sexta-feira, 13 de junho de 2014

Poemas que dão música... Variações, 30 anos


Quem feio ama
António Variações


Quem feio ama
Bonito lhe parece
Quem bonito tem não sabe
Se lhe pertence.
Quem feio ama
Gosta de ter confiança
Porque a beleza
Nem sempre deu muita
Segurança.

Quem feio ama
Tem os olhos convencidos
E só vê beleza
Em todos os sentidos.

Quem feio ama
Lá tem as suas paixões
Tem o seu segredo
Outras compensações

*Variações morreu a 13 de Junho de 1984

a foto saiu daqui.

À atenção dos catlovers...

visite a página.

Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935)


Aniversário


Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)


No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

foto: descoberta no mural de Teresa Carreiro

a-ver-livros: pé quebrado

Inspirada nos santos populares (ou bem pelo contrário), deixo-vos hoje a minha quadra - de absoluto pé quebrado.



Amei-te como se ama
só uma vez na vida
E no pouco que te amei
Amei-te pela vida inteira. 

Ana Almeida


quinta-feira, 12 de junho de 2014

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações



E se o rock progressivo fosse a explicação da loucura humana?
Hoje, Gonçalo deixa-nos mais um conto do seu Livro Homens e Demónios, fazendo parte, assim, da 2ª parte desse livro intitulada "A Música e a Loucura", parte que reflecte inteiramente sobre a banda de rock progressivo Pink Floyd. O título deste conto é: "The heart of the sun", aliás, uma música, psicadélica, das primeiras, dessa majestosa banda!
Que vos agrade, pois este Gonçalo que agora vamos ver é o da primeira fase, ou seja, dos seus primeiros escritos.
Que vos agrade o que a mim me pasmou!


"The Heart of the Sun"

            A realidade imita o ácido.
            A religião faz sentido depois do ácido. Louvado Seja Deus. As veias dilatadas, perdidas no vazio de uma bateria que imita um tambor romano. Volto a Pompeia. A muralha de Jerusalém caíra, outra vez, Vespasiano era imperador de Roma. Antes de Pompeia.
            Volto a ouvir a bateria e a guitarra entrando pelos meus olhos. Sou sensações. Muitas ao mesmo tempo. Álvaro de Campos teria inveja do mundo que nunca viu. Álvaro de Campos? Quem foi esse? Nada. Louvado Seja Deus. Mais uma dose, por favor, Pompeia começa a afastar-se e quero sentir a adrenalina, o fogo, o pânico, a fúria dos deuses, filhos do Olimpo, crianças da religiosidade.
            As veias e os olhos dilatam um pouco mais. A guitarra, a bateria, o teclado, o baixo, a voz, sou eu. Eu! Eu! Todo eu. EU GRANDE, EM PLENITUDE! E sou tudo e todos e vejo o Vesúvio cuspindo fogo e fumo e morte e gritos e medo e sorrio e danço e danço e viro-me e reviro-me e salto e grito de prazer. Longínquas Sensações Distorcidas. Que maravilha! Que espanto! Que grandeza! Os patrícios fugindo, deixando tudo para trás, riquezas, escravos, filhos, respectivamente. O coração do Sol explodiu. Os olhos dilatam-se. Todo eu som e olhar. Sinestesias em estado puro. Mais que uma grande mentira. Realidade.
            A música é estonteante, quase psicadélica. Deus toca-me com o seu dedo e volto a ser Adão e Eva. Deus toca-me com o seu dedo e pede-me ácidos. Algures na minha cabeça a Capela Sistina agita-se. Não há lua. Não existem lados negros. Só o coração do Sol palpita na minha mão. Deus levou-me ao topo do Vesúvio e revelou-me os mistérios últimos do mundo e da vida.
Fácil. Simples. Definitivo. E andamos nós à procura de explicações para tudo, de motivos lógicos e racionais para o universo, para a vida e para a morte. A explicação grita esquizofrénica: loucura! Mas tudo começa a ficar distorcido, o Vesúvio começa a afastar-se de mim, o fumo esvanece-se.
            Volto a estar num quarto fechado, a meu lado três amigos de longa data, fumando ópio, bebendo absinto, olhando a merda do infinito.
            Encosto a cabeça a um divã e tento lembrar-me dos pormenores, mas tudo é névoa pesada demais. Tenho fome. Tudo não passou de um eco. Um eco de um anfiteatro carregado de tardes de sol e leões e gladiadores e batalhas navais fingidas. Se tivesse gravata, neste momento seria um perito em Antiguidade Clássica, essa merda douta de séculos e pedras e esgotos.

            Mas o efeito do LSD que não tomei já passou. Fiquei sem ideias para continuar. Já chega.

Eu poético... «Embala»

Embala

embala esta noite o nosso amor
e sopra-lhe ao ouvido palavras doces.
quando sentires um soluço
vai buscar uma manta,
cobre-o
e esfrega-lhe as costas
com a palma das mãos.
depois canta.
canta o canto dos pássaros
num assobio suave
e sussurrado.
só assim ele adormece
na almofada que jaz
junto
à
tua.

Rodrigo Ferrão
Foto: Rodrigo Ferrão

Ler é Piquenicar!


AINDA PRECISAM DE MOTIVOS PARA IR AO BAIRRO?

Este sábado, dia 14 de Junho, todos os caminhos vão dar ao Parque da Cidade. O Bairro dos Livros está a preparar um piquenique literário bem original e com muitas surpresas. Preparados? O calor e os livros são uma garantia! Tragam toda a família, os vossos animais de estimação, os vossos livros e boa disposição, do resto tratamos nós :)
Esperamos mais de 300 bairristas para esta festa. O que têm de fazer? Apenas ir.
O conceito é simples, podem trazer de casa as vossas cestas com comida e toalhas e tudo o que precisam. Para os mais preguiçosos ou os que não têm tempo para grandes preparativos, há banquinhas com comida no local, prontas para qualquer tipo de refeição.
Na nossa programação o destaque, como sempre, vai para os livros. Queremos promover a troca de livros entre os bairristas e uma mega fotografia de grupo com os leitores e os seus livros favoritos. Tudo isto, rodeados por muita música ambiente e ao vivo.
O fim-de-semana reserva a temperatura ideal para usufruir de um dia no Parque, com muita música, livros, artesanato e comida. Vão faltar? Não há desculpas, sábado é dia de Bairro dos Livros – Ler é Piquenicar!
*todo este post é retirado directamente do site do Bairro dos Livros: http://bairrodoslivros.wordpress.com/2014/06/11/ainda-precisam-de-motivos-para-ir-ao-bairro/

Harold's Planet: rio abaixo


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Poema à noitinha... Helga Moreira

Anoitece em Inferno a Minha Casa

Anoitece em inferno a minha casa.
Fico com este começo de verso
a serenar a exaltação de não dizer nada.
Deixem-me com este sorriso a morrer
por uma sílaba mais real onde um verso
me sossegue
com unhas de lama e sangue,
como garras.
Anoitece em inferno a minha casa.
Fica a certeza de não ter fim o que
de inutilidades se basta,
ou apenas o instante em que,
por um verso, eu fui
à outra parte da casa.

*Helga Moreira, in Os Dias Todos Assim

Foto frase do dia: Nelson Mandela


Grand Snider - Conflict in Literature


a-ver-livros: amor e outra coisa

Odeio pisar
o tapete de jacarandás
tanto quando amo vê-los em flor

Dizem que os dois 
sentimentos
vêm do mesmo lugar
e que um só vence o outro
quando a chuva cai 
sobre a calçada 
açucarada
levando o fim da primavera
verão adentro

Ana Almeida

* para saber mais sobre a ilustradora norte-americana Megan Coyle
siga o link http://mcoyle.com/

terça-feira, 10 de junho de 2014

Poema à noitinha... Torga

Portugal

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.

*Miguel Torga, in Diário X

É do borogodó: as aranhas

Atravessava a noite húmida envolta por seu longo véu tecido por sete mil aranhas que moravam no seu sótão. Ia pálida, como haveria de ser. Não fosse o desvio, entre as árvores, que fizeram crescer suas narinas extasiadas de cheiro verde oliva que quase se desmanchava no céu da boca de tão doce, e seu véu se rasgou – quase imperceptível fenda.

Foi justamente pelo fio rompido que entrou aquela abelha, vestida de amarelo vivo, brilhante como um sol de meio dia no meio da escuridão. Zunia e dançava, passeava sobre os lábios da mulher e seduzia com formigamentos de veneno. Avançaram sobre a luminosa um exército de aranhas viúvas dizendo que nada deveria romper o véu, nem o silêncio, nem a neblina da noite.

Dentro do ouvido direito da mulher, outras aranhas entoavam um cântico de dor e morte para que ela se sacrificasse até o fim dos tempos (por todos os séculos).

A abelha amarela faiscante de brilho, sem se deixar intimidar pela celebração fúnebre de suas oponentes, andou sobre o peito da mulher, cocegou seus seios e lhe acendeu o mel do ventre.
“Venha comigo”, disse a abelha, “ venha e eu te lambuzarei do teu próprio mel, o mel que nasce do teu ventre”.

Disse isso e voou para fora da fresta, longe das aranhas tecelãs que a provocavam e incitavam disputa.

As aranhas não deixariam desvirtuar o véu tecido ao longo de tantos anos, nem aprovariam que a mulher de mel se lambuzasse e lhe manchasse a barra do vestido aquele viscoso ouro.
Por um instante, o veneno da abelha percorreu o corpo feminino e latejou um movimento crescente entre as virilhas. Quase desfalecia a pobre mulher.

Atirou-se contra os troncos e revirou os olhos percorrendo cometas.
Entre as árvores a mulher se apavorou e aos soluços implorou que lhe deixassem em paz, aranhas e abelha.

O véu já ia roto, a noite escura já não se demorava e o dia não tardaria chegar.

Penélope Martins

Tom Gauld: THE INDECISIVE NOVELIST'S CHARACTERS CONVERSE

THE INDECISIVE NOVELIST'S CHARACTERS CONVERSE, Tom Gauld.


Quem quer passar além do Bojador?

Sem vontade de "a-ver-livros", deixo-vos hoje, em Dia de Portugal, uma versão musicada do poema "Mar Português", de Fernando Pessoa, interpretada pela InoporTuna, a Tuna Académica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Não sou grande fã de tunas, mas gostei deste tema. Gosto do poema. Gosto de Portugal. E continua a ser preciso passar além do Bojador. Uma vez e outra, e outra, e outra...


Ana Almeida

Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


in "Mensagem
", Fernando Pessoa 

PARA VER/OUVIR O VÍDEO SIGA O LINK:
http://www.youtube.com/watch?v=ycMWKadzFlk&feature=youtu.be

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Poema à noitinha... Daniel Faria

Este é o dia novo. Sei-o pelo desejo
De o transformar. Este é o dia transformado
Pelo modo como apoio este dia no chão.
Coloco-o na posição humilde dos meus joelhos na terra
Abro-o com os olhos que retiro de todas as coisas quando os fixo
Na atenção.

E fico atento, fico deitado porque não sei crescer
Num terreno que se levante.
Cresço na clareira de um homem que é uma palavra
Na sua túnica inteira
Porque este é o sítio do dia sem horário

Sem divisões

E ponho-me de frente no seu lado,
Nos seus braços abertos para me unir
E entro pelo lado aberto e ardo - como Elias
Em chamas subindo para o céu.

*Daniel Faria, Homens que São Como Lugares Mal Situados.

Emílio Miranda, dia 26

Saudade
Não é o que sentes;
É o que passa para além dos teus dedos,
Para além dos teus olhos;
O que te lembra o quanto é pequeno o teu peito
E ainda assim não dispensas nem libertas…

Emílio Miranda 


Foto: Cláudia Miranda

O que é a Lundiphobia?

Agueros, sou parte da tua memória

Até pode ser estúpido, que querem. Mas dou por mim, lágrimas nos olhos, sinceramente triste com a morte de alguém que nunca conheci. Jack Agueros, o poeta de origem porto-riquenha que vos apresentei há uns dois anos e tal, rendida e apaixonada, sucumbiu ao Alzheimer no passado dia 4 de Maio, na sua casa de Manhattan. Soube-o há instantes - e dói-me.

Além da sua poesia e do activismo que pautou a sua vida, Agueros fechou a sua história doando o seu cérebro doente para estudo ao Taub Institute for Research on Alzheimer's Disease and the Aging Brain, no Centro Médico da Universidade norte-americana da Columbia.

Escrevia eu nesses idos de 2012: "Só me ocorre que acabei de o descobrir. Quanto tempo terei antes de o perder também?" Dois anos e uns três meses. É a resposta. Não interessa nada. 

Prefiro que, se não leram então o meu post, se não viram então o vídeo que o acompanha, se não leram os poemas que traduzi e partilhei o façam agora, seguindo este link. Nunca é tarde para celebrar a emoção. Nunca é tarde para conhecer um extraordinário poeta.

Ana Almeida


domingo, 8 de junho de 2014

Cronicando pela Ásia... descer o Laos de Tuk-Tuk e voltar a entrar na Tailândia

A descer o Laos rumo a Bangecoque,
10 de Maio de 2009


O corpo cedeu e não acordei à hora que devia. Caí na tentação de adiar o despertador de 10 em 10 minutos e depois destruí todas as esperanças do telemóvel ao carregar uma última vez na tecla dos sonhos. Um erro fatal quando se está de férias e sem rumo.

Depois do pequeno almoço despeço-me dos amigos feitos nos últimos dias. E solto a correr até à central das camionetas.

Nada! Já tinha tudo partido.

Não havia muito a fazer. Ou ficava mais um dia no Laos e punha o meu regresso a Macau em risco... ou então tentaria arranjar uma solução a todo o custo.

Lá voltou a esperança após uma conversa com quem ali passava. Está decidido e não se pensa mais nisso: vou descer o Laos de Tuk-Tuk. 

Percorro o Laos com o vento a bater-me na cara, sentindo o cheiro da paisagem que me rodeia. A viagem ganha contornos de aventura; não é todos os dias que se fazem centenas de quilómetros por estradas perigosas e curvas sem fim nas traseiras de uma mota com tejadilho atrás.

A meio da viagem espanto-me com as pessoas que vamos colhendo pelo caminho. Mas quem são estes passageiros que sobem para o Tuk-Tuk e seguem comigo? Gentes do Laos de quem não arranco mais do que um pequeno sorriso ao chegar. A meio da jornada sou abandonado pelo meu primeiro motorista e entregue ao segundo. Como sempre, nada a fazer ou contestar. Entrego-me com confiança à segunda parte da aventura.

As esperanças de visitar a capital do Laos são deixadas para trás. Vientiane passou a fazer parte da imaginação, só houve tempo para comprar o bilhete até Bangecoque.

Finalmente encosto ao banco e durmo um pouco. Longas horas depois chego à pensão por onde já passei antes. Volto ao ponto de partida e aos cheiros desta grande cidade.

Um banho de mangueira, umas fatias de pizza na rua e cama. Amanhã tiro o dia para umas últimas compras e para o adeus à Tailândia.

Rodrigo Ferrão

Projecto Retratos: Clara Cavour grava histórias de Matilde

´
Um dia destes, aqui na cidade, a Clara Cavour apareceu de câmera na mão para gravar algumas histórias. Foi logo depois de um bom almoço. As coisas que acontecem depois de um bom almoço são importantes, e portanto eu não quero esquecer-me dos registos desse dia. Sei que a Laura esteve sempre por perto. Sei também que da primeira vez que assisti à coisa em tela cheia, estavam a Luana e o Mariano do meu lado. Um de cada lado mesmo - como dois escudos, como duas nespereiras. Meu coração anda muito protegido, e meus joelhos também.
Este é o Projeto Retratos, estas foram as histórias que eu soube contar num dia de outono de 26 ºC. E apesar de tudo, olhe: a grande descoberta da última temporada tem sido a importância daquilo que não se diz. 


*Texto de Matilde Campilho



O Papalagui

"Através dos seus olhos descobrimos a nossa própria imagem, 
e isso com uma simplicidade que já perdemos.” 


Apontamento sobre o livro: 

O Papalagui (que significa o  europeu) reúne uma colecção de discursos de um chefe aborígene samoano de Tiavéa (na ilha de Upolu, Oceano Pacífico) e a sua visão sobre o europeu no período anterior à Primeira Guerra Mundial, quando decidiu fazer uma viagem à Europa, enquanto missionário. Foi escrito por Erich Scheurmann, que teve contacto com a tribo e foi reunindo as considerações do chefe da tribo sobre as mais variadas questões, retratadas em cada um dos dez capítulos que constituem o livro, publicado em 1920. O mais surpreendente e valioso é que tudo quanto foi escrito nesta altura, permanece actual, desde considerações sobre o vestuário, as habitações, o tempo, o dinheiro, a religião, o teatro ou a racionalidade.



Capítulo 10: A grave doença de estar sempre a pensar

Mas o Papalagui pensa tanto, que o acto de pensar se tornou um hábito, uma necessidade, e até mesmo uma coacção. Vê-se obrigado a pensar continuamente. Só muito a custo consegue não fazê-lo e deixar viver todas as partes do seu corpo ao mesmo tempo. Na maior parte do tempo vive apenas com a cabeça, enquanto os sentidos dormem um profundo sono. Muito embora isso o não impeça de andar normalmente, de falar, de comer e de rir, permanece fechado  na prisão dos seus pensamentos - os quais são os frutos da reflexão.
Deixa-se por assim dizer embriagar pelos seus próprios pensamentos. Quando brilha um belo sol, logo ele pensa: "Que belo sol que está agora!" E continua a pensar, sempre a pensar: "Mas que belo sol!" Ora isso é falso, absolutamente falso, é uma aberração, pois quando o sol brilha, vale mais não pensar em nada. Qualquer Samoano sensato irá estender e aquecer o seu corpo ao sol, sem mais. E goza do sol não só com a cabeça, mas também com as mãos, com os pés, com as coxas, com o ventre, em resumo, com o corpo todo. Deixa a sua pele e os seus membros pensarem por si próprios, e eles pensam à sua maneira, por certo diferente da cabeça. 
O Papalagui é, regra geral, um ser dominado por uma perpétua luta entre os seus sentidos e o seu espírito, um ser humano dividido em dois.

Apanhei-te a ler... dia 5

Frida Kahlo

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