RSM: Como foi o processo de concepção deste
livro? O tempo de escrita? A história respeitou uma esquadria pré-definida ou
foi-se fazendo a si mesma?
Sou, por
definição, uma coleccionadora, o que significa que não faço resumos de ideias,
a dita esquadria seria, para mim, limitativa. O mais interessante é ter uma
ideia e deixar levar a escrita por onde quiser. Muitas vezes estou convencida
de que o caminho para um personagem é de um contorno específico e depois, no
processo de escrita, percebo que não é nada disso. Como se os personagens
tivessem - e têm - um destino que não controlo. O processo de escrita começa
por ser, assim, mental e quando começo a escrever é quase de rajada. Como se
moldasse um esqueleto. A parte pior e mais morosa vem a seguir: rever, rescrever,
cortar. Corto com uma facilidade enorme e não fico apegada a nada, mesmo que
sejam duzentas páginas. No caso deste livro cortei 204 sem qualquer receio.
Precisava do livro no osso, como diria Cardoso Pires. A mensagem era o mais
importante. É um livro sobre a importância de outros, da memória, dos amigos e
dos livros como arma de salvação. O mais curioso é perceber que cada leitor se
apropria dos livros e, em consequência, quando entrego um original deixa de ser
meu.

RSM: Chamam-lhe “uma peregrinação
futurista” parece-te uma definição que lhe assenta bem?
Mais uma vez,
nas definições e formas de entender o texto e sub texto cada leitor é soberano.
Gosto da ideia de peregrinação por estar aliada a um conceito de esperança e,
apesar da moldura da narrativa ser um desastre por definir, nunca se perde a
vontade de sobreviver. Nesse aspecto também somos animais. O futuro no livro é
uma metáfora, em especial se considerarmos o que aconteceu no Japão e o facto
de termos uma central nuclear a 150 km da nossa fronteira. Precisava de um
espaço no tempo, não longe do que vivemos, para ter um acidente que nos levasse
ao básico em vez desta vertigem tenebrosa da tecnologia que nos afasta, que faz
de nós menos humanos em alguns aspectos e mais introvertidos em outros. Não sou
uma info excluída e tão pouco uma fundamentalista, no entanto é fácil de
perceber que a possibilidade de conversar olhos nos olhos, medindo o tom, sendo
franco nas palavras, não é uma prática dos dias de hoje. O sucesso das redes
sociais e dos SMS está também aí, sendo ferramentas úteis, sem dúvida, mas que
dizem muito sobre a forma disfarçada como convivemos.
RSM: “Será
sempre pior que Guernica, pior que o nazismo, que os genocídios africanos, que
todos os 11 de Setembro, que a Guiné e o Darfur juntos, pior que todas as
ditaduras derrubadas ou por derrubar. Prepara-te filha, ainda será no teu tempo
de vida.” In Por Este Mundo Acima
Como podemos preparar-nos para um livro
assim?
De preferência
sem preconceitos. Esta citação dá-nos o lado trágico que faz, como dito,
moldura à narrativa, mas não é um livro sobre uma catástrofe tão somente. É,
como é tudo o que escrevi até hoje, mais um livro sobre pessoas. As pessoas são
um material incrível em todos os aspectos e são plurais, desmultiplicam-se em
camadas de coerência e incoerência, de medo e coragem.
RSM: Qual a tua personagem preferida?
Porquê?
O Eduardo,
personagem principal, é o fio condutor de tudo. Gosto dele e sonhei muitas
vezes como conversaria sobre este ou outro assunto. A minha preferida talvez
seja a Sofia, amiga de Eduardo, que ele recorda, pela sua fragilidade e
segredos.
RSM: Depois do último ponto final, o
trabalho de revisão é-te penoso e moroso, ou, pelo contrário é-te fácil,
agradável e uma convivência necessária?
É-me penoso
depois de estar na editora, as provas, a revisão. Enquanto está comigo tudo faz
parte do processo de escrita, até ler alto por saber que todos os livros têm um
som próprio. A convivência com as personagens é longa, podem ser quatro anos e,
por isso, passam a fazer parte de mim. Quando entrego à editora preciso,
confesso, de uma certa distância. Quando o livro sai, muitas vezes, um ano
depois, há muita coisa de que já não me lembro. Estou num outro processo e o
espaço mental foi ocupado por novas peças que ando a coleccionar.
RSM:
“Pedro, Pedrinho és uma pedra boa de carregar.” In Por Este Mundo Acima
Quais são as tuas pedras boas de carregar?
Boas? A minha
família. São pedras que podem, porventura, ser pesadas numa fase ou outra, mas
são sólidas no exercício do amor e, consequentemente, têm um peso relativo. Sem
eles, os homens da minha vida, não sei se teria força para escrever e publicar.
Escrever é algo que está em mim. Publicar significa um número de coisas que me
são, à partida, desagradáveis, como a exposição ou até mesmo a incompreensão.
Um dia, há uns anos, escrevi um conto que foi publicado numa antologia. Era
sobre Deus e uma potencial sala de informática através da qual organizava a
vida das pessoas. Um crítico resumiu o meu trabalho assim: e PR escreve sobre
Deus que, como se sabe, nunca dá resultado. Mais tarde, fui informada de que o
mesmo crítico é do Opus Dei, tudo bem. Eu também sou crente e não faria uma
crítica tão básica.
RSM: Por este mundo acima, foi editado em
2011, um ano após a edição, que balanço fazes deste trabalho?
Eu sou de
letras, não sei balançar e já tenho a cabeça numa outra história. Posso dizer
que este livro foi, provavelmente, o que teve maior impacto e será publicado
este ano no Brasil, através da Leya Brasil.
RSM: Sei que consideras que há livros
capazes de mudar a vida de quem lê? Este livro mudou a tua vida?
Todos os livros
que escrevo me mudam, tal como os que leio e me tocam. Um livro é uma
interrogação e, se conseguires, chegar à resposta, há algo que se aprende e fica
connosco, além de ser sempre uma forma de evolução no processo de escrita de
cada um.
RSM: Pergunta para queijo: Quais os livros
que mudaram a tua vida?
A fera na selva
de Henry James, Alexis ou o tratado do vão combate (aliás o meu blog chama-se
http://vaocombate.blogs.sapo.pt/ por isso), Nossa senhora de mim de Maria Teresa Horta, Vale da Paixão de Lídia
Jorge, uma série considerável de livros de Agustina Bessa-Luís... E depois? Há
Kundera, Roth, Tolstoi, Yourcenar, Duras, Camus, Orsenna, Tabucchi... É impossível
preencher o queijo!
RSM: És paralelamente editora da revista
Egoísta. Como é essa aventura?
É um desafio com
mais de uma década, fazer uma revista temática para curtas ficções e novos
artistas não é fácil, mas sempre um desafio. É preciso sublinhar que a Egoísta
é um veículo de comunicação do Grupo Estoril-Sol, uma empresa cujas iniciativas
ao nível cultural são dignas de nota. É importante ainda dizer que a revista se
faz no atelier 004, www.004.pt, e temos uma equipa de luxo. Os prémios
que ganhámos, dentro e fora de portas, são um alento e, ao mesmo tempo,
aconteceram coisas que nunca foram previstas como o facto de a Egoísta ser
seleccionada para estar no Louvre, há quatro anos, como exemplo de qualidade
editorial e design.
RSM: “Sobreviver
ocupa demasiado tempo.” In Por Este Mundo Acima
Consideras-te uma sobrevivente?
Sem dúvida. Sou
uma sobrevivente de muitas coisas, como todos, ciente de que tenho a sorte ou o
privilégio de me resolver através da escrita.
Obrigada.