sábado, 4 de agosto de 2012

Poema à noitinha... Mia Couto

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço 


*in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas", Caminho.

às quatro pancadas e pequenina




coisas, livros, bichos, pingas, flores, corações e girafas
truz, truz, toc, toc
chegou a menina vinda de lá longe
trouxe tudo, até os cheiros de hortelã e jasmim
nos seus cabelos as mesmas maçãs incendiadas
plim, ploc, pum
perdeu os sonhos com este cinzento entediante de hoje.

e nós perdemos os seus malmequeres
a poesia que atirava para as palavras que dizia
as paixões que a atrapalhavam e que espalhava por aí
a beleza dos tropeços de um dia-a-dia azul.

amanhã nascerá novamente o sol.

a-ver-livros: identificar o homem de Felix Nussbaum

"Retrato de Homem Não Identificado" - 1941
Assim reza a legenda deste quadro de Felix Nussbaum. 
E, no entanto, olhando-o de relance avisto Lobo Antunes. 
Eu sei, parece tolice. 
Mas agora, que vos disse, quem sabe o vêm também no olhar perdido.
No jeito da mão que segura a cabeça. 
Esqueçam lá a folha outonal na outra. 
Vejo Lobo Antunes, que querem. 
E, sendo sábado, só me recordo de algo que o escritor terá dito à Lusa, em 2005.
"Os fins-de-semana são horríveis para os casamentos. Em Portugal resolveram o problema com um jornal enorme, que vem em saco plástico.
Vou ali comprar o Expresso e já volto.


* para conhecer melhor o pintor alemão de origem judaica Felix Nussbaum, assassinado em Auschwitz em 1944, é só seguir os links  www.tendreams.org/nussbaum e www.osnabrueck.de

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Os livros como extensão do nosso corpo, entre o real e o virtual

“Professava o amor ao livro, o mais precioso e o mais estranho dos instrumentos humanos. Outros como o arado ou a espada são extensões da mão do homem; outros, dos olhos, ou da voz; o livro é uma perdurável extensão da nossa memória, dos nossos sentimentos e dos nossos sonhos”. Jorge Luis Borges em homenagem ao livreiro Luis Alfonso


Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor argentino de vanguarda, foi um dos maiores representantes do realismo fantástico no mundo. O seu conto "A Biblioteca de Babel", publicado no livro Ficções, de 1944, pode servir de representação premonitória da sociedade da informação da actualidade. A leitura deste livro já tinha sido abordada num post anterior pelo Rodrigo Ferrão que podem recordar aqui.


Nesse conto, Borges pede que imaginemos uma biblioteca gigantesca que contivesse todos os livros possíveis, ou seja, um repositório de todas as combinações possíveis de letras, sinais e pontuação e espaços da língua inglesa. Espalhados  por toda essa vasta biblioteca de possibilidades colossais haveriam livros que fariam sentido - todos os livros escritos e todos os que ainda seriam escritos. Ao redor desses livros interessantes, e estendendo-se em todas as direcções  em estantes com o formato de colmeias, haveriam milhares de "quase-livros", livros que seriam quase iguais entre si, a não ser pela transposição de uma palavra, pela falta de uma vírgula.

Os livros  mais próximos do original seriam apenas ligeiramente diferentes mas, à medida que nos fossemos afastando, o conteúdo do livro degeneraria em mero palavreado.

A sociedade da informação é a cultura do virtual. A virtualidade desempenha um papel importantíssimo, uma vez que é responsável pela criação de uma supra-realidade que quebra duas limitações existentes no passado: o espaço e o tempo. Obviamente, a superação dessas duas barreiras cria a mobilidade, uma forma ágil de preservar-se contra o que se constitui uma ameaça.

A sociedade da informação é cíclica: um ciclo vicioso, perverso. Por meio do endeusamento da virtualidade, talvez já não exista o livre-arbítrio: o jogo seduz. A ordem dominante não se apresenta claramente, pois o objectivo é manter-se indirectamente imiscuída em tudo, vigiando e controlando sem que execute uma interferência dirigida.

Publicado em Portugal pela Teorema, "Ficções", é um livro de contos mais fantásticos do que policiais, dividido em duas partes, O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam (1941), composto por um prólogo e sete contos, e Artifícios (1944), composto também por um prólogo e nove histórias.

1º Parágrafo: A Esperança


Um estrépito de camiões, abarrotados de espingardas, submergia Madrid, tensa, na noite de Verão. Há vários dias que as organizações operárias anunciavam a eminência do levantamento fascista, a infiltração nos quartéis, o transporte de munições. Marrocos estava já ocupado. À uma da manhã o governo decidira, finalmente, distribuir armas ao povo; às três o cartão sindical conferia direito às armas. Já era tempo: as chamadas telefónicas das províncias, optimistas da meia-noite às duas, começavam a deixar de sê-lo.


* Tradução de Judith Cortesão
* Revisão de Mónica Brito

* André Malraux, nasceu em Paris a 3 de Novembro de 1901.
* A Esperança, publicado em Dezembro de 1937, é reconhecido como o mais importante e o mais célebre dos romances inspirados nos acontecimentos da Guerra Civil de Espanha, conflito em que o próprio André Malraux esteve envolvido, uma vez que participou na organização de uma esquadrilha de aviadores estrangeiros, com base em Albacete, que lutou ao lado das forças da República.

a-ver-livros: reviver o crime com Jean-François Martin

Já só tinha aquela sandes de perna. 
Ia saber-lhe que nem ginjas. 
Leria primeiro umas páginas para entreter, decerto o petisco lhe saberia melhor depois.
Um crime? Exemplar.


* para conhecer melhor o ilustrador francês Jean-François Martin é só seguir os links costume3pieces.com/fr/galerie/Martin e noir-de-mars.blogspot.pt   

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Livro do Mês: Patrícia Reis em Entrevista

RSM: Como foi o processo de concepção deste livro? O tempo de escrita? A história respeitou uma esquadria pré-definida ou foi-se fazendo a si mesma?
Sou, por definição, uma coleccionadora, o que significa que não faço resumos de ideias, a dita esquadria seria, para mim, limitativa. O mais interessante é ter uma ideia e deixar levar a escrita por onde quiser. Muitas vezes estou convencida de que o caminho para um personagem é de um contorno específico e depois, no processo de escrita, percebo que não é nada disso. Como se os personagens tivessem - e têm - um destino que não controlo. O processo de escrita começa por ser, assim, mental e quando começo a escrever é quase de rajada. Como se moldasse um esqueleto. A parte pior e mais morosa vem a seguir: rever, rescrever, cortar. Corto com uma facilidade enorme e não fico apegada a nada, mesmo que sejam duzentas páginas. No caso deste livro cortei 204 sem qualquer receio. Precisava do livro no osso, como diria Cardoso Pires. A mensagem era o mais importante. É um livro sobre a importância de outros, da memória, dos amigos e dos livros como arma de salvação. O mais curioso é perceber que cada leitor se apropria dos livros e, em consequência, quando entrego um original deixa de ser meu.



RSM: Chamam-lhe “uma peregrinação futurista” parece-te uma definição que lhe assenta bem?
Mais uma vez, nas definições e formas de entender o texto e sub texto cada leitor é soberano. Gosto da ideia de peregrinação por estar aliada a um conceito de esperança e, apesar da moldura da narrativa ser um desastre por definir, nunca se perde a vontade de sobreviver. Nesse aspecto também somos animais. O futuro no livro é uma metáfora, em especial se considerarmos o que aconteceu no Japão e o facto de termos uma central nuclear a 150 km da nossa fronteira. Precisava de um espaço no tempo, não longe do que vivemos, para ter um acidente que nos levasse ao básico em vez desta vertigem tenebrosa da tecnologia que nos afasta, que faz de nós menos humanos em alguns aspectos e mais introvertidos em outros. Não sou uma info excluída e tão pouco uma fundamentalista, no entanto é fácil de perceber que a possibilidade de conversar olhos nos olhos, medindo o tom, sendo franco nas palavras, não é uma prática dos dias de hoje. O sucesso das redes sociais e dos SMS está também aí, sendo ferramentas úteis, sem dúvida, mas que dizem muito sobre a forma disfarçada como convivemos.

RSM: “Será sempre pior que Guernica, pior que o nazismo, que os genocídios africanos, que todos os 11 de Setembro, que a Guiné e o Darfur juntos, pior que todas as ditaduras derrubadas ou por derrubar. Prepara-te filha, ainda será no teu tempo de vida.” In Por Este Mundo Acima
Como podemos preparar-nos para um livro assim?
De preferência sem preconceitos. Esta citação dá-nos o lado trágico que faz, como dito, moldura à narrativa, mas não é um livro sobre uma catástrofe tão somente. É, como é tudo o que escrevi até hoje, mais um livro sobre pessoas. As pessoas são um material incrível em todos os aspectos e são plurais, desmultiplicam-se em camadas de coerência e incoerência, de medo e coragem.

RSM: Qual a tua personagem preferida? Porquê?
O Eduardo, personagem principal, é o fio condutor de tudo. Gosto dele e sonhei muitas vezes como conversaria sobre este ou outro assunto. A minha preferida talvez seja a Sofia, amiga de Eduardo, que ele recorda, pela sua fragilidade e segredos.

RSM: Depois do último ponto final, o trabalho de revisão é-te penoso e moroso, ou, pelo contrário é-te fácil, agradável e uma convivência necessária?
É-me penoso depois de estar na editora, as provas, a revisão. Enquanto está comigo tudo faz parte do processo de escrita, até ler alto por saber que todos os livros têm um som próprio. A convivência com as personagens é longa, podem ser quatro anos e, por isso, passam a fazer parte de mim. Quando entrego à editora preciso, confesso, de uma certa distância. Quando o livro sai, muitas vezes, um ano depois, há muita coisa de que já não me lembro. Estou num outro processo e o espaço mental foi ocupado por novas peças que ando a coleccionar.

RSM: “Pedro, Pedrinho és uma pedra boa de carregar.” In Por Este Mundo Acima
Quais são as tuas pedras boas de carregar?
Boas? A minha família. São pedras que podem, porventura, ser pesadas numa fase ou outra, mas são sólidas no exercício do amor e, consequentemente, têm um peso relativo. Sem eles, os homens da minha vida, não sei se teria força para escrever e publicar. Escrever é algo que está em mim. Publicar significa um número de coisas que me são, à partida, desagradáveis, como a exposição ou até mesmo a incompreensão. Um dia, há uns anos, escrevi um conto que foi publicado numa antologia. Era sobre Deus e uma potencial sala de informática através da qual organizava a vida das pessoas. Um crítico resumiu o meu trabalho assim: e PR escreve sobre Deus que, como se sabe, nunca dá resultado. Mais tarde, fui informada de que o mesmo crítico é do Opus Dei, tudo bem. Eu também sou crente e não faria uma crítica tão básica.

RSM: Por este mundo acima, foi editado em 2011, um ano após a edição, que balanço fazes deste trabalho?
Eu sou de letras, não sei balançar e já tenho a cabeça numa outra história. Posso dizer que este livro foi, provavelmente, o que teve maior impacto e será publicado este ano no Brasil, através da Leya Brasil.

RSM: Sei que consideras que há livros capazes de mudar a vida de quem lê? Este livro mudou a tua vida?
Todos os livros que escrevo me mudam, tal como os que leio e me tocam. Um livro é uma interrogação e, se conseguires, chegar à resposta, há algo que se aprende e fica connosco, além de ser sempre uma forma de evolução no processo de escrita de cada um.

RSM: Pergunta para queijo: Quais os livros que mudaram a tua vida?
A fera na selva de Henry James, Alexis ou o tratado do vão combate (aliás o meu blog chama-se http://vaocombate.blogs.sapo.pt/ por isso), Nossa senhora de mim de Maria Teresa Horta, Vale da Paixão de Lídia Jorge, uma série considerável de livros de Agustina Bessa-Luís... E depois? Há Kundera, Roth, Tolstoi, Yourcenar, Duras, Camus, Orsenna, Tabucchi... É impossível preencher o queijo!

RSM: És paralelamente editora da revista Egoísta. Como é essa aventura?
É um desafio com mais de uma década, fazer uma revista temática para curtas ficções e novos artistas não é fácil, mas sempre um desafio. É preciso sublinhar que a Egoísta é um veículo de comunicação do Grupo Estoril-Sol, uma empresa cujas iniciativas ao nível cultural são dignas de nota. É importante ainda dizer que a revista se faz no atelier 004, www.004.pt, e temos uma equipa de luxo. Os prémios que ganhámos, dentro e fora de portas, são um alento e, ao mesmo tempo, aconteceram coisas que nunca foram previstas como o facto de a Egoísta ser seleccionada para estar no Louvre, há quatro anos, como exemplo de qualidade editorial e design.



RSM: “Sobreviver ocupa demasiado tempo.” In Por Este Mundo Acima
Consideras-te uma sobrevivente?
Sem dúvida. Sou uma sobrevivente de muitas coisas, como todos, ciente de que tenho a sorte ou o privilégio de me resolver através da escrita.

Obrigada.

1º Parágrafo: O Homem do Fato Castanho


Toda a gente, de todos os quadrantes, tem andado em cima de mim, para eu escrever esta história, desde os grandes (representados por Lord Nasby) até aos pequenos (representados pela nossa antiga criada para todo o serviço, Emily, com quem estive da última vez que estive em Inglaterra. “Credo, menina, que lindo livro isso dava... como nos filmes!”)


* Tradução de Maria João Delgado
* Agatha May Clarissa Miller, nasceu em Torquay, Grã-Bretanha, 1890.
* Isabel II atribui-lhe o título de Dame of the British Empire
* Deixou uma obra traduzida em mais de cem línguas e ficou conhecida como a Rainha da Crime ou Duquesa da Morte (como preferia ser apelidada)
* The Man in the Brown Suit foi originalmente publicado em 1924, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, e adaptado para televisão em 1989



* Também disponível em audiolivro



a-ver-livros: o início ou fim com Eugene Ivanov

Há um café. Há um cigarro. 
Há a outra mão ocupada com um livro 

Algo pequeno, quase um opúsculo
sobre a ciência de começar as manhãs
- ou terminar os dias - 
sem rugas na alma



* para conhecer melhor o pintor Eugene Ivanov, nascido na Sibéria e a viver em Praga, na República Checa, é só seguir os links  artmajeur.com/eugeneivanovyessy.com/eugeneivanov

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Livro do Mês: Por este Mundo Acima


Dos meus motivos

Por este Mundo Acima (2011) é o quinto romance de Patrícia Reis e o terceiro que eu li, depois de Morder-te o Coração (2007) e No Silêncio de Deus (2008).
Há autores que descubro e a que sigo o caminho, de certa forma sou assim com todos os trabalhos/trabalhadores que me surpreendem, músicos, realizadores, actores, fotógrafos, encenadores, pintores, ilustradores, escultores, coreógrafos, bailarinos, estilistas, arquitectos, designers, desportistas, and so on, and so on.
Nomes que aprendo a decorar, to know by heart, pedras na minha construção.
Patrícia Reis é um nome que eu sei já de cor e Por este Mundo Acima uma aposta segura no encanto de um livro, faites vous jeux.

A história acontece numa Lisboa devastada, num mundo em ruínas depois da catástrofe.
A civilização, como a conhecemos deixou de existir, não há ordem social, segurança, rotinas, água canalizada, electricidade, gás, gasolina, lâmpadas e frigoríficos que funcionem, nem carros, nem mesmo bicicletas a circular.
O valor de uma lanterna, de um lápis, de um pacote de bolachas, de uma lata de concentrado de tomate, de feijão.
Antes da catástrofe, quatro amigos.
Eduardo.
Lourenço.
Sofia.
Jaime.
Depois da catástrofe, apenas Eduardo.
A solidão de Eduardo.
As memórias que o prendem à vida.
O instinto de sobrevivência.
E depois, o Pedro, o presente, um presente que o prende à vida.
O mundo de Eduardo antes e depois de Pedro.
A reconstrução, e a imprescindibilidade da arte na reconstrução do humano.

Por tudo isto que disse ou porque é suficiente uma frase para nos arrebatar:

“Estou tão sozinha que oiço o meu corpo envelhecer”.

Por este Mundo Acima é a minha escolha para leitura neste mês de Agosto.



1º Parágrafo: O Sangue dos Outros


Quando abriu a porta, todos os olhos se voltaram para ele:
-       Que me querem? – Perguntou.




* Tradução de Miguel Serras Pereira
* Simone-Ernestine-Lucie-Marie Bertrand de Beauvoir, nasceu em 1908, com 21 anos, licenciada pela Sorbone, foi a professora agregada mais jovem de França, foi professora de filosofia até 1943.




In memoriam: Gore Vidal - "Love is not my bag"


Morreu. Acontece-nos a todos. Aconteceu ontem a Gore Vidal, autor norte-americano altamente polémico, vaidoso, incisivo, delicioso, 86 anos. Um homem sem paciência para idiotas e que garantia estar longe de ser um romântico ou sequer sentimental. “Love is not my bag” terá dito. Algo como “o amor não é a minha praia”, se quiserem. Italo Calvino, algures, cita Vidal de memória: “Sou exactamente o que está à vista. Não há nenhuma pessoa calorosa e amável dentro de mim. Sob o meu frio exterior, assim que conseguem quebrar o gelo, só encontram água fria”. 

E, no entanto, cá para mim, foi um romântico dos antigos. Em plena adolescência, no colégio de St. Albans, vive a sua primeira grande paixão, um rapazinho chamado Jimmie Trimble que viria a morrer pouco tempo depois, em Iwo Jima, durante a Segunda Guerra Mundial, selando assim o seu coração. 


A Jimmie dedicou o livro “A Cidade e o Pilar”, escrito entre 1947 e 49, quando viveu na cidade guatemalteca de Antigua. A história de um jovem atlético que, aos poucos, vai descobrindo a sua homossexualidade. Lido hoje, é algo quase discreto. Mas à época protagonizou uma escandaleira que lhe complicou muito a vida e que, embora o seu lado de durão sem papas na língua não gostasse de admitir, o terá tornado no homem despudorado e desprendido que se gabaria mais tarde de, com apenas 25 anos, já ter tido relações sexuais com mais de mil homens e mulheres. 

Ainda assim, lá está a minha teoria, Gore Vidal era homem de um só homem. Durante os últimos 53 anos de vida teve como companheiro Howard Austen, de quem só se separaria quando este morreu em 2003. O segredo de tão longa relação? Segundo o “New York Times” de hoje mesmo, Vidal costumava garantir que estava no facto de nunca terem dormido juntos. 


Em Setembro de 1969, em artigo na revista “Esquire”, Vidal escreveu isto – "Para começar, todos somos bissexuais. Trata-se de um facto da nossa natureza. E todos somos sensíveis a estímulos sexuais do nosso próprio sexo bem como do sexo oposto. Certas sociedades, em certas ocasiões, sobretudo pelo interesse em manter o abastecimento de bebés, têm desencorajado a homossexualidade. Outras sociedades, especialmente as militaristas, têm-na exaltado. Mas, independentemente de tabus tribais, a homossexualidade é uma constante da condição humana e não é doença, nem pecado, nem crime...  Apesar dos melhores esforços das nossas tribos de puritanos para que o seja. A homossexualidade é tão natural como a heterossexualidade. Reparem que eu utilizo 'natural' e não 'normal'”.


De tudo isto e de tanto mais, Gore Vidal fala em “Palimpsesto”, o livro de memórias primeiro publicado em 1995 – e de que, in memoriam, aqui vos deixamos o início, numa tradução para português gentilmente cedida pela Maria João Afonso, e decerto a editar em breve pela Casa das Letras. 

“PALIMPSESTO

Uma teia de mentiras? Poderá existir título mais convincentemente adequado para umas memórias? Em especial se quem recorda o seu passado se refere não tão tanto às suas próprias mentiras como às de terceiros e, se me é permitida a imodéstia da vanglória, eu andei mano a mano com alguns dos maiores mentirosos do nosso tempo. Mas também fui romancista numa época em que a linha entre a ficção e os factos se diluiu bastante quando, com o maior sangue frio, o «romancista» se sentiu livre para inventar coisas para as pessoas reais fazerem na página. Estive ainda envolvido na política, no teatro e no cinema, três mundos em que nunca ninguém está sob juramento – até ser acusado, claro – caso em que aquele que sofre a queda acaba por criar a teia de mentiras final, com frequência mais do que uma vez, como aconteceu com o incomparável R. M. Nixon.

Escrevo isto em 26 de Agosto de 1994 – de mau humor, evitando uma tentadora mentira de conveniência; uma vez que por regra gosto de manter o presente no presente, quis sublinhar que hoje, depois do Verão mais quente de sempre no sul da Itália, a vaga de calor cedeu. Mas não foi hoje, foi ontem que o tempo mudou. Da nossa casa aqui em Ravello, num penhasco por cima do Golfo de Salerno, assistimos a uma trovoada a oeste e outra a leste e levantou-se um vento súbito que encheu a casa de folhas secas.
Pela primeira vez em dois meses, sinto-me fresco e capaz de encarar o que escrevi ao longo dos últimos dois anos: uma descrição dos primeiros trinta e cinco anos da minha vida vista vinte e nove anos mais tarde. Acabei de reparar que nesta teia – não, não! neste registo de eternas verdades e veracidades, como o definiu famosa e tão tipicamente William Faulkner – no Verão passado, o calor começou no dia 21 de Agosto, cinco dia mais cedo do que este ano.
” 

Gore Vidal (1925–2012)

a-ver-livros: no mundo de Alice com derbyblue

Estou a ler o poema que ela lê,
nua,
o meu pêlo sentindo a sua pele

Nem sonha que eu sonho
levá-la pelos telhados
a ver a lua

Ronronar-lhe ao ouvido
pedacinhos do poema 
que decoro agora
 
Rasgar-lhe a palavra 
final 
no ombro esquerdo



* para conhecer melhor o ilustrador brasileiro conhecido como derbyblue - na verdade Francisco José de Souto Leite, da cidade de João Pessoa - é só seguir o link para a sua galeria Flickr

Poema à noitinha... Carlos Drummond de Andrade

Briga

«Brigar é simples.
Chame-se covarde ao contendor.
Ele olhe nos olhos e:
— Repete.
Repita-se: — Covarde.
Então ele recite, resoluto:
— Puta que pariu.
— A sua, fio da puta.

Cessem as palavras. Bofetão.
Articulem-se os dois no braço a braço.
Soco de lá soco de cá
pontapé calço rasteira
unha, dente, sérios, aplicados
na honra de lutar:
um corpo só de dois que se embolaram.

Dure o tempo que durar
a resistência de um.
Não desdoura apanhar, mas que se cumpra
a lei da briga, simples.»


*Drummond de Andrade é um dos poetas mais requisitados do blog. Não será, certamente, por acaso...

terça-feira, 31 de julho de 2012

1º Parágrafo: Disse-me um Adivinho


A vida oferece-nos sempre uma boa oportunidade. O problema é sabermos reconhecê-la, o que nem sempre é fácil. A minha, por exemplo tinha todo o ar de ser uma maldição. “Cuidado! No ano de 1993 corres um grande risco de morrer. Nesse ano, não andes de avião. Não andes nunca”, dissera-me um adivinho.


* Tradução de Margarida Periquito
* Uma viagem pelos mistérios do extremo oriente
* Na contra-capa: “O mundo é um imenso livro do qual aqueles que nunca saem de casa lêem apenas uma página.” Agostinho de Hipona



a-ver-livros: no metro com Jean-Michel Blanc

Esquece o calor. Esquece o cheiro.
Esquece o tipo do lado e o amuo do casalinho.
Esquece a conversa de telemóvel que vai num dos bancos mais atrás
em registo peixeira.
Esquece que é o trabalho que te espera, algures,
no final da linha. 

Esquece tudo. Tens um livro na mão.
Aproveita.


* para conhecer melhor o pintor francês Jean-Michel Blanc é só seguir o link www.artpastel.com

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Tomas Tranströmer o Nobel que veio do frio começa a chegar a Portugal


Demorou a chegar a Portugal mas já anda aí nas livrarias. "50 Poemas", de Tomas Tranströmer, que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 2011. Agora publicado pela Relógio D'Água, com tradução e nota introdutória de Alexandre Pastor. Para Setembro, a Sextante lançará o único livro em prosa de Tranströmer: "As Minhas Memórias Observam-me", com prefácio de Pedro Mexia.

A poesia de Tranströmer tem uma grande influência na Suécia e em todo o mundo, sendo ele o poeta sueco mais traduzido: os seus poemas estão traduzidos em mais de trinta línguas. Poeta, tradutor e psicólogo, iniciou-se na poesia aos 23 anos de idade. O seu primeiro livro intitulava-se 17 dikter (17 poemas). A maior parte da sua obra é escrita em verso livre, embora também tenha feito experiências com linguagem métrica. Na sua escrita nota-se uma certa disciplina horaciana.

Vive presentemente numa ilha, longe dos olhares do mundo e dos meios de comunicação. Foi psicólogo de profissão até 1990. Redigiu cerca de uma quinzena de obras numa longa carreira dedicada à escrita.

Em 1990 foi vítima de um acidente vascular cerebral que o deixou em parte afásico e hemiplégico. Continuou a escrever e publicou três obras, como "O Grande Enigma: 45 Haikus".

Pode ler as primeiras páginas do livro a partir daqui

1º Parágrafo: A Peste


Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em 194..., em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual. À primeira vista, Orão é, com efeito, uma cidade vulgar, que não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.



* Tradução de Ersílio Cardoso
* Camus foi Prémio Nobel em 1957.
* E tanto mais a dizer, nasceu em Mondovi, na Argélia, em 1913, de pai francês e mãe espanhola, morreu, em 1960, num acidente de automóvel, regressava a Paris. Militou na resistência francesa, foi jornalista, escritor, ensaísta, dramaturgo, filósofo, a sua dissertação de mestrado foi sobre neoplatonismo, a tese de doutoramento sobre Santo Agostinho.


a-ver-livros: ao meio dia, que também é uma boa hora, com Carine Brancowitz

O privilégio de dormir a uma segunda-feira de manhã?
A necessidade?
Será a culpa do Henry Miller que ocupou a noite?
Ou apenas se sonhou com o Trópico de Cancer?



* para conhecer melhor a ilustradora francesa Carine Brancowitz e os seus trabalhos feitos apenas com esferográfica é só seguir o link carinebrancowitz.com

domingo, 29 de julho de 2012

Poesia é redenção?

 (AO DOMINGO) LETRAS FOCADAS
 
“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”
 
Hoje, as Letras são conjugadas pela pena do escritor Emílio Miranda em forma de Poesia acompanhadas de Olhares meus.
 
Poesia é redenção?
 
 I
 
Nos lugares assinalados
Com a poalha dos teus passos
Faço um poema triste.
É bom que não te esqueças
De todos os invernos passados.
 
II
 
Pode haver tantas batalhas perdidas
Que acabes por duvidar que é possível vencer a guerra
Mas a vida é pela sua natureza
Uma sucessão de batalhas
E ninguém saberá jamais como termina
Por isso enquanto fores vivo
É sempre possível assinar a paz
Para começar uma guerra nova
Tantas vezes quantas achares
Que é possível vencer.
Haverá muito quem pense que és um derrotado
Ou que a desistência define a tua covardia
Mas ninguém poderá afirmar
Que conhece a tua vontade
Mais do que conhece a dos deuses.
Ou tão pouco que eles representem uma verdade
Mais válida do que a tua.


Foto by emefeelingflashes

III
 
Entre nada e qualquer coisa, um pensamento apenas: tu!
E é com este pensamento que se constrói um mundo pouco maior do que este
Onde os dias se sucedem entre poemas vãos.
 
IV
 
A poesia é um alimento tão nutritivo
Quanto um prato de feijão ou um naco de carne
O importante é que não te empanturres
Ao ponto de ficares tão gordo que não atravesses o buraco de uma agulha
Lembra-te que se é fácil para um camelo passar por um
Mais fácil deverá ser que tu o faças.
Qualquer buraco de agulha
Pode ser uma entrada para o céu.
E lá chegado, não estranhes que haja outros camelos
Espantados por terem entrado
Há muitos a tentarem todos os dias
E muitos mais que entrarão!

V
 
A vida é uma incógnita, em todas as suas dimensões.
Se mais amares, mais amado serás? Se mais cruel, mais lembrado?
O mundo é um lugar estranho, povoado por gente sem paradigmas.
Por isso todos são plausíveis, e para ti haverá também um legado
Anunciando caminhos e soluções.
Mas o mais certo é que sejas tu a desvendar
Entre a muita terra e o muito mar
O lugar de paz ou de guerra onde serás nómada ou sedentário,
Pragmático ou sonhador
Vidente ou evidente. Ou, quem sabe, mais um entre tantos…


Foto by emefeelingflashes

VI
 
Melhor seria que o alimento do corpo
Fosse tão etéreo como aquele que te sacia o espírito
Duas ou três palavras ditas ao crepúsculo
Ou quando despertas de uma noite sem sono
Tão reparado como se no lugar do coração tivesses um berço calmo
Onde dormisse a inocência que tinhas quando nasceste;
Duas ou três palavras ditas ou tão-somente pensadas
-­ Sussurradas para dentro do pensamento, leia-se –;
Duas ou três palavras inventadas
E transformadas em claríssimo verso.

VII
Já pensaste como são inconvenientes os dias em que acontecem mais coisas do que as que querias?
O quanto melhor seria se pudesses dizer: basta!
Mas isso seria como fazer chover quando faz sol. Com esse poder serias melhor ou pior?
E o mundo à tua volta teria mais luz?


Foto by emefeelingflashes

VIII

Talvez a poesia não seja redenção
Nem sequer música para o teu espírito
Mas pode bem ser o fio com que teces os teus pensamentos,
Ou antes o tecido que pacientemente transformas em fio:
Todo o poeta é um alfaiate teimoso…

IX

É mais importante o poema ou o arado?
Melhor será que o comparado seja comparável
Ou que o poeta saiba ligar o que parece desligado.
E então, o poema transforma-se em chão e o arado pode cumprir a sua função
Como instrumento que faz brotar a palavra, liberta de significados adversos.

X
 
Toda a seara tem um semeador,
Mas nem todo o semeador é dono de uma.
Em tudo há poesia, até num mau poema, mas não se julgue que todas as verdades são apaziguadoras. Há muitos paraísos fundados em mentiras!

XI
 
Bom, talvez um poema não seja tão importante
Talvez mais tarde ou mais cedo possa existir lucidez suficiente
Para discernir entre tantas esta questão
Incógnita revestida de presunção que acompanha o pretenso poeta.

XII

Perguntas: O que sou com o que faço com as palavras?
Um semeador ou um arado?
Quando escrevo, arranco o que estava semeado
Ou semeio versos?
Sou um poeta ou um mentiroso?

XIII
 
E perguntas:
A vida é uma verdade cheia de mentiras
Uma mentira cheia de verdades,
Ou uma interrogação cuja resposta
Ignoras?
E o amor? Sabes do que falas quando
Falas de amor?
Ou trata-se de mais uma incógnita
Acerca da qual divagas?
Há muito quem julgue saber
Há muito quem erre sabendo
Há muito quem procure errando…
E tu: erras quando?

XIV

As sombras nascem à janela com o sol oblíquo
E espreitam dentro dela, sem pudor
Do ventre à mão aberta,
Enquanto uma voz
Sussurra:
Li
Berta
Te
Do teu torpor!
Liberta-te do suor
Que em vão te percorre!
O amor altera o sabor
Do que a tua alma devora
E a voz que por dentro e por fora
Te murmura:
Não fugirás à tua sorte
Seja na vida seja na morte!
Ignora-a
E recomeça agora!

XV

Ah, a lembrança é um excelente instrumento de sobrevivência…

Foto by emefeelingflashes

Os escritores e os gatos... Uma história fotografada

Alberto Moravia

Escritores e gatos. Gatos e Escritores. Hoje estendo-vos o convite: um site que se dedica exclusivamente a reunir fotografias ou quadros antigos de escritores e os seus gatos. São páginas atrás de páginas. Grandes nomes da Literatura Mundial e os seus animais de estimação.

Deixo-vos com alguns exemplos. Anotem: http://writersandkitties.tumblr.com

Julio Cortázar

 W.H.Auden

*Esta posta só seria possível graças à partilha no facebook entre a Cláudia Diogo e a M.J. Vidigal.
                                   

a-ver-livros: Isca Greenfield-Sanders para o brunch

Há coisas assim. 
Que me surpreendem mesmo quando não me espantam.

Como raio uma nova-iorquina recebe como nome de baptismo Isca?
Diz que vem de Iscah, de origem hebraica, filha de Haran, irmã de Lot. 
E significa observadora.
O equivalente judaico a Sarai, ou Sarah, ou Sara, cujos netos fundaram as doze tribos de Israel e a quem chamam Mãe de Muitas Nações. 
O círculo, porque há sempre um círculo, fecha-se quando vos digo que este quadro de 2007 se chama "Mommy and Peanuts". Leia-se, retrata a mãe da pintora - da Isca, pois -  e o cão da família.

Noutro dia, se me lembrar, falo-vos de Isca Silurum ou Isca Augusta, uma antiga fortaleza romana que, na prática, é hoje a aldeia de Caerleon, na Gales do Sul.Não que tenha alguma coisa a ver. Isca, aqui no britónico, significa água. Para o caso, o rio Usk. 

E assim, fluindo na informação, como um curso de água, se chega ao brunch de domingo. Como eu gosto.



* para conhecer melhor a pintora nova-iorquina Isca Greenfield-Sanders é só seguir o link www.iscags.com ou através da galeria www.berggruen.com/artists/isca-greenfield-sanders