sábado, 18 de maio de 2013

Poema à noitinha... Juan Ramón Jiménez

Solidão

Estás todo em ti, mar, e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar solitário!


*Juan Ramón Jiménez, in Diario de Un Poeta Reciencasado
Tradução de José Bento


Eugénio como nunca o viu...

"Eugénio d'Andróide", uma obra de obras, pelo nosso artista Miguel Gomes Martins.

 

David pinta... Miguel Torga

David pinta... Miguel Torga

*ilustrado por David Pintor

Não há dúvida nenhuma: se um leitor não se tem firme nos pés diante de certos livros e de certos autores, acontece-lhe como quando a gente se debruça a uma alta janela e olha com adesão exagerada para o fundo: atira-se dali abaixo. E coisa curiosa: tanto monta que o aceno venha dum clássico, como dum romântico, como dum realista, como dum futurista. Desde que a mão feiticeira que o faz saiba da sua poda, um homem, que ainda ontem era enforcado de Villon, passa a satânico de Baudelaire sem qualquer cerimónia.

*Miguel Torga, in Diário (1942)

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A arte da impressão pela Arte & Letra no Brasil



Na mesma semana em que foi divulgada a BiblioTech, a primeira biblioteca do mundo sem livros físicos, no condado texano de Bexar, no Brasil a editora Arte & Letra anunciou uma colecção de livros produzidos artesanalmente, impressos por um tipógrafo e encadernados manualmente.

Mas nada de competição entre o moderno e o retro tradicional. O mercado editorial parece começar a assimilar o momento, encontrando o espaço adequado para o impresso e o e-book.

A série limitada da Arte & Letra conta com três títulos clássicos: Um coração singelo, de Gustave Flaubert (tradução de Beatriz Sidou); Assassinatos na Rue Morgue, de Edgar Allan Poe (tradução de Guilherme Braga); e Luzes, conto de Anton Tchekhov (tradução de Gabriela Soares da Silva).

Todos os duzentos exemplares de cada livro são numerados, montados página a página, com ilustrações em xilogravura assinadas por Frederico Tizzot, Santidio Pereira e Mariana Leme. Material de primeira para quem é apaixonado por livros, resgatando uma experiência mais tátil e afetiva entre o leitor e a obra.

Para quem se interessou por essas futuras raridades, os livros estarão disponíveis, exclusivamente na livraria Arte & Letra, em Curitiba, e no site da editora.



1º Parágrafo: Por Este Mundo Acima


Agora está ali o miúdo.


a-ver-livros: tempo e David Sala



Quanto tempo demora a seiva
a cicatrizar o corte?
Quanto tempo demora 
o tempo
a curar tudo?
Já chegámos, pai? Já chegámos?


* para conhecer mais da pintura de David Sala
siga o link davidsala.com

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Poema à noitinha... Fernando Assis Pacheco - «Seria o Amor Português»

Seria o Amor Português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

*Fernando Assis Pacheco, in A Musa Irregular


Handwritten Manuscript Pages From Classic Novels: Lewis Carroll

Já alguma vez pensou conhecer Lewis Carroll desta forma? Fique com uma página de «Alice no País das Maravilhas» - pelo próprio.


Visite o site http://flavorwire.com para encontrar mais. 
Siga o link directo.

É do borogodó: dizendo Cecília

Cecília Meireles, carioca nascida em 1901, é considerada uma das principais vozes líricas da literatura de língua portuguesa. Poeta, pintora, professora e jornalista, foi uma grande entusiasta da literatura infanto-juvenil, promovendo, inclusive, a primeira biblioteca exclusiva para crianças do Brasil, em 1934.
Os poemas que compõem a obra “Ou Isto Ou Aquilo” - entre eles este "As Duas Velhinhas" - foram publicados pela primeira vez em 1964; posteriormente em edição de luxo, em 1987, com ilustrações da neta de Cecília, Fernanda Correia Dias. Talvez a edição ilustrada por Beatriz Berman, artista plástica argentina radicada no Brasil que recebeu o prêmio de desenho da Fundação João Miró, em Barcelona, seja a mais conhecida.

http://todahoratemhistoria.wordpress.com/2013/04/18/as-duas-velhinhas/



1º Parágrafo: Antes de Ser Feliz


Vim aqui para morrer. Cheguei hoje.


a-ver-livros: silêncio e Jeri Moore



Que queres que te diga
amor
se acredito piamente na eloquência
do meu silêncio

O amor não precisa de uma parede
onde ser gritado
e tu sabes,
Monika e Pedro para sempre
terminou na semana seguinte

Deixa o silêncio apregoar
o que vai cá dentro
amor
é rio que corre fundo


* para conhecer mais sobre a pintura da norte-americana Jeri Moore
basta seguir o link www.jerimoore.com

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Poema à noitinha... Nuno Júdice e «Requiem por Muitos Maios»

Requiem por Muitos Maios

Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?

No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.

E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles - os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer - nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.

Conheci tipos que viveram muito - os
que nunca souberam nada da própria vida.


*Nuno Júdice, in Teoria Geral do Sentimento


Dan Brown vs Miguel Sousa Tavares - novos livros.

Inferno marca o regresso de Robert Langdon, o famoso simbologista de Harvard que protagonizou O Código Da VinciAnjos e Demónios e O Símbolo Perdido. Este novo romance é passado em Itália e tem ecos do clássico da literatura A Divina Comédia, de Dante Alighieri, a que vai buscar o título de uma das partes, o Inferno.

Dan Brown confessa que embora tenha estudado o Inferno de Dante, apenas recentemente, enquanto pesquisava em Florença, se deu conta do peso da influência do poeta florentino no mundo moderno: «com este novo romance, quero levar os leitores a mergulharem numa viagem neste mundo misterioso… uma paisagem de códigos, símbolos e muitas passagens secretas».

*sinopse do livro publicado pela Bertrand.


Três histórias que se cruzam
desde uma aldeia deserta até ao topo do poder.

No princípio, há uma madrugada suja: uma noite de álcool de estudantes que acaba num pesadelo que vai perseguir os seus protagonistas durante anos.
Depois, há uma aldeia do interior alentejano que se vai despovoando aos poucos, até restar apenas um avô e um neto. Filipe, o neto, parte para o mundo sem esquecer a sua aldeia e tudo o que lá aprendeu. As circunstâncias do seu trabalho levam-no a tropeçar num caso de corrupção política, que vai da base até ao topo. Ele enreda-se na trama, ao mesmo tempo que esta se confunde com o seu passado esquecido.
Intercaladamente, e através de várias vozes narrativas, seguimos o destino dessa aldeia e em simultâneo o dos protagonistas daquela madrugada suja e daquela intriga política. Até que o final do dia e o raio verde venham pôr em ordem o caos aparente.


Excerto
“E agora, de volta à minha aldeia, onde a luz eléctrica chegara tarde demais para os homens, madrugada dentro, eu lia o Guerra e Paz. Numa aldeia morta, numa noite deserta, seguia, como se estivesse a ver, o esplendor dos salões de baile do Império Russo, a imensidão das estepes gélidas, os gritos de horror dos estropiados pelo fogo dos canhões de Napoleão Bonaparte, e chegava-me mais ao calor da lareira para não sentir a solidão das trincheiras de lama, húmidas, frias, desoladas, onde se abrigava o exército de Kutúsov. Alguém dissera um dia que se podia viver sem tudo, menos água e comida, mas que viver sem livros e sem música não seria o mesmo que viver.”

*sinopse do livro publicado pelo Clube do Autor.

1º Parágrafo: Morder-te o Coração


Tu já não te lembras. Foi há dez anos, neste mesmo quarto, a olhar o Pico, os barcos, o azul-cinza, do mar calmo, a cama por fazer, os livros e as revistas espalhados, tu à janela, a olhar lá para fora e depois, sem pressa, num gesto pausado, a camisa de alças a fugir do teu ombro, uma alça apenas, fininha, o teu sorriso a crescer e a frase

Anda, anda morder-me o coração.


a-ver-livros: sentinela e Jeffrey T. Batchelor

Que guardas nas nuvens, sentinela
que tesouro precioso
ocultas nesses castelos alados
que percorrem os céus
cofres fortes de farrapos

Talvez apenas os sonhos
de quem quer voar

* para saber mais sobre o pintor norte-americano Jeffrey T. Batchelor
siga o link www.jeffreybatchelor.com

terça-feira, 14 de maio de 2013

Cardoso Pires, a história do homem e da obra


José Augusto Neves Cardoso Pires, (São João do Peso, 2 de Outubro de 1925 — Lisboa, 26 de Outubro de 1998) foi um escritor português.

Viveu em São João do Peso, concelho de Vila de Rei, até ir para Lisboa com seus pais (ele oficial da Marinha, ela dona de casa). Entre 1935 e 1944 frequentou o Liceu Camões, onde foi aluno de Rómulo de Carvalho, iniciando, de seguida, uma nunca terminada licenciatura em Matemáticas Superiores, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Em 1945 alista-se na Marinha Mercante, como praticante de piloto sem curso, actividade que abandona compulsivamente, «suspeito de indisciplina e detido em viagem do navio Niassa». Optou então pelo jornalismo, tendo dirigido também as Edições Artísticas Fólio, onde Aquilino Ribeiro publicou O Retrato de Camilo, com litografias de Júlio Pomar e Carlos Botelho, e as traduções de D. Quixote e Novelas Exemplares, ilustradas por João Abel Manta. Na mesma editora, a colecção Teatro de Vanguarda, revelou em Portugal obras de Samuel Beckett, William Faulkner e Maiakovski. Em 1959 estagiou na revista Época, de [[Milão], com vista à publicação de um semanário que a censura impediu. A editora lança então a revista Almanaque, cuja redacção, coordenada por Cardoso Pires, é constituída por Luís Sttau Monteiro, Alexandre O'Neill, Vasco Pulido Valente, Augusto Abelaira e José Cutileiro. Colaborou também no Diário de Lisboa, na Gazeta Musical e de Todas as Artes e na revista Afinidades.

Unanimemente considerado um dos maiores escritores portugueses do século XX, numa galeria onde podemos encontrar nomes como José Saramago ou António Lobo Antunes, a sua carreira literária está marcada pela pela inquietação e pela deambulação. Autor de dezoito livros, publicados entre 1949 e 1997, não se identifica com nenhum grupo, nem se fixa em nenhum género literário, apesar de ser considerado sobretudo como um romancista. A sua relação mais duradoura no campo literário deu-se com o movimento neo-realista português, até ao 25 de Abril de 1974, justificada com a oposição ao regime autoritário português. A inserção da sua obra no neo-realismo é, por essas razões, contraditória. Frequentou também os grupos surrealistas, no início da década de 1940. Foi influenciado pela estética de Hemingway, pela narrativa cinematográfica, o que resulta em discursos curtos e diálogos concisos. O Delfim, de 1968, é geralmente considerado a sua obra-prima, em que o narrador assume uma condição de forasteiro, aparentemente descomprometido com uma realidade anacrónica. A Gafeira, aldeia inexistente, simboliza o Portugal marcelista, com um crime no centro da história. Tendo sido recebido, até 1974, como romance neo-realista, tem despertado um interesse crescente como narrativa pós-modernista. Pode efectivamente ser lido como o primeiro romance português no qual confluem as principais linguagens estéticas norteadoras do futuro pós-modernismo português devido à mistura de géneros, à polifonia, à fragmentação narrativa e à metaficção.

Foi sepultado em 1998 no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. No âmbito do programa que evocou o 10º aniversário da morte de José Cardoso Pires, a Videoteca da Câmara Municipal de Lisboa produziu uma curta-metragem intitulada Fotogramas Soltos das Lisboas de Cardoso Pires, realizada por António Cunha.

Recebeu muitos prémios tanto a título individual como pelos livros editados.

Pelo conjunto da sua obra recebeu:

- Prémio Internacional União Latina, Roma, 1991
- Astrolábio de Ouro do Prémio Internacional Ultimo Novecento, Pisa, 1992
- Prémio Bordalo de Literatura da Casa da Imprensa, 1994
- Prémio Bordalo de Literatura da Casa da Imprensa, 1997
- Prémio Pessoa, 1997
- Grande Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores, 1998

Pelas suas obras recebeu:

- Prémio Camilo Castelo Branco, pelaa Sociedade Portuguesa de Escritores, 1964 (O Hóspede de Job)
- Grande Prémio de Romance e Novela, pela Associação Portuguesa de Escritores, 1982 (Balada da Praia dos Cães)
- Prémio Especial da Associação dos Críticos do Brasil, São Paulo, 1988 (Alexandra Alpha)
- Prémio D. Diniz, da Fundação Casa de Mateus, 1997 (De Profundis, Valsa Lenta)
- Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, 1997 (De Profundis, Valsa Lenta)

É do borogodó: eu, leitora


Interessei-me por livros não sei bem quando.
Minha avó materna me contava histórias do passado, tecia peças lindas com suas agulhas mágicas (tão rápidas, tão rápidas), trançava meus cabelos dourados e prendia no alto da cabeça, o vestido florido em veludo virava manto, eu me transformava em princesa. Vovó brincava comigo conversando, avental, colher de pau, laranjas descascadas no quintal.

Também havia o ritual samba e violão, batuques em caixinhas de fósforos: minha família cantando Vinicius, Benito de Paula, Gonzaga, Novos Baianos, Lamartine Babo, Jackson do Pandeiro. Pareciam-me vizinhos de bairro todos aqueles compositores. Comecei a ler os encartes dos discos de vinil desde sempre. A professora do primeiro ano primário se encantava quando eu escrevia um pequeno texto, eu já vinha alfabetizada do jardim de infância, conversadeira mais do que qualquer outra coisa e ritmada pelos almoços da família. Já no segundo ano primário, a professora era dona de uma pequena livraria pertinho da escola.

Passava uns momentos na livraria antes de ir para casa. A professora admirava meu interesse, permitia que eu lesse todos os livros que quisesse e, junto comigo, revisitava as histórias. Imprescindível descrever que tudo acontecia ao mesmo tempo, inclusive a casa portuguesa da família paterna. Meu avô, um grande pescador e contador de histórias, contava detalhes daquele país que ele havia deixado por força da falta de liberdade (e as bocas dos sete filhos que ele teria que alimentar mesmo quando a polícia lhe levava para longe dos miúdos). As tias ensolaravam minha vida. A mais velha coloria a cozinha com pasteis, ensopados, tortas e pudins. A mais nova ouvia comigo os discos de Caetano e dizia: “um dia tu compreenderás a poesia dele melhor do que eu”. Isso não aconteceria nunca, melhor ser dito aqui, mas continuei fã do tipo incondicional.

E de onde vieram os livros? Acho que das múltiplas palavras que me habitavam: agulhas de tricot, banhos de rio, óculos redondos, casca de laranja, calça boca de sino, balanço, o peixe, cana-de-açúcar, as vozes do “eu sei que vou te amar”, banhos de mangueira, dicionário, camarão, estalo dos dedos, dançar o vira. Todas as linguagens brincavam histórias nos meus ouvidos, criavam imagens para meus olhos e formavam em mim o espírito da eterna curiosidade.
Imagino que tenha sido algo assim meu primeiro interesse por livros.
Nem interessa, mas depois de crescida graduada em Direito, acabei despencando no curso de Filosofia e minha cabeça explodiu. Bum. O tempo me pareceu tão feroz e eu lá vivendo os saltos altos dos escritórios sem me dar conta que mais me importavam as histórias. Por isso resolvi voltar ao começo, escrever histórias e colecionar tantas quantas eu pudesse sem importar a forma.
Coleciono histórias contadas, algumas fragmentadas, histórias de antepassados, invenções de crianças, poesia dos dias e recupero canções. Coleciono histórias para inventar as minhas memórias.

Coloquei tudo no balaio e tudo é do borogodó, só por isso compartilho (borogodó só é borogodó por fazer valer o compartilhamento). Para quem não sabe, borogodó é atração irresistível, algo mais do que charme e beleza, um quê de simpatia instantânea, aquilo que não tem causa fisiológica nem definição certa, mas que provoca interesse imediato como num clique, todos boquiabertos.
O que é do borogodó eu compartilho na sala virtual do “Toda Hora Tem História”, uma extensão da minha sala de casa, onde os livros espalhados se misturam com discos, filmes, cheiro de café, acordes do violão, risadas de crianças e brinquedos pequeninos colecionáveis (como os marcadores de livros e as bonecas de pano). Histórias.
Afinal era a menina, picada pelo bicho da eterna curiosidade, quem desde muito cedo me habitava, quem desde muito cedo aprendeu a ler o livro do quotidiano.

1º Parágrafo: Amor em Segunda Mão


Na box ao lado, mesmo no muro de cimento estragado, junto ao bocal da água, o gato cinzento, preto e amarelo, sem nome, dorme com o sossego de um raio de sol. Um único raio de sol que entra pela janela de latão e que nos lembra que é do céu que vêm as cores.


Meet the Writers: John Grisham

Meet the Writers é um programa conduzido por Steve Bertrand e que entrevista diversos autores. Patrocinado pelo site Barnes&Nobleaqui está uma boa forma de vender livros e dar a conhecer os escritores.

Espaço agora para conhecer John Grisham. Stay tuned! 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Poema à noitinha... Luís Filipe Castro Mendes

Os Amantes Obscuros

Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.

Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.

Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.

*Luís Filipe Castro Mendes, in Os Amantes Obscuros


Penélope Martins chega com 'É do borogodó'

A Primavera está em pleno e as pontes iluminam-se por entre os voos das aves. Ave rara, Penélope Martins 'voa' do Brasil para colaborar com o Clube de Leitores aqui em Portugal, fazendo uma ponte de letras muitas que dançam. 

Dela - que a tenho por amiga e sou um verdadeiro calhau quanto toca a falar dos amigos - vos direi apenas que tem o coração no sítio certo, a palavra fluida, um sorriso que não se esquece e ainda uma costela portuguesa que vibra com ginginha e travesseiros.

Deixo-vos dicas / links para a espreitarem. Que dela mesma ela mesma falará amanhã, numa apresentação deliciosa (claro que eu já li!) a postar antes de jantar.

azeiteealecrim.wordpress.com


todahoratemhistoria.wordpress.com

A sua rubrica - às terças e quintas - vai chamar-se 'É do borogodó'.
Não se preocupem. Ela explica o que significa.
Vai chegando, Pené!


1º Parágrafo: Contracorpo


Há momentos no dia em que não pensa nele. Está escudada por tarefas minúsculas que não são invejáveis. Ocupam espaço. Mantém o cérebro ligado a outra realidade. Pessoas que falam, problemas para resolver, papéis e reuniões. As reuniões não são boas, consegue distrair-se com facilidade e, de repente, há uma SMS que a alerta para a existência dele. Ele, lá fora no mundo. De que tem medo? De o perder. Simplesmente isso, perdê-lo. Levou muito tempo a conseguir verbalizar esta realidade: dói-lhe a falta de paz interior de o ver perdido, alheio a ela. Não lhe custa deixá-lo ir percorrer outros caminhos. Custa-lhe que ele não volte. Precisa tanto que volte. Precisa tanto que volte – quer acreditar – ele precisa de se afastar. É um processo.


a-ver-livros: verbo sentar e Kate Gabrielle

Senta-te aqui, anda
tenho um segredo para esconder 
entre os teus lábios
e os meus

Senta-te aqui, assim
ocultas o poema

que a tua respiração
me murmura

Senta-te aqui, amor
a meu lado
e fica

* para conhecer mais sobre a ilustradora Kate Gabrielle
siga o link flapperdoodle.blogspot.pt


domingo, 12 de maio de 2013

EM carduME




Às vezes sente-se um peixe, um palmo de peixe, no meio de um cardume.

Ninguém a consegue perceber no meio de um cardume, centenas de peixes, peixinhos, talvez milhares, iguais, quase iguais, indistinguíveis.

Todos de um azul prata, a levitar num azul aquático.

O mundo azul e líquido, o seu corpo sem peso, como na lua, não pés, não mãos, barbatanas, não nariz, guelras, não orelhas, nada.

O mundo sem som.
A sala, a cozinha, os corredores, as ruas, os mercados, a fábrica, o café, o escritório, tudo sem som.
Sem som.
Um rumor como se um búzio encostado ao ouvido, não som.
Bocas fechadas debaixo de água, bocas abertas cheias de água, sem som.
Um rumor de motores, de pneus no asfalto, de saltos altos na calçada, de talheres em pratos, do tinir de vidro, de plástico, de folhas de papel, de rodinhas de cadeiras no linóleo, as teclas de um computador, o gato na caixa de areia, o zumbido afogado do frigorífico, o barulho de sexo dos vizinhos, o elevador, o tiquetaque do despertador sem ponteiros, o barulho indistinto entre choro e o riso de uma criança ou apenas o vento sobre a linha de água.
Ela peixe, do outro lado da linha.
A ignorar o isco no fim da linha do pescador.
Há sempre um pescador.
Um gato a salivar do lado de lá do vidro.
Os seus gestos em sincronia perfeita com o cardume, como o trânsito de Xangai, de Bombaim.
Nunca foi à China, nunca foi à Índia, sabe inutilmente que são cidades intransitáveis.
Os seus gestos em linha no cardume.
Os pensamentos desalinhados.
Porque nunca vais saber o que estou a pensar!
O que está a pensar?
Porque haveria de ser a escolhida se nunca foi escolhida para nada?
Se nunca a tiraram para dançar.
Dançar sozinha?
Nem pensar, que vergonha, que grande vergonha!
Não saberia onde pôr os pés, as mãos, os olhos.
E no entanto, imagina-se, sonha-se, foge do mundo, a dançar.
Porque nunca vais saber o que estou a pensar!
Deitada na cama, os olhos no tecto, consegue ver-se de pés descalços no tapete do quarto, às vezes de camisa de noite, às vezes de pijama, para dançar foxtrot prefere pijama, porque o espaço diminuto, os movimentos que embalam o corpo curtos e leves, breves, que os sonhos exigem brevidade e, nos movimentos, evita os móveis, magoar o corpo, fazer barulho, cair no chão. Sabe que do chão não se passa, mas também sabe que poucas coisas magoam mais do que o chão.
Até nos sonhos é contida e cautelosa.
Fazer da queda um passo de dança?
Não percebe bem a pergunta, não quer correr o risco de cair, nem em sonhos, porque mesmo em sonhos nenhuma mão estendida para a levantar do chão, porque mesmo em sonhos prefere a solidão.
A solidão magoa menos.
Na solidão não há quem incomode.
Assim que, quase gosta da vida que leva.
Gosta do sofá, de veludo amarelo-torrado, do gato, também amarelo, de quando dizem que tem um gosto muito actual quando falam do tapete verde onde plantou o sofá. Apenas comprou o mais barato, igual ao tapete verde que tem no quarto, um tapete quase anedota, às franjinhas verdes, como se de relva se tratasse, como se ela, não no quarto, não na sala, no meio de uma floresta, obviamente encantada, que nunca sonha sonhos maus.
Assim a vida, quatro paredes, como se um aquário.
E porque a vida, há sempre um pescador do outro lado da linha.
Pescadores: os caçadores que laboram com mais afinco, porque burilam no limite do tédio.
O tédio que tudo mata mas não mata pescadores.
Os pescadores imperturbáveis.
Os peixes perturbáveis.
Dias de tentação, de engulho, de fraqueza, de apetite, de vontade, de curiosidade, de morder o anzol, a maça, o gomo da tangerina, os lábios de uma pessoa, pode ser uma pessoa estranha, pode não ser amor.
Parece fácil.
Quase apetece. Confessa que apetece.
O anzol praticamente imóvel, brilhante, hipnótico.
Porque nunca vais saber o que estou a pensar!
A que sabe um anzol?
Não sabe.
Mas há momentos, fracções de segundos, serão momentos?, em que tem vontade, quer saber.

Raquel Serejo Martins