sábado, 16 de março de 2013

Cronicando pela Ásia... Krabi

Krabi,
22 de Abril 2009

As praias estão a chegar, as praias estão a chegar, as praias estão a chegar!! O meu coração galopa!

Nunca vi uma praia do paraíso, de côcos e palmeiras, águas transparentes cheias de peixes coloridos e de todos os feitios...

Antes, porém, uma paragem; não foi naquele dia que cheguei à calmaria do mar. Fiz primeiro vários quilómetros até Krabi. O motorista descarregou-me, sem grande paciência, no primeiro local que lhe deu. E ali fiquei. Não deu para pensar muito. Naquela rua parei, naquela rua dormi.

Aterrei num sítio que passava a música "love hurts", um sucesso musical profundo, dos cabeludos Nazareth.

Fiquei a dormir numa tatoo house. Há dezenas de sítios onde se pode fazer uma tatuagem na Tailândia. São muito interessantes, porque são tatuadas de forma tradicional: com um pauzinho que tem uma ponta espigada. Feito à mão, ponto por ponto.

O dia esteve cinzento. Choveu durante uns minutos e a água era morna. Sabe mesmo bem apanhar esta chuva, depois de uma longa viagem.

Vencido pelo sono, cedi. No dia seguinte estaria nas ilhas Phi-Phi...


Rodrigo Ferrão

Poema à noitinha... Vinicius - Vida e Poesia

Vida e poesia

A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.

Na rua ignorada anjos brincavam de roda...
- Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.
Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores

Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinacão estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.

*Vinicius de Moraes


Livros que deram filme: Guia para um final feliz, Mathew Quick

Se gostei do filme? Sim. Se acho que Jennifer Lawrence mereceu o Oscar de melhor actriz principal? Não. E por clara comparação com  Emmanuelle Riva - até hoje não consigo explicar como é que a francesa não ganhou pelo seu papel em Amour.

Guia para um final feliz é baseado no romance de Mathew Quick, editado em Portugal pela Editorial Presença. A adaptação ao cinema foi feita pelo realizador David O. Russell e conta com Bradley Cooper, Jennifer Lawrence e Robert De Niro nos principais papéis. 

(clique na imagem para ver o trailer)

«Pat Peoples está de regresso ao mundo da normalidade da vida familiar em casa de seus pais após ter permanecido numa instituição psiquiátrica devido a um traumatismo grave. Da memória deste fervoroso adepto dos Eagles de Philadelphia desapareceu uma participação do clube no Super Bowl e a demolição do antigo estádio. Ninguém, lá em casa, lhe fala de Nikki, a sua mulher, e até o seu novo terapeuta parece incitá-lo ao adultério. Tudo assume um aspeto cada vez mais estranho. Como a pouco e pouco se vai revelando, anos da sua vida tinham-se pura e simplesmente apagado. Apesar disso, Pat não se deixa desviar daquela que acredita ser a missão de autoaperfeiçoamento. Guia para Um Final Feliz é uma narrativa vibrante e intensa que nos oferece uma visão refrescante sobre sentimentos de perda, depressão e amor. É também um magnífico romance de estreia que foi adaptado ao cinema e que chega a Portugal a 10 de Janeiro 2013, na mesma data em que estreia o filme.»

Manifestamente Manuel António Pina. «Cheguei demasiado tarde e já todos se tinham ido embora»

Foi assim, no último Bairro dos Livros, Porto.

Foto: Francisco Chico da Emilinha Bairro dos Livros

Cheguei demasiado tarde e já todos se tinham ido embora

Cheguei demasiado tarde
e já todos se tinham ido embora
restavam paeis velhos, vidas mortas,
identidade, sujidade, eternidade.

Comeram o meu corpo e
beberam o meu sangue; e, pelo caminho, a minha biblioteca;
e escreveram a minha Obra Completa;
sobro, desapossado, eu.

Resta-me ver televisão,
votar, passear o cão
(a cidadania!). Prosa também podia,
e lentidão, mas algo (talvez o coração) desacertaria.

Pôr-me aos tiros na cara como Chamfort?
Dar em aforista ou ainda pior?
Mudar de cidade? Desabitar-me?
Posmodernizar-me? Experienciar-me?

Com que palavras e sem que palavras?
Os substantivos rareiam, os verbos vagueiam
por salões vazios e incendiados
entregando-se a guionistas e aparentados.

Cheira excessivamente a morte por aqui
como no fim de uma batalha cansada
de feridas antigas, e eu sobrevivi
do lado errado e pela razão errada.

“Que dia? Que olhar?”
(Beckett, “Dias felizes”)
Que feridas? Que estanda-
te? Que alheias cicatrizes?

Estou diante de uma porta (de uma forma)
com o – como dizer? – coração
(um sítio sem lugar, uma situação)
cheio de palavras últimas e discórdia.

*Manuel António Pina

sexta-feira, 15 de março de 2013

a-ver-outros-livros no Metro: Ferreira de Castro

Talvez esquecido. Quantos desse lado recordam Ferreira de Castro? Quem foi? O que escreveu? O cartoonista António não o esqueceu e inclui-o no rol de figuras das letras que retratou nas paredes do Metro do Aeroporto, em Lisboa.

E bem que fez. Afinal, o escritor sempre teve um pé cá, outro do outro lado do oceano, que o Brasil - para onde emigrou aos 12 anos - e a zona do aeroporto não lhe seria estranha. Mas confesso desde já que esta é um 'viagem' que eu própria faço às escuras. Apesar de ter tido livros dele à mão de semear, nunca os li. Perdi-os de vista.


José Maria Ferreira de Castro (Oliveira de Azeméis, 24 maio 1898 - Porto, 29 junho 1974) foi emigrante - durante quatro anos viveu em plena selva amazónica, junto à margem do rio Madeira, e foi embarcadiço no Amazonas. Foi homem de jornalismo - trabalhou em "O Século" e chegou a ser director de "O Diabo". Foi acima de tudo, escritor - e o seu livro mais famoso é mesmo "A Selva".


"A Selva" conta a história de Alberto, um jovem monárquico português refugiado no Brasil que vai trabalhar para a selva amazónica durante a febre do ouro negro. Ali, rodeado de perigos míticos, molda o seu carácter e conhece Dona Yá-Yá com quem mais tarde se vai envolver. 

Uma história marcante da literatura nacional que o realizador Leonel Vieira viria a recuperar e que foi protagonizada por dois nomes bem conhecidos da representação: Diogo Morgado e Maîte Proença.

Deixo-vos dois mimos.
Um link para um blogue dedicado a Ferreira de Castro, especificamente para um post sobre a sua vida na intimidade.
Outro link, agora para um trecho do filme "A Selva".
Usufruam desta viagem. O Metro vai partir.



Jorge Jesus e Blaise Pascal: uma relação literária

Não resisti. Juro que não consegui. Tinha que vir parar ao blog.


Descubram a relação possível entre o treinador do Benfica e Blaise Pascal. Confiram aqui: http://www.youtube.com/watch?v=Bm4ysWKXyjw


1º Parágrafo: A Neblina do Passado


Os sintomas surgiram de chofre, como a onda voraz que arrebata o menino da beira-mar e o arrasta para as profundezas do mar: o duplo salto mortal no estômago, o entorpecimento capaz de lhe adormecer as pernas, o suor frio nas palmas das mãos e, sobretudo, a dor quente sob o mamilo esquerdo, que acompanhava a chegada de cada uma das suas premonições


* Traduzido do espanhol (Cuba) por Helena Pitta

a-ver-livros: espelhos e Jean-François Martin

Palavras como murros
Páginas como muros
a escalar uma por uma
Pedaços de quem somos
espalhados por aí
Espelhos e espantos

e esperas por dias perfeitos
Perdidas que estão 
as ilusões

* para conhecer melhor o ilustrador francês Jean-François Martin
é só seguir os links costume3pieces.com/fr/galerie/Martin e noir-de-mars.blogspot.pt   

quinta-feira, 14 de março de 2013

David Pintor e o livro «Compostela»

Hoje deixo-vos palavras de David Pintor, acerca do livro que ilustrou sobre a cidade de Compostela. Este livro não está traduzido em Portugal. No outro dia, tive a sorte de tê-lo nas mãos. E achei um encanto. 

Para perceberem o que digo, assistam ao vídeo do youtube. 

Espero que gostem! 

(...) Un cuaderno de viajes diferente, un paseo por las calles y plazas de Compostela, la historia de un personaje que recorre en bicicleta una ciudad mágica, y descubre la luz, los colores y el ambiente de la capital gallega. Una invitación a mirar a esta ciudad de manera diferente, con imaginación...
Con motivo del lanzamiento de mi libro "Compostela", en la editorial kalandraka, he editado este vídeo con imágenes extractadas del mismo, y envuelto en la cálida voz de Eliane Elías. Espero que os guste. (...)


Para saber mais sobre o livro, visitem o blog de David Pintor.

Poema à noitinha... Herberto Helder

Pintura de Maria Henriques

Se houvesse degraus na terra... 

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu, 
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia. 
No céu podia tecer uma nuvem toda negra. 
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse. 

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se, 
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho. 
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra, 
e a fímbria do mar, e o meio do mar, 
e vermelhas se volveram as asas da águia que desceu para beber, 
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas. 

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo. 
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata. 
Correram os rapazes à procura da espada, 
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

*Herberto Helder

1º Parágrafo: Crónica do Pássaro de Corda


Estava na cozinha a vigiar o esparguete ao lume, quando tocou o telefone. Ao mesmo tempo ia assobiando a abertura da ópera La Gazza Ladra, de Rossini, que estava a tocar numa estação de rádio em FM. O fundo musical perfeito para cozinhar massa.



* Tradução de Maria João Lourenço
* Revisão de Sofia Graça Moura

a-ver-livros: as voltas e Leslie Marcus

Volta para os meus braços, anda
que têm a forma do teu corpo
volta para o ninho que construí
para os teus sonhos e os teus medos
volta para o aconchego
da minha respiração na noite rodopiando
no recanto do teu pescoço
murmurando o que nunca cheguei a dizer
mas que pensei mil vezes
enquanto preparava os braços e te via ler

* para conhecer mais sobre a pintora Leslie Marcus
siga o link www.absolutearts.com/portfolios

quarta-feira, 13 de março de 2013

Pacheco Pereira na Universidade do Porto para contar a história da imprensa clandestina


Livro apresenta um retrato exaustivo da imprensa radical durante os últimos 20 anos da ditadura em Portugal.
Nos anos 60 e 70, “folhas mal impressas, escondidas, dobradas, metidas em envelopes, dentro de folhas de um livro, em pacotes disfarçados de outra coisa…” faziam passar a mensagem contra o regime ditatorial em Portugal. Algumas décadas depois, José Pacheco Pereira foi à procura delas, reuniu-as e conta agora a sua história em “As Armas de Papel – Publicações periódicas clandestinas e do exílio ligadas a movimentos radicais de esquerda cultural e política (1963-1974)”, livro que será apresentado na Reitoria da Universidade do Porto, no próximo dia 15 de março.
Para estudar um dos fenómenos mais marcantes do último período da ditadura, Pacheco Pereira inventariou e citou os periódicos, panfletos, brochuras, livros e manuscritos associados com a imprensa radical, bem como uma extensa bibliografia nacional e internacional, e analisou os processos da PIDE. O resultado final é um retrato exaustivo da imprensa clandestina oriunda da extrema-esquerda, mas também da que se “fez ouvir” contra a oposição tradicional ao regime ditatorial, liderada pelo PCP e pelos grupos republicano-socialistas, nos anos 60 e 70, até ao 25 de Abril de 1974.
Apostado em contribuir para a sua conservação deste espólio, o autor faz também o um inventário completo de todos os números, suplementos, edições e tiragens da imprensa clandestina. Uma história que é agora dada a conhecer ao público pela editora Círculo de Leitores mas que, segundo o autor, apenas “começa aqui”.
José Pacheco Pereira é licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1978. Iniciou, desde cedo, a sua atividade política em movimentos de oposição ao regime do Estado Novo. Foi deputado à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu. Atualmente é professor no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE). Colabora regularmente na imprensa escrita e é comentador político na televisão. É autor de vários livros e artigos sobre história contemporânea e movimentos políticos e sociais.
De entrada livre, a sessão de apresentação terá lugar pelas 18h30, no Salão Nobre da Reitoria da U.Porto, e será liderada pelo historiador Fernando Rosas e por Manuel Matos Fernandes, professor da Faculdade de Engenharia (FEUP).

Manifestamente Manuel António Pina. «Farewell Happy Fields»

Farewell Happy Fields

I

Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso 
e a vaga maneira como dizes os esses; 
vêm de muito longe e chegam incompletamente 
ao pequeno vulnerável sítio entre 
toda a minha vida e toda a minha morte, 
quando a minha última recordação atirou já com a porta 
e tudo está acabado até a tua respiração 
na cama ao meu lado, 
e também tu estás morta, 
duma forma que já não me importa. 

Vamos então os dois outra vez 
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias 
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias, 
compramos coisas, visitamos 
talvez algum último amigo 
sem sabermos que eu já não estou vivo. 

Poderia ter sido de outro modo? 
Poderiam ter sido outras duas pessoas 
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte? 
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?) 
Aparentemente foi por pouco; 
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo, 
se eu não tivesse chegado a casa cansado, 
se a louça não estivesse por lavar 
e a janela da sala de jantar 
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado, 
nem tu tivesses ido ao supermercado, 
e se eu não estivesse cheio de medo. 

Agora estou voltado para cima, 
para onde cantas ainda há muito tempo. 
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento. 
Voltamos, tu e eu, ao mesmo jardim desflorido 
onde eu morro sozinho 
e conversamos comigo 
como com um desconhecido. 

Que diremos agora um ao outro? 
É tarde. Ainda há um momento 
me apetecia conversar, agora estou outra vez tão cansado! 
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado, 
como se fosse pelo lado de dentro? 

foto: Raquel Patriarca - Bairro dos Livros

II

Estou morto, deitado de lado.
Morte, Vida, Medo, Esperança:
já não estou para aí virado.

Onde vos guardarei agora, lembranças?
Talvez também eu seja uma lembrança diante
da lembrança de uma casa também morta,
e talvez ela me abra finalmente a porta
e as escadas brilhem e o corredor cante.

Dos meus olhos vê-se um jardim
ardendo em rosas espetado
(os teus olhos ardiam assim em mim:
como um palácio iluminado),
um jardim lento (tem muito temo)
onde eu outra vez entro.

Se me voltasse para trás o que veria?
Ainda os teus olhos, ainda a alegria?
Agora que partiste para sempre
segurando-me inutilmente a cabeça
talvez tudo te pareça
excessivamente evidente
e excessivamente irrisório:
a morte, a vida, os dias sem lugar,
a louça do almoço por lavar,
as meias a escorrer no lavatório.

Mas não nos julgues com severidade,
estava a fazer-se tarde
e já ninguém vinha, o melhor
era irmo-nos deitar.

Agora, se o telefone tocar,
diz que não estou.
(Sem ironia, o meu coração teme a ironia
quase tanto quanto a perfeição;
e sem melancolia:
estávamos a precisar de solidão,
de silêncio, de geometria,
e as nossas lágrimas de uma grande razão).

Agora que não estou 
(nem tu sabes quanto)
tudo o que passou
sou eu regressando.

Os meus passos, não 
os ouves nas escadas,
subindo as escadas
como os de um ladrão?

*In Farewell Happy Fieldes, 1992

1º Parágrafo: O Que Está no Meu Coração


Vinte dias depois de iniciado o século, um automóvel branco sem matrícula, ocupado por três indivíduos, levou de roldão o corpo de uma mulher que atravessava uma escura rua empedrada às oito da noite. Nas palavras da única testemunha dos factos, o veículo não parou, pelo que ela, ao ver um vulto caído no passeio devido ao impacto, chamou uma ambulância sem se aproximar para verificar se vivia: a intuição do sangue conteve-a.


* Tradução de Maria do Carmo Abreu

terça-feira, 12 de março de 2013

a-ver-outros-livros no Metro: Natália Correia

Olha como nos olha Natália, intensa como viveu, agora que morta se eterniza nas paredes marmóreas do Metro do Aeroporto, em Lisboa, traçada pelo caricaturista António. Olha como nos mira, com os seus olhos de intelectual, activista social e política - sim, foi deputada, claro que se recordam ainda -, jornalista e poeta. Assim mesmo, nunca gostou de poetisa, que a poesia sempre a entendeu assexuada.

Se da sua obra muito há a recordar, da poesia ao teatro, ao ensaio e ao romance, mais depressa se lembram da tertuliana convicta, polémica e assertiva que marcou a Lisboa cultural e literária dos anos 50 e 60 - já ouviram falar do Botequim, o seu famoso bar? - e ficou para a história da televisão em Portugal com o programa "Mátria". Espírito livre, interventivo, mulher acima de tudo (a mais linda de Lisboa, disse José Augusto França), casou-se quatro vezes: as duas primeiras relações breves, a terceira com o seu grande amor, Alfredo Luís Machado, a última aos 67 anos, por conveniência, com o seu colaborador e amigo Dórdio Guimarães. Meros três anos depois morria, fará vinte anos no sábado. Um ataque cardíaco, quando voltava do Botequim.


Natália de Oliveira Correia (S. Miguel, Açores, 13 setembro 1923 - Lisboa, 16 março 1993). Deixo que seja ela a falar de si mesma por um instante.

"Auto-retrato

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea . Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis."

in Poemas, 1955

E, como não consigo escolher entre outros dois meus favoritos, deixo-vos os dois. Não me hão-de crucificar por isso, certamente. Recordar Natália é uma viagem saborosa.

"Poema Involuntário

Decididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.

Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.

Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.

Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
"

in "O Vinho e a Lira"

~ ~ ~ ~

"O Testamento dos Namorados

Escolhamos as coisas mais inúteis
o verde água o rumor das frutas
e partamos como quem sai
ao domingo naturalmente.

Deixemos entretanto o sinal
de ter existido carnalmente:
da tua força um castiçal
da minha fragilidade um pente.

Esse hieróglifo essa lousa
deixemos para que uma criança
a encontre como quem ousa
um novo passo de dança.
"

também in "O Vinho e a Lira"

Termino o a-ver-outros-livros no Metro de hoje com links. Uma espécie de vales para mais viagens a fazer com tempo e atenção. Poemas ditos e alguns até cantados pela própria Natália Correia, vários dela. Música, arranjo e direcção musical do maestro António Victorino D'Almeida‎. São 15 vídeos. O disco "Improviso", de 1975. Uma delícia.

1 - "A Donzela de Biscaia"
2 - "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
3 - "Quarto"
4 - "Telex"
5 - "Árvore Geneológica"
6 - "A Rapariga do Sweater Vermelhor"
7 - "Fado de Diogo Ary dos Santos jovem lusíada tocador de guitarra que morreu de amor"
8 - "Núpcias Químicas"
9 - "Caosmonáutica"
10 - "Rebis"
11 - "O Encontro"
12 - "Uma Laranja para Alberto Caeiro"
13 - "A Política do Dia"
14 - "Cabelos, os Meus Cabelos"
15 - "Amanhece"

1º Parágrafo: Um Milagre de Equilíbio


OXITOCINA: A oxitocina é uma hormona relaciona com os padrões sexuais e com as condutas materna e paterna. Está também associada à afectividade e à ternura. Alguns chamam-lhe a “molécula da monogamia”.


* Tradução de  Magda Bigotte de Figueiredo

Está aí: «Contracorpo», Patrícia Reis

Chega hoje às livrarias, Contracorpo de Patrícia Reis, lançado pela Dom Quixote.
Fiquem com o essencial.


Uma mulher fica viúva com dois filhos. Alguns anos depois da morte do marido, a vida não se refez e o filho mais velho, agora adolescente, cresce contra a mãe, num silêncio obstinado que só quebra nas histórias que se conta para adormecer e nos desenhos que faz de forma compulsiva. Com o anúncio do chumbo escolar, a mãe decide, sem grandes reflexões, fazer uma viagem com este filho, deixando o pequeno com os avós. Não se trata de uma viagem com destino, mas antes uma procura.

Contracorpo é um livro contra o silêncio e sobre o silêncio. É uma história de procura de identidades distintas - da mulher e do quase homem - e ainda de descobertas. Uma mãe nunca é o que se espera. Um filho é sempre uma surpresa. O encontro dá-se enquanto procuram caminhos, de Lisboa a Roma, num jogo de claro escuro. Como se tudo fosse uma imagem.



a-ver-livros: esperar e Laida Blaya

Vens aí, mão cheia de suaves risadas
arrancadas aos silêncios das noites
cúmplices
vens aí, ramo arrancado à arvore
que eu sou
vens aí 
ou demoras tanto quanto o cheiro
a erva cortada num dia de verão

* para conhecer mais sobre a pintora espanhola Laida Blaya
siga o link https://www.facebook.com/laida.blaya

segunda-feira, 11 de março de 2013

Bairro dos Livros, Manuel António Pina e o Clube de Leitores

Acho que fui "apanhado" a dizer poesia no Porto Canal. Motivo: O Bairro dos livros dedicado a Manuel António Pina.



1º Parágrafo: Rainha da América


Wilson fumava dois cigarros ao mesmo tempo. Um pendia-lhe dos lábios, enquanto mantinha o outro preso entre os dedos, como se fosse um lápis. Não querendo esquecer-se do que estava a ler, ergueu os olhos e disse que passara o dia a pensar que era noite.


* Tradução de Ana Mafalda Tello

O Clube de Leitores no Bairro - a foto do nosso contributo

O Clube de Leitores teve um papel activo na manifestação em homenagem ao escritor Manuel António Pina. 

Eu e a Raquel Patriarca estivemos nas escadas da Torre dos Clérigos (logo ao início) e contribuímos com a leitura de 3 poemas - A Poesia VaiAmor como em Casa Aos Filhos.

Tirando um pequeno problema com o megafone - que começou a disparar o som de uma sirene - creio que correu tudo bem. O vento soprava com força, não sei se a audiência conseguiu escutar cada palavra com atenção. No fim, o que conta é a homenagem. E tenho a certeza que entusiasmo não faltou!

a-ver-livros: escondido e Adam Pekalski

Escondi o que resta
de nós
na terceira gaveta a contar de cima
debaixo daqueles papéis que falam
já nem sei de quê
e das luvas velhas que não sei
por que guardo ainda

Escondi o que resta
de nós 
bem escondido no fundo 
onde está o relógio avariado
que nunca vais mandar arranjar

Pode ser que assim não se gaste
em rompantes de mau génio
o que ainda sobra deste amor

* para conhecer mais sobre o ilustrador polaco Adam Pekalski
siga o link www.adampekalski.com

domingo, 10 de março de 2013

Da evidência da melancolia nos dias de chuvA




Se te perdoasse não saberia o que escrever.
E não sei o que escrever.
São demasiadas as coisas sobre as quais não podemos ou não devemos falar.
Sei que tenho saudade.

Uma saudade.
Eu ia a dizer imensa.
Mas não lhe sei o tamanho.

Da parte em ti que gosta de mim.
Em bom rigor.
Da parte em ti que acho que gosta de mim.

Contigo, o exercício da dúvida serve de salva-vidas.
A mim salvou-me a vida!

Está a chover.
Estou neste país há quase três anos e pela primeira vez vejo chover.
Acho que choveu antes mas eu não vi chover.
Agora duvido de tudo, fizeste-me assim.
Uma vez, os factos: o chão molhado, as árvores carregadas de água, as vidraças das janelas crivadas de gotas de água, como se um soldado com uma metralhadora quisesse tomar a casa de assalto.
Fui descalça até à praia.
Agora vivo perto do mar.
O cão feliz ao meu lado.
Agora tenho um cão.
Coloquei a hipótese de lhe dar o teu nome. Por graça, sabes, do tipo é tão feio que é bonito, mas percebi de imediato que o paradoxo não teria qualquer graça, apesar de ser um bicho silencioso, companheiro e fiel.
Decidi chamar-lhe Fígaro porque tenho que o tosquiar com frequência, percebes a graça, o paradoxo?
Não sei porque te conto estas coisas.
Coisas comezinhas.
Escrevo, talvez, porque está a chover.
É a primeira vez que chove.
É a primeira vez que escrevo.
Como se causa e consequência, talvez.
Parece-me que o jogo era verdade ou consequência, mas não importa.
Sinto a minha mão torpe, a caneta sem posição na mão.
Ao contrário, a mão sem posição para a caneta.
A minha letra sem a forma perfeita da minha letra.
Sem a forma imperfeita da minha letra.
Uma evidente inclinação para a esquerda, como se um vento de oriente, constante, morno, as palavras em deleite, como se girassóis, como se em espreguiçadeiras alinhadas na areia da praia.
Uma imperfeição que exasperava a minha professora primária.
A D. Deolinda, como Quixote, a combater, não moinhos, mas ventos, à base de toques de varinha, não mágica, concreta cana-da-índia, no meu cocuruto.
Um dia de audácia fermentada e premeditada, partimos a varinha.
Não foi fácil, apresentou uma rigidez que nos surpreendeu, que não nos devia ter surpreendido, pois era do conhecimento de todas as moleirinhas.
A varinha partida em três.
A D. Deolinda, incomodadíssima, olhou para meia dúzia de nós, os suspeitos do costume, nós olhámos para os sapatos, nos meus pés uns sapatos castanhos de atacadores, os laços quase desfeitos, nitidamente a precisarem de ser engraxados.
E dois dias depois outra varinha, que fazia o mesmo serviço igual de bem.

Parou de chover.
Sem chuva não tenho motivos para escrever.
Como se causa e consequência, talvez, como se verdade apenas.
Até o tamanho da saudade encolheu, mirrou, como o que faz a água em centrifugação nas máquinas de lavar às camisolas de lã. Encolhem, deixam de servir ao corpo, as mangas não pelos punhos, pelos cotovelos, a bainha pelo umbigo, ridículo.
Mais ou menos assim, como uma camisola, deixaste de me servir.
Fraca metáfora, não digas, eu sei, por outras palavras o poderia ter dito, há sempre outras palavras, mas o que nós fomos não merece mais palavras, nem esta carta envelope e selo de correio.

Raquel Serejo Martins


O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo - Murakami está de volta

«O golpe de mestre que provocou o reconhecimento de Haruki Murakami a nível internacional.»
Jay McInerney

Assim nos é apresentado O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo, editado pela Casa das Letras e que chega, em breve, às livrarias. 


Para se deslocar ao laboratório de um velho professor com fama de homem da Renascença do nosso tempo, um técnico informático apanha um elevador, lento ao ponto de uma pessoa não saber se está a subir ou a descer. À chegada, é recebido por uma jovem bonita e rechonchuda. O programador segue atrás da mulher vestida de cor-de-rosa por corredores que nunca mais acabam e por caminhos subterrâneos, aspirando profundamente a fragrância de melão que a nuca dela exala. No entanto, nem sequer ouve o rumor da respiração e é como se as palavras que lhe saem da boca chegassem aos seus ouvidos através de uma espessa parede de vidro. Às tantas, parece-lhe que a jovem de formas arredondadas terá dito qualquer coisa como «Marcel Proust». Marcel Proust? Bem-vindos ao impiedoso país das maravilhas.

Numa pequena e fantasmagórica cidade, rodeada por uma muralha que a separa do resto do mundo, vivem seres humanos privados da sombra e dos sentimentos. Habituados desde há muito a conviver tranquilamente com a ausência de emoções, todos se mostram satisfeitos e em paz. Ninguém envelhece, ninguém morre. A que se deve tal proeza? Aparentemente, ao facto de não terem coração. Com efeito, as pessoas deixam de ter sombra mal passam a viver dentro das muralhas. A esta cidade nos confins do mundo chega um jovem de trinta e cinco anos, que tem por missão ler «os velhos sonhos» nos crânios dos unicórnios. Com a ajuda da bibliotecária, que revela um apetite prodigioso até dizer basta, o programador propõe-se recolher recordações e fragmentos de outras vidas, pertencente a uma outra possível dimensão.