sábado, 20 de setembro de 2014

Foto frase do dia: Mia Couto


Quanto tempo demoram a ler estes romances?

Este estudo é essencial e surpreendente... Se Antígona de Sófocles se lê num ápice, imaginem que livro / história se encontra do outro lado.

Sigam o link:

http://shortlist.com/entertainment/books/how-long-it-takes-to-read-the-worlds-most-popular-books


Calvino em São Paulo, dia 7

Italo Calvino, numa exposição de fotografia no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). "As Cidades Invisíveis" foi o nome da exposição e é também o título de um dos seus livros mais famosos.

foto: Rodrigo Ferrão

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Ary: A mascarilha

A MASCARILHA

O sarcasmo veludo dos teus dedos
toca-me nas pálpebras.
Não há nenhum sorriso borboleta tonta que não morra
voando em torno do teu silêncio
nenhum olhar lantejoula que não brilhe
bordado no teu rosto
nenhum riso vidrilho que não fira
cromado nos teus dentes.

Amo-te meu amor aceso no lustre
da sala maior do nosso encontro
trémulo da música que ninguém ouve
máscara palavra que ninguém murmura
mármore convite incógnito que ninguém segreda.
Amo-te meu amor alcatifa persa
colorido mosaico dos minutos que invento
espelho de Veneza bailarina russa
de cabelos negros e de olhos de vento.
Amo-te meu amor decote de imperatriz
ave do paraíso anel de veneno
orquídea perfídia bordada a matiz
no rosto mistério que te não desvendo.

ARY DOS SANTOS


Prendas para amantes de livros... qual a tua preferida?

24 presentes insanamente inteligentes para amantes de livros


Um artigo para consultar com muita atenção. Eu selecciono já o meu favorito: Vela com aroma de vidro.

Calvino em São Paulo: dia 6

Italo Calvino, numa exposição de fotografia no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). "As Cidades Invisíveis" foi o nome da exposição e é também o título de um dos seus livros mais famosos.

foto: Rodrigo Ferrão

Primeiro Parágrafo: «O Homem que Perseguia o Tempo»



Já terão visto gralhas-calvas.
Não se deixem desiludir por uma
aparente vulgaridade.
As gralhas-calvas estão envoltas
num manto de mistério celestial e glorioso.
Não são o que parecem.

Mark Cocker, Crow Country

P.V.P.: 18,50 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 408
Editora: Marcador

Ouvi dizer, àqueles que sobre isso nada sabem, que nos momentos finais da sua existência uma pessoa revê toda a sua vida. Se assim fosse, um cínico poderia presumir que os últimos momentos de William Bellman foram passados a revisitar a infindável lista de cálculos, contratos e negócios que fizeram parte da sua existência. Na verdade, quando se aproximou do limiar do outro lado - limiar para onde, mais cedo ou mais tarde, todos nos encaminharemos -, os seus pensamentos desembocaram nas pessoas que já haviam realizado a travessia para esse território desconhecido: a mulher, três filhos, o tio, o primo e alguns amigos de infância. Depois de recordar os entes queridos que perdera, estando ainda a alguns instantes da morte, teve tempo para um último exercício de memória. O que desenterrou, algo que jazera cerca de quarenta anos na arqueologia da sua mente, foi uma gralha-calva.

*in O Homem que Perseguia o Tempo, Diane Setterfield

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - o Flâneur das Sensações


Meu querido José,

Peço-lhe mil e imensas desculpas por este longo período de silêncio durante os tempos de estio interior que foram os meses de Julho e Agosto.
Viajei, dancei, li e conheci. Só isto lhe posso dizer por agora, nesta carta escrita a traços largos de um esboço impressionista.
Não me posso demorar, pois tenho um jantar daqui a momentos e não gosto de chegar atrasado, pois, sabe bem que para mim a pontualidade é o estigma de um carácter.
Deixo-lhe um breve devaneio do impublicável Cadernos de Nicosia.
Dê notícias! Apareça para conversarmos.
Aos leitores, um abraço largo e estético.
Muito seu.

Gonçalo V. de S.


"Devaneios"

Ao som da silenciosa e estridente lua de Agosto, acredito que todos os motivos são válidos. Era uma tarde de Sol, como tantas outras. A cidade brilhava implacável, linda, cinzenta e líquida. A rapariga de cabelos loiros perseguia-me a cada noite, a cada olhar, em cada pensamento.
Havia visto tal figura numa manhã de Abril, florida e fresca, jovem e pululante de perfumes e odores.
Nunca soube o nome dela. Tentei encontrá-la por todos os cantos e ruas e lojas da cidade, mas sempre em vão. Só o acaso me levara a encontrá-la naquela manhã de Abril que foi uma manhã que jamais esquecerei. Ela era bela e imponente! Uma deusa grega, marmórea, com um sorriso brando adormecido nuns lábios de cetim vermelho. O seu olhar, energicamente lânguido, penetrava mesmo até nos recantos mais íntimos da alma dos grandes homens. Amei-a desde essa manhã, desde aquele olhar primeiro e fundacional. Estava sentado numa mesa à janela da pâtisserie do costume. Ela passou a correr, com os longos e loiros cabelos de trigo soltos ao vento que era uma carícia na sua face profanamente imaculada. Segui-a com o olhar até ao final da rua, sabendo que uma mulher daquelas se segue até ao fim da vida.
Fiz logo um pequeno esboço de tal bela mulher, num dos guardanapos do estabelecimento. Guardei-o no bolso interior do casaco como quem esconde um tesouro num cofre. No final dessa manhã, saí da pâtisserie e continuei a minha vida, inevitavelmente insignificante. O chapéu e a gabardina, o guarda-chuva e a pasta a serem os companheiros de sempre.
Ela era agora toda a minha realidade líquida e absoluta. Como Wagner em noites de insónia e de Deus.
Efraim, nunca mais voltei a ver cabelos tão loiros e tão maravilhosos. Lábios sedosos e sumarentos nem nos romances de oitocentos era capaz de os encontrar, quanto mais no palavreado Modernista.

Nessa noite, de Abril, a lua era um bronze alto e o silêncio era olímpico. Não sei porque é que me lembrei disto agora, Efraim, mas aquela mulher dava certezas para o resto da vida, só de olhá-la. O tempo passou. Dias, meses, anos. Os cabelos cansados e os olhos meio gastos. Hoje apercebo-me que tal criatura foi fruto da minha imaginação. 

Ary: A faca

A FACA

A palavra será faca
o sentido será gume
a imagem será chama
mas a matéria é o lume.
Lume dos nervos riscados
pelo fósforo do medo
lume dos dentes cerrados
pela goma de um segredo.
Lume das faces de cera
lume dos dedos de cal
lume golpe lume pedra
lume silêncio metal.
Lume que se acende a frio
e nos devora por dentro
lume agulha lume fio
da faca do pensamento.
Uma navalha que rasga
o ventre da solidão
vingança de quem se gasta
queimando frases em vão.
Lume lembrança das coisas
que nos arderam na voz
cinza viva que nos corta
e nos separa de nós.

ARY DOS SANTOS


Como conheci Gonçalo - parte I

            Serão todos os motivos válidos para um texto?
            Hoje, ainda sem ter recebido algum texto ou carta de Gonçalo, conto-vos o episódio que deu início à nossa amizade.
            Em Coimbra, numa daquelas tardes frescas e preciosas, lívidas de verde e de perfumes que baloiçam pelo Jardim Botânico, encontrava-me sentado num dos bancos de madeira da alameda das tílias, alameda essa que parece um recanto de jardim inglês adormecido em terras de sol, luz, movimento e mar. Era uma tarde de Setembro de 2010, e aquela pequena avenida de dimensões primaveris e sem fim era o local ideal para momentos de solidão e de leitura.
            À época andava a ler A correspondência de Fradique Mendes, narrativa que me deslumbrou desde as primeiras palavras. Fiquei, como Eça, rendido perante o poeta de “As Lapidárias”, versos de uma beleza total, fazendo lembrar os toques rubros e românticos de Baudelaire. Enquanto me perdia pelas viagens do Touriste Fradique Mendes, imaginava-me seu companheiro de viagem, percorrendo as terras da Síria onde em cada esquina, em cada gruta surgem, a cada momento, novas religiões, ou então a penetrar nos Himalaias pelo Nepal ou desaguando no Nilo com o panamá na cabeça e uma sede de soda. Por momentos, eu era o fiel companheiro de viagem de Fradique, e, deste modo, vivia deliciosos momentos de uma felicidade estética e literária, disfarçando assim o humano, tantas vezes inconveniente. Sempre acreditei que as personagens literárias são mais transparentes que os humanos. Mas nessa altura, eu era um jovem na sua primeira fase romântica e revolucionária, sempre embebido do Ideal e do Absoluto.
            A minha concentração nas viagens com Fradique era de tal ordem – perdoem-me a linguagem simples e coloquial, mas sou um simples estudante, não tenho a desenvoltura literária e o gosto exqui de Eça, de Fradique ou de Gonçalo – que não me apercebi que um sujeito se havia sentado a meu lado, naquele banco de jardim do Botânico. (Ainda hoje me questiono: de todos os bancos de jardim do mundo, por quê o meu?)
            Interessante, esse sujeito, não é? Diz-me a pessoa que se sentou a meu lado.
            Quando olhei para este, notei que estava perante um homem dos seus sessenta e muitos anos, usava óculos e tinha um belo cabelo branco brilhante, farto e saudável. Nas mãos tinha um magnífico chapéu Porkpie castanho claro com uma pequena pena de pavão. Vestia-se de forma elegante, casaco, colete e camisa de um chic de romance.

            Deveras! Respondi-lhe eu de forma mediterranicamente apaixonada. Sempre me julguei uma pessoa de trato fácil e acessível, algo que se refletiu na minha conversa com este senhor. Sabe, dizia-me ele, o meu bisavô foi companheiro de Fradique Mendes. (Continua).

Coaching de Wilde e Allan Percy

A fórmula de Allan Percy é fácil: pegar em citações de Oscar Wilde e depois fazer uma observação acerca dela. Allan é perito em coaching e um dos mais respeitados autores de desenvolvimento pessoal.

Publicado neste ano pela Marcador, fiquem com o ponto 81 deste livro.

81

«A vida não é complicada, somos nós os complicados. A vida é simples, e o mais simples é sempre o mais correcto.»

Pascal aconselhava-nos que não saíssemos do nosso quarto se o que pretendíamos nesta vida era sermos felizes.
O contacto com o exterior implica aprendizagem e, com frequência, prazeres, mas também desencontros e incompreensões. O problema é que, afinal, saímos sempre à rua para ver o que ela nos reserva. E na rua as coisas não são fáceis, por mais que existam semáforos, porque há condutores que não o respeitam. Acontecem-nos sempre imprevistos que põem à prova os nossos nervos e a nossa capacidade de agir com simplicidade, sem complicar mais as coisas,
Os problemas mais complexos costumam ter soluções simples, porque, como lembra Wilde, a vida é muito mais simples do que imaginamos.
A nossa tendência para tornar difícil o fácil leva-nos a complicar tudo, já que uma das chaves da felicidade é deixar de fazer nós - fruto de processos mentais subjectivos - nos fios da realidade.

P.V.P.: 15,00 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 144
Editora: Marcador

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Ary: Pequenos anúncios

OS PEQUENOS ANÚNCIOS
( outra carta circular )

Entre os animais falantes
o poeta é o que mais
diz coisas interessantes
aos colegas racionais.

Diz-lhes que a lua é de gesso
que o Norte pode ser Sul
que o avanço é retrocesso
e que o céu não é azul.

Diz-lhes que o espaço vazio
está todo por alugar
e que há poemas vagos
de inspiração limitada
em prédios de antologia
bem situados nas letras
com duas assoalhadas
vistas largas logradoiro
e porteira analfabeta
que serve de vazadoiro
é bem falante e discreta.

Diz-lhes ainda que sabe
que por motivos urgentes
de autodemolição
há boas peças de pano
de padrão surrealista
a vender ao desbarato
no armazém dum artista
que as salda por desengano
a preços fim de estação.

Informa também haver
senhora de meia idade
com alguns adjetivos
que deseja conhecer
para fins recto-activos
editor de posição
que não se meta em política
seja honrado quarentão
e tenha amigos na crítica.

Muito em segredo murmura
que uma donzela neurótica

de raiz alentejana
trabalha de literatura
e à luz do candeeiro
borda poemas eróticos
para consumo na cama.

Mais promete por um tema
já usado e descosido
três metros de bom poema
que sirvam para vestir
a pobreza envergonhada
dum menos favorecido
na sorte de produzir
mercadoria rimada.

Em palavras repassadas
de condoída tristeza
lança o apoio patético
duma viúva burguesa
que pede soro poético
para um filhinho que tem
trinta e seis anos de idade
e que se morre não sobe
ao céu da celebridade.

A fim de prestar serviço
às esquerdas e direitas
denuncia compromisso
duma família insuspeita
que prima pelo respeito
porte limpeza e decência
e que aluga ideias feitas
para curta permanência.

Assim relata o poeta
entre a oferta e a procura
as condições da hipoteca
da moderna literatura`.
Assim disfarça a miséria
fingindo que tem fartura
__ que a poesia é coisa séria
e se não for deletéria
poderá ser mordedura
que lhe inocule no sangue
não só veneno de cobra
mas três cruzes de lirismo
que virão minar-lhe a obra
e tolher de reumatismo
a pena com que depena
os patos do modernismo
que podem valer-lhe a pena.

Ary dos Santos


Calvino em São Paulo: dia 5

Italo Calvino, numa exposição de fotografia no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). "As Cidades Invisíveis" foi o nome da exposição e é também o título de um dos seus livros mais famosos.

foto: Rodrigo Ferrão

a-ver-livros: tempestade

Não finjas que não vês
a minha sombra
nas curvas dos teus dias
Há passos desenhados
nos aurículos 
e ventrículos
que emprestaste 
ao caminho
e ecos do encontro
de corpos 
e mentes
no voo rasante das gaivotas
- tempestade em nós


Ana Almeida

* para saber mais sobre o ilustrador britânico Freddy Boo
siga o link www.freddyboo.com

«O homem que perseguia o tempo» - sinopse

P.V.P.: 18,50 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 408
Editora: Marcador


Sinopse: Num momento de rivalidade infantil, William deixa-se levar pelo entusiasmo e não hesita em apontar a fisga a uma gralha-calva poisada num ramo, que acaba por matá-la. Um ato que, apesar de cruel, não teve qualquer significado e depressa foi esquecido. Mas as gralhas-calvas não esquecem...

Anos depois, já na idade adulta, com mulher e filhos, quando um desconhecido entra misteriosamente na vida de William, a sua sorte começa a mudar - e surgem as consequências terríveis e imprevistas daquele incididente do passado. Numa tentativa desesperada de salvar o único bem precioso que lhe resta, William celebra um acordo deveras estranho, com um sócio ainda mais estranho. Juntos, fundam um negócio inquestionavelmente macabro.


O Homem Que Perseguia o Tempo: um único momento pode marcar a nossa vida para sempre.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Ary: O revólver

O REVÓLVER

Quando nos disparamos do que somos
quando nos encantamos e seguimos
o contido estampido do silêncio
que nos rebenta dentro dos ouvidos
a corola pistola o suspiro do tiro
já não nos basta a bala da palavra
o gatilho dos dedos
o alvo do sentido.

Trincamos uma pétala de cor
e matamos no cheiro de uma flor
cinco sentidos unidos.

ARY DOS SANTOS


É do borogodó: Desenredo, de Guimarães Rosa

"– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Como elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas. Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano. Até que -deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro… Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que a ferira, leviano modo. Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudo personagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude. Ela -longe- sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções. Enquanto, ora, as coisas amaduravam.

Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso. Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou -ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse. Mas. Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios. Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a mulher, a desconhecido destino.

Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se. Mais. No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade -idéia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conte inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma. Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como fritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente. O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado -plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa? Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar -e qualquer causa se irrefuta. Pois produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos. Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.

Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
E pôs-se a fábula em ata."

Guimarães Rosa
 
 * Mas tem mais, Dorival Caymmi e Paulo César Pinheiro fizeram uma canção inspirada no conto. Aqui o têm:


Penélope Martins
 

Calvino em São Paulo: dia 4

Italo Calvino, numa exposição de fotografia no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). "As Cidades Invisíveis" foi o nome da exposição e é também o título de um dos seus livros mais famosos.

foto: Rodrigo Ferrão

Paredes que me falam...

Esta parede falou-me em São Paulo, Brasil. 
Sabem de onde vem a expressão? De uma música dos Titãs...

foto: Rodrigo Ferrão


Flores
Titãs


Olhei até ficar cansado
De ver os meus olhos no espelho
Chorei por ter despedaçado
As flores que estão no canteiro
Os punhos e os pulsos cortados
E o resto do meu corpo inteiro
Há flores cobrindo o telhado
E embaixo do meu travesseiro
Há flores por todos os lados
Há flores em tudo que eu vejo

A dor vai curar essas lástimas
O soro tem gosto de lágrimas
As flores têm cheiro de morte
A dor vai fechar esses cortes
Flores
Flores
As flores de plástico não morrem

Olhei até ficar cansado
De ver os meus olhos no espelho
Chorei por ter despedaçado
As flores que estão no canteiro
Os punhos e os pulsos cortados
E o resto do meu corpo inteiro
Há flores cobrindo o telhado
E embaixo do meu travesseiro
Há flores por todos os lados
Há flores em tudo que eu vejo

A dor vai curar essas lástimas
O soro tem gosto de lágrimas
As flores têm cheiro de morte
A dor vai fechar esses cortes
Flores
Flores
As flores de plástico não morrem
Flores
Flores
As flores de plástico não morrem

Oscar Wilde no livro de Allan Percy

Citações:

«Quando as pessoas concordam comigo sinto que devo estar enganado.» | Oscar Wilde
«O mundo é um teatro, mas tem um elenco deplorável.» | Oscar Wilde
«É bastante difícil não sermos injustos com aqueles que amamos.» | Oscar Wilde
«Seja você mesmo, os restantes papéis já estão escolhidos.» | Oscar Wilde
«As riquezas vulgares podem roubar-se, mas nunca as riquezas de verdade. Na sua alma há coisas infinitamente preciosas que jamais alguém lhe poderá arrebatar.» | Oscar Wilde
«Não quero ir para o céu, não conheço lá ninguém.» | Oscar Wilde
«Crie-se a si mesmo. Seja o seu próprio poema.» | Oscar Wilde

P.V.P.: 15,00 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 144
Editora: Marcador

Oscar Wilde para Inquietos

UM MANUAL DE INSTRUÇÕES PARA ULTRAPASSAR 

OS PROBLEMAS QUOTIDIANOS

Admirado por muitos no início da sua carreira, Oscar Wilde chegou ao fim da vida marginalizado pela sociedade. As suas máximas, entretanto, resistiram à prova do tempo e hoje são um guia para os que buscam orientação nos mais variados aspetos do dia a dia. 

Neste livro encontra 99 máximas que tratam de assuntos variados, como o amor, o dinheiro, a amizade, entre outros, com uma linguagem clara que põe ao alcance de todos até mesmo a ideia mais refinada. Cada capítulo traz uma frase marcante do escritor que Allan Percy comenta e desenvolve. O leitor vai passar a ver o quotidiano sob um novo prisma, irreverente, crítico e, ao mesmo tempo, sofisticado e cheio de esperança.

OSCAR WILDE

«Escritor, poeta, dramaturgo, profundamente crítico com o seu tempo e a sua sociedade, hedonista e sensível perante a beleza tanto exterior como interior. Esse foi Oscar Wilde, um homem majestoso como um pavão e condenado ao inferno por viver numa época em que a sua verdade se devia esconder, Um rebelde dedicado aos sentidos que entoava uma canção de sonhos e de anti-hipocrisia, de amor à arte pela própria arte, e de exultante liberdade...

Durante anos, o seu nome levou o estigma que lhe impuseram os seus, a mancha que a sociedade vitoriana lançou sobre ele. Mas hoje em dia as suas obras são tesouros da literatura e prostramo-nos diante do artista e do crítico social que foi.

Um homem que nos ensinou como a beleza, tanto interior como exterior, foi concebida para ser desfrutada. Que negar a paixão e o gozo é como arrancar as asas, e que se deve viver os sonhos»

*in Oscar Wilde para inquietos, Marcador

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Ary: O orgulho

O ORGULHO

Por vezes no poema
desperdiçamos tudo
e fica apenas

uma terrível faca de silêncio
um muro
uma sebe de sede que defende
a fome de ódio puro

Ary dos Santos


 

Que livros punhas na sanduíche?

Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Eu hoje fazia uma sandes com:

- «O marinheiro que perdeu as graças do mar», de Yukio Mishima
- «Capitães da Areia», de Jorge Amado
- «O retrato de Dorian Gray», de Oscar Wilde
- «A morte de Ivan Ilitch», de Lev Tolstoi
- «A metamorfose», de Kafka

Calvino em São Paulo: dia 3

Italo Calvino, numa exposição de fotografia no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). "As Cidades Invisíveis" foi o nome da exposição e é também o título de um dos seus livros mais famosos.

foto: Rodrigo Ferrão

Diane Setterfield e o seu homem que persegue o tempo

Diane Setterfield é uma autora britânica que nasceu em Englefield, em 1964. E passou grande parte da infância na localidade vizinha de Theale. Depois de frequentar a escola nesta localidade, estudou literatura francesa na Universidade de Bristol. Lecionou inglês no Institut Universitaire de Tecnhologie e na École Superior de Chimie em França. Tendo posteriormente lecionado francês na Universidade central de Lancashire no Reino Unido. Abandonou o meio académico em finais da década de 90 para se dedicar à escrita, vive em Oxford. Quando não está a escrever, lê muito e quando não está a ler, normalmente está a falar ou a refletir sobre a leitura. A autora é, nas suas palavras, «em primeiro lugar, leitora, e em segundo, escritora».

P.V.P.: 18,50 € 
Data de Edição: 2014
Nº de Páginas: 408
Editora: Marcador

O seu romance mais vendido, O Décimo Terceiro Conto (Marcador Editora), foi publicado em 38 países e vendeu mais de três milhões de exemplares, chegando ao primeiro lugar da lista de ficção do The New York Times. A obra tem sido imensamente apreciada, tanto por se tratar de «uma carta de amor à leitura», como pelo mistério e pelo estilo narrativo que a envolvem.

O segundo livro da autora é O Homem que Perseguia o Tempo, um romance que combina temas como a busca do tempo perdido, a memória e a perda, e que foi publicado com extraordinário sucesso no Outono de 2013.

domingo, 14 de setembro de 2014

Poema à noitinha... Leminski

Três Metades

Meio dia,
um dia e meio, 
meio dia, meio noite, 
metade deste poema 
não sai na fotografia, 
metade, metade foi-se. 

Mas eis que a terça metade, 
aquela que é menos dose 
de matemática verdade 
do que soco, tiro, ou coice, 
vai e vem como coisa 
de ou, de nem, ou de quase. 

Como se a gente tivesse 
metades que não combinam, 
três partes, destempestades, 
três vezes ou vezes três, 
como se quase, existindo, 
só nos faltasse o talvez.

*Paulo Leminski, in Toda Poesia, Companhia das Letras


A arte de Erik Johansson


Conheça a página de Erik Johansson: http://erikjohanssonphoto.com/

Apanhei-te a ler... dia 19

Alfred Hitchcock.

Encontrado no Pinterest.

"tenho forças para brincar ao mundo"

xxxvii. (sacrário)

diante de uma caixa da mais banal madeira
(ou a imitação da contrafacção do mesmo)
está a mais consumida bolacha do mundo

é bom ser eternamente miúdo
e acreditar que naquela reles bolacha
tenho forças para brincar ao mundo

Pedro Sena-Lino



 Henri Cartier Bresson, 1933, Sevilha