Tarefa que este romance parece fazer melhor que a mesma matéria explicada num manual de História.

Isto porque carrega de emoções e sentimentos todo este conflito infeliz que conduziu à fuga de imensas pessoas - que por culpa da guerra perderam tudo o que tinham e vieram parar a uma terra que já não sentiam sua. E pensar que Portugal os acolheu da forma mais desprestigiante possível, transformando-os num grupo à parte...

Rui é a personagem central. Um jovem adolescente que começa a descobrir a idade adulta com a dureza desta viagem, com a incerteza (temporária) de saber se o seu Pai está vivo, "arrumado" num quarto de Hotel que partilha com a irmã e a Mãe. Educado com a clássica premissa de "um homem não chora", Rui vê-se na posição de homem da casa - mesmo sendo ainda, em muitos aspectos, um típico adolescente. Facilmente nos encantamos com as suas peripécias, medos, experiências e sonhos. E é ele que nos vai contar a história toda.

Convido-vos a ler a opinião que a Luma fez da sua leitura. Vale muito a pena, porque inicia a sua exposição com a pergunta correcta: "O que é retornar-se a um lugar onde nunca se esteve?"

Alguém sabe, de facto, responder a esta pergunta?

O Limite Saudável do Amor por Nós Próprios, por Jean Jacques Rousseau

Filósofo francês do século XVIII, Jean Jacques Rousseau deixou este pensamento para a posterioridade. Hoje, ao lê-lo, fez pleno sentido na minha consciência.

«O amor por nós mesmos, que só a nós diz respeito, sente-se satis­feito quando as nossas verdadeiras necessidades ficam satisfeitas; mas o amor-próprio - que se pretende comparar com ele - nun­ca se sente satisfeito nem o poderia estar, porque esse sentimen­to, que nos leva a preferirmo-nos aos outros, também exige que os outros nos prefiram a eles próprios; ora isso é impossível. Eis co­mo as paixões suaves e afectuosas têm origem no amor por si pró­prio, e como as paixões de ódio e de ira provêm do amor-próprio. Assim, o que torna o homem essencialmente bom é o facto de ter poucas necessidades e de pouco se comparar com os outros; o que o torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e preo­cupar-se muito com a opinião. Sobre este princípio, é fácil ver co­mo se podem dirigir - para o bem ou para o mal - todas as pai­xões das crianças e dos homens. É verdade que, como não podem viver sempre sós, dificilmente poderão viver sempre bons: e esta dificuldade aumentará, necessariamente, com o alargamento das suas relações; e é nisso, sobretudo, que os perigos da sociedade nos tornam a arte e os cuidados mais indispensáveis para prevenir­ - no coração humano - a depravação originada pelas suas novas necessidades.»

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Para uma sexta 13


"Sorte

Enquanto vives perseguindo a sorte,
não estás pronto para ser feliz,
ainda que seja teu o que mais queres.

Enquanto te lamentas do perdido,
e tens metas e não te dás descanso,
não podes saber o valor da paz.

Só quando a todo anelo renuncias,
sem objectivos nem desejos mais,
e já não dás à sorte qualquer nome,

já a maré dos eventos não te atinge
o coração, e se acalma tua alma."

Herman Hesse
(de “Música da Solidão”, 1915)


E porque há sempre uma palavra que não conhecemos:
anelo |é|
(derivação regressiva de anelar) s. m.
Desejo ardente ou intenso. = ANSEIO, ASPIRAÇÃO
in Priberam

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Marjane Satrapi chega em português, pela Contraponto

Não creio que vá ser um grande sucesso editorial em Portugal esta tradução da magnífica obra de Marjane Satrapi. Tenho pena, porque acho que a Contraponto teve um desafio excelente e fez um trabalho meritório. Simplesmente não sinto que tenhamos (ainda) um público leitor que consuma B.d. deste nível. E se temos, prefere comprar as edições originais pela Amazon. De qualquer forma, não me parece uma audiência de massas, mas um nicho muito específico.

Posso estar completamente enganado. Espero bem que a história mais badalada sobre a adolescência no Irão dos últimos anos conquiste muita gente. Como a mim conquistou - tanto na leitura como no cinema.

Outro factor que considero relevante é que os nossos jovens e adultos lêem cada vez mais as tendências cinematográficas do momento - como o caso recente da adaptação de
«Os Jogos da Fome» de
Suzanne Collins (refira-se que os seus livros estão actualmente em todos os Top's das principais livrarias, mas o primeiro da saga já foi publicado pela Presença em 2009).

O trajecto da tradução portuguesa do livro de Marjane Satrapi é inverso: Persépolis foi adaptado pela própria autora e por Vincent Paronnaud ao cinema em 2007. Contou com vozes conhecidas deste mundo como Chiara Mastroianni e Catherine Deneuve e arrecadou importantes prémios da crítica. O livro sai em Portugal 5 anos depois disto tudo (e a história é já de 2000). Infelizmente estou em crer que a febre do filme já passou e isso vai retirar espaço ao livro.


Há dois factores que podem deitar por terra todas as minhas teorias. Ou uma grande revista literária (ou até personalidade) lhe dá um grande destaque - fenómeno que normalmente traz alguma animação; ou o livro entra no já badalado PNL (Plano Nacional de Leitura) como leitura autónoma recomendada a jovens (e porque não? Anna Karenina de Tolstoi ou 1984 de George Orwell são deste plano) . Seria caso para adivinhar um sucesso não tão imediato. Mas, pelo menos, com vida mais longa...

Esperemos que Persépolis vingue e fique connosco por muitos anos. Que não seja mais um caso de edição única que, por falta de leitura, fique esquecido e esgotado para sempre.

Acreditem que conheço excelentes livros que passaram assim despercebidos.

Deixando esta reflexão, fica a sinopse que a editora Contraponto faz desta obra (uma forma de recordar, mais uma vez, esta história):

«Com esta memória inteligente, divertida e comovente de uma rapariga que cresce no Irão durante a Revolução Islâmica, Marjane Satrapi consegue transmitir uma mensagem universal de liberdade e tolerância. Persépolis desenha um retrato inesquecível do dia-a-dia no Irão, as desconcertantes contradições entre a vida familiar liberal e a repressiva vida pública com um regime pedagógico que atentam contra toda liberdade individual. Intensamente pessoal, profundamente político e totalmente original, Persépolis é ao mesmo tempo uma autobiografia e um chamamento perturbador sobre o custo humano da guerra e da repressão política.»

terça-feira, 10 de abril de 2012

O Sr. Luís Augusto Fonseca

O Sr. Fonseca hoje fez 50 anos e deu-lhe por pensar na vida…

… pensou que não gosta do seu trabalho…

É bancário porque filho de um bancário e neto de um bancário, profissão que com o tempo, aparentemente, foi perdendo estatuto. O seu avô foi um senhor, era o que ouvia de todas as bocas, o seu pai simplesmente patético, coisa que ninguém se atrevia a dizer, mas encolhiam os ombros como quem diz paciência.

Foi o pai que o meteu no Banco e nunca mais de lá conseguiu sair.

Às vezes pensa que se não fosse bancário estaria a lavar pratos na cozinha de um qualquer restaurante… pensa nas coisas que sabe fazer… e… lavar pratos!… mas já existem máquinas para lavar pratos, e garfos, e facas, e colheres, de sopa, de sobremesa, de chá, de café, e copos, de água, de vinho, de champanhe, e travessas, e terrinas, e molheiras, e sopeiras, e saladeiras…

… pensou que não gosta da mulher…

Não era má rapariga, mas também não era bonita, nem com a idade ganhou graça… foi a mãe que lha escolheu, Luis Augusto, estás na idade de assentar.

E ele assentou.

Não se fizeram infelizes, mas também não se fizeram felizes.

Foi-lhe infiel, exactamente duas vezes:

Uma colega de trabalho que foi colocada no seu balcão enquanto outra gozava a licença de parto, quatro meses e os fins de tarde das Quintas passados numa pensão no centro da cidade… tudo pobre e gasto… em casa disse que se tinha inscrito num ginásio, com um colega que, por mera sorte, não morreu de enfarte dois meses antes, nem perguntaram o nome do colega… um colchão como um tenor desafinado, umas cortinas tristíssimas.

Depois o tempo da licença terminou e a colega voltou ao seu balcão de origem, do outro lado da ponte, e não lhe dava jeito nenhum frequentar um ginásio do outro lado da ponte… felizmente, que Deus lhe perdoe os maus pensamentos, mas cada um vai na sua vez, não é?, o colega do enfarte teve um segundo enfarte… deixou de ter companhia para o ginásio, deixou de ir ao ginásio.

Dois anos depois, a recepcionista do dentista, e enquanto durou o tratamento de três molares… desvitalizados… e novamente às Quintas, o dia do dentista, o dia que supostamente mais lhe convinha… não sabe dizer porquê, nunca fez nem faz nada especial depois do trabalho, não sabe o que gosta de fazer… gosta de lavar pratos… apenas pratos… só se deu o cuidado de não reservar quarto na mesma pensão… e apesar do seu cuidado, mais uma vez… as cortinas… tristíssimas.

… depois vieram os filhos…

Primeiro o rapaz, depois a rapariga, um casal, como quase todos os matrimónios abençoados por Deus da sua geração, matrimónios que fizeram filhos, como quem compra sapatos e botas e luvas, aos pares.

E não lhe parecem maus meninos, nem mal criados, simplesmente não os consegue perceber, mesmo quando os abraça, não lhes percebe os corpos… e nunca lhes percebeu os olhares…

… e também já não são meninos, o mais velho anunciou no almoço do Domingo que passou que vai ser pai.

… depois não veio mais nada…

Sente-se vazio… um vazio diferente… um vazio mais vazio… tenta justificar a si próprio… pelo menos a si próprio… a existência… pensa na vida que levou… e concluiu, com uma sinceridade atroz, que apenas se orgulha de, depois de feita a tropa, nunca se ter constipado.




O Porto é um bairro - O Bairro dos Livros

(Clique na imagem para ver em pormenor)


Programa:

Bairro dos Livros é o espaço geográfico e emocional em que se inserem mais de três dezenas de livrarias da cidade do Porto, com vários perfis e identidades e que, neste momento em que a cidade mais precisa, se unem na Baixa do Porto para fazer da rede de livrarias e alfarrabistas da cidade lugares de partilha de conhecimento, de celebração do livro e dos leitores e de programação cultural pensada para todos os públicos.

Neste mês de Abril, no dia 14, o Bairro mostra-se à cidade com um programa recheado de letras e música, biscoitos e aventuras:


Abertura

14h30 :: Palacete dos Viscondes de Balsemão [Pr.Carlos Alberto, 71]
Intervenções: Antero Braga + Valle de Figueiredo + Germano Silva + Luís Cabral + Maria Deolinda Cardoso
Performance: Violoncelo - Ricardo Tauber + Barítono - José de Eça
Oficina Infantil: “Se eu fosse um livro”- Por “Aventuras Urbanas”

16h00 :: Porto d’Honra + Mostra bibliográfica- Por livreiros aderentes
Flashes Poéticos

16h30 :: Livraria Vieira -Jorge Velhote- Rua das Oliveiras, 14 – 16

17h00 :: Livraria Lumiére -Poesia de Choque- Travessa de Cedofeita, 64 A

17h30 :: Padaria Ribeiro -Guitarra de Filipe Brito- Pr.Guilherme G.Fernandes, 21

18h00 :: INCM -Portugal Poético- Pr. Gomes Teixeira n.º 1 a 7 – Leões

18h30 :: Paraíso do Livro -Col. Lourdes dos Anjos- Rua José Falcão, 214

19h00 :: Livraria Lello -Col. Suzana Guimaraens- Rua das Carmelitas, 144

Cinema, Música e Poesia

21h30 :: Cineclube -Filmes do Arquivo CCP-  Café Progresso, Rua Actor João Guedes nº5

22h30 :: Liv. Biblioteca Musical - Poesia com Ana Afonso, Celeste Pereira, Rui Pena, Música com Ricardo Tauber, Vasco Pereira de Sousa, Filipe Brito- Rua de Cândido dos Reis, 117

Campanhas:

Em ABRIL “Ler é Perigoso”
Campanha mensal de desconto de 20% nos livros considerados perigosos.

No dia em que vamos ao “Bairro dos Livros” há desconto de 20% em todos os livros e as Livrarias aderentes estão abertas até às 20h00.

Procure pelo logo do Bairro nas livrarias e descubra todas as campanhas de apoio à leitura que temos para si, todos os dias, todos os meses.


Venha ao Bairro!!!

Também online: http://bairrodoslivros.wordpress.com
Email: bairrodoslivros(at)gmail.com
No Facebook: https://www.facebook.com/bairrodoslivros

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O Falcão Peregrino - Uma História de Amor.

Como escolher apenas um livro para apresentá-lo no mês de Abril?

Como leio vários livros simultaneamente, é-me difícil escolher... Contudo, escolhi um dos livros que estou presentemente a ler e que me está a proporcionar uma bela tarde de feriado (6 de Abril) : O Falcão Peregrino - Uma história de Amor, de Glenway Wescott.



"Contando com o motorista e o casal de criados, são sete pessoas reunidas durante uma tarde, numa casa de campo em Chancellet, algures no vale do Loire, em Maio de 1928 ou 29 (o narrador está indeciso), tendo Lucy, um falcão fêmea — assim chamado em homenagem a Walter Scott —, como inesperado detonador de recalques e arma de arremesso.

A intriga avança em crescendo, dir-se-ia em clave operática, mas a aparente frieza da sua música de câmara não é de molde a suscitar entusiasmo a leitores menos familiarizados com o subtil psicologismo do autor.

Salvo, talvez, na descrição do desenlace: «A Sr.ª Cullen entrou em casa, e eu e Alex seguimo-la. Também ela estava mais nervosa do que há pouco, e a sua apresentação não era melhor. Agora, não só uma parte do seu belo cabelo caía para um dos lados, mas também o chapéu pendia sobre uma das orelhas. Viam-se pérolas de suor na sua testa e sobre o lábio superior. [...] Era ridícula, a cena. Mesmo o seu minúsculo carapuço toucado por penas de papagaio me parecia ridículo, rivalizando com o chapéu francês que a sua dona trazia agora num ângulo assaz irlandês, a única diferença é que estava seguro por cordéis. [...] Era como se aquela cena encerrasse o ciclo de acontecimentos iniciado nessa tarde, pondo termo à sequência de significados ocultos que eu vira em tudo, especialmente em Lucy.» Tendo em conta que o imbróglio envolve um casal de irlandeses excêntricos em trânsito para a Hungria, ciúmes mal resolvidos, e uma dramatização em huis clos, o resultado é deveras conseguido."

In Ipsílon, O Escritor Secreto

"O Falcão Peregrino de Glenway Wescott tanto pode ser designado como um romance breve ou uma novela longa, mas independentemente do que lhe queiramos chamar, tem exactamente o tamanho necessário. É uma obra mortiferamente precisa e sucinta; e as suas cento e poucas páginas encerram mais níveis e camadas de experiência do que muitos livros cinco vezes mais extensos"

in Introdução, Michael Cunningham

domingo, 8 de abril de 2012

Notícias à Quinta: Senhora partem tão tristes





Senhora, partem tão tristes
Meus olhos, por sós, meu bem
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Assim escreveu João Roiz de Castelo Branco, no Sec. XVI, poeta Albicastrense que serve o mote à paisagem circundante. Jardim do Paço, ou Jardim das Estátuas, quando pergunto como se vai dali para o Castelo. “É por ali menina, é por ali. Se for nesta direcção encontra Miradouro de Gens. É perto, aqui tudo é perto, mas não vá a pé”. Realmente, com o mapa na mão, em Castelo Branco tudo parece perto, mas não permite a façanha de caminhadas à descoberta. Por isso a opção passa por eleger uma estátua, neste Jardim, sentar-me na escadaria e organizar os papeis, folhetos e apontamentos. A partir daqui estender o braço mais a Norte para me embrenhar no Fundão e direccionar o tronco em direcção a Este para escrever sobre Idanha-a-Nova. Mas comecemos por onde estamos. Jardim propício a exercitar o imaginário não fosse composto por estátuas e muito simbolismo. Estou aqui protegida por São Judas Tadeu porque não encontrei o Sol e resolvi não procurar mais.
À imagem esemelhança do que acontece pelo País inteiro, tenho-me apercebido, neste périplo, que as Bibliotecas Municipais têm-se dedicado, e bem, a dar cor ao plano nacional de leitura. Aqui, em Castelo Branco o apoio tem sido sobretudo às escolas nas suas próprias bibliotecas, incentivando os “cafés com livros”. Nada melhor do que o intervalo a meio da manhã para juntar ao café, um autor, uma leitura, uma apresentação. Quanto a espaços onde ir beber inspiração, este jardim é o eleito, se bem que suspeito que não será o único. Porém, ainda não me saiu da retina Idanha-a-Nova e, por isso, passo à descrição:

Idanha-a-Nova é, com metáfora ou sem ela, o lugar onde o céu está mais perto. Não há melhor cenário de inspiração do que a barragem, levando para ela todo o caminho percorrido, de estradas desenhadas a arvoredo com castanhos e verdes indistintos. Estrelas na cabeça. Fazer o quê que não escrever e muito? Inspirar o ar até ser a pele que grita e não os pulmões. É demais, é um paraíso muito bem guardado.Também aqui as iniciativas de leitura são promovidas pela Biblioteca Municipal em conjunto com as escolas. Não encontrei nenhum café com livros, não bebi café na Biblioteca mas, a par de toda esta paisagem que promove espasmos a qualquer amante da escrita, existe um sitio, o Centro Cultural Raiano onde encontramos desde a história à tradição dos trajes e cantares, à poesia local tão rica e ancestral. Tem um anfiteatro ao ar livre e fica a curiosidade de saber como vai decorrer o resto do ano. Perdi a peça Muito Riso, Muito Siso, uma amálgama de textos lusófonos devidamente humorados. Não muito longe da Idanha, a Senhora do Almortão lembra-nos um Zeca Afonso a entoar uma linda Raiana e percebe-se bem o pedido “virai costas a Castela, não queiras ser Castelhana”. Houvesse mais tempo e não saía daqui com a sensação que há muita ”letra” por explorar.

Subindo ao Fundão, a terra berço do meu Eugénio de Andrade, já aqui revisitado no Domingo passado, o conhecimento é outro e por isso a imprecisão não será tanta. O Fundão encanta-me não só por imaginar José Fontinhas a correr aqui em criança, tanto quanto a serra da Gardunha me assusta nas suas tonalidades. O Fundão é aquele sítio onde sei que os cafés sempre foram altifalantes de discussões literárias, braços de revolução, mãos de cerejas cheias. De um café Portugal de conversas proíbidas, a um Jornal que foi silenciado tal era abertura de espirito que respirava, nas mãos de uma família que lutou contra tudo o que pôde para manter a noção de liberdade e necessidade dela. O Jornal do Fundão e os Paulouro, o Casino do Fundão e as reuniões anti-regime. É quase quanto baste para voar no imaginário Tertuliano e percebê-los saídos de Coimbra na continuação da necessidade de escrever para não gritar alto demais Dá para imaginar uns quantos. Deste apontamento sigamos para a Biblioteca Municipal, a biblioteca Eugénio de Andrade. Pelo caminho, outro café com história, o Café-Cine, cheio de letras e imagens. Ficamos a saber que a III Feira do Livro Juvenil e infantil decorrerá até ao fim do mês iniciando-se amanhã. Encontramos agendada a iniciativa Hora do Conto, uma rúbrica igual à nossa: Autor do Mês. Damos conta de uma iniciativa interessante na promoção de leitura infantil, o projecto Biblo-caixas. Acima de tudo, como já referido, sabe bem perceber quanto se tem tentado promover leitura. Para mim, ao mesmo nível, mas sim, com outro encanto, basta-me imaginar o quanto os grandes beberam e respiraram de todos estes recantos e explodiram, em palavras, toda a retina guardada.

Na próxima quinta-feira a paragem é Portalegre. Vou ter um encontro imediato. Régio, quem mais? E Domingo sentar-me-ei, com calma, a partilhar.

Até lá.
*Fotgrafia: Jardim do Paço (das Estátuas)

Virtude e Pecado são Inatos - Fernando Pessoa no «Livro do Desassossego»


*The Triumph of Venus - François Boucher - 1740


«Nenhum prémio certo tem a virtude, nenhum castigo certo o pecado. Nem seria justo que houvesse tal prémio ou tal castigo. Virtude ou pecado são manifestações inevitáveis de organismos condenados a um ou a outro, servindo a pena de serem bons ou a pena de serem maus. Por isso todas as religiões colocam as recompensas e os castigos, merecidos por quem, nada sendo nem podendo, nada pôde merecer, em outros mundos, de que nenhuma ciência pode dar notícia, de que nenhuma fé pode transmitir a visão. Abdiquemos, pois, de toda a crença sincera, como de toda a preocupação de influir em outrem.

A vida, disse Gabriel Tarde, é a busca do impossível através do inútil. Busquemos sempre o impossível, porque tal é o nosso fado; busquemo-lo através do inútil, porque não passa caminho por outro ponto; ascendamos, porém, à consciência de que nada buscamos que possa obter-se, de que por nada passamos que mereça um carinho ou uma saudade.

Cansamo-nos de tudo, excepto de compreender, disse o escolista. Compreendamos, compreendamos sempre, e façamos por tecer astuciosamente capelas ou grinaldas que hão-de murchar também, as flores espectrais dessa compreensão.»