sábado, 23 de fevereiro de 2013

O poema do Grandolado Zink

Rui Zink tinha um poema, apesar de não o ser. Foi algo assim que atirou para a 5.ª mesa do Correntes d'Escrita, esta semana - e, em seguida, leu o que trazia preparado no telemóvel para uma plateia cada vez mais entusiasta. 

No final, um verbo novo. Queria ser 'Grandolado'. Intrigando-se por que é que tipos que nem sabem a canção são interrompidos, exigiu ser interrompido pela Grândola - e a sala ergueu-se para cantar para ele, com ele!

Que poema seria que desencadeou esta onda? Pedi-o ao Rui e ele teve a amabilidade de mo enviar. Ei-lo.
Mais palavras para quê?

"
Nunca tive ilusões
Os cães ladram e a caravana passa
E os cães somos nós
A caravana é relvas isaltino alberto joão
Os cães somos nós
Nunca tive ilusões os cães ladram e
A caravana passa
A caravana ângelo correia jorge coelho
costa freire tudo em beleza
Os cães ladram e a caravana ganha
Nunca tive ilusões
E as que tive perdi-as
Os cães ladram e os cães somos nós
E a caravana passa e a caravana é cavaco
dias loureiro o homem do banco que foi ministro
O outro homem do banco que foi ministro
Mais o homem do banco que vai ser ministro
E o outro que fala pelo ministro e ou e o outro
que dá voz ao ministro
Mais o outro que dá vez ao ministro
Mais o outro o outro e também o
É uma alegria
Os cães ladram e a caravana passa
Passa
E passa
E passa
Não se farta de passar
Porque é caravana e é próprio das caravanas passarem
Nunca tive ilusões
E as que tive perdi-as
Os cães ladram ladram ladram
A caravana passa passa passa
Nunca tive ilusões
Mas (e até tem a sua graça) a verdade é que
não me canso de ladrar
"



Um livro é uma rosa, por Emílio Miranda

Foto: Cláudia Miranda


Um livro é uma rosa

I
Tenho um problema com os livros
Quero t (l) ê-los todos
Mesmo os que desconheço
Sobretudo os que desconheço

Só quando os leio
Sei que nem todos falam do que gosto
Ou dizem da forma que gosto
Mesmo o que não aprecio;
Essa, já uma maneira de gostar deles:
Dizerem de forma que aprecie
Coisas de que não gosto…

Consegues compreender isto?


II
O pó dos livros é mais inteligente 
Do que o pó dos móveis?

Se não pudesse ler
Tornar-me-ia dependente deste pó?

Como poderia consumi-lo?
Em chá?
Ou seria melhor snifá-lo?

III
Tenho o vício dos livros
Pergunto-me se também sou doente

Procuro e receio, simultaneamente, a cura…
Alivio a minha doença
Lendo!
Mas no final de cada leitura
Acho-me mais doente!

IV
Percorro livrarias e alfarrabistas
E não sei onde os livros são melhores

Se os mais velhos sabem mais
Se fico mais velho depois de lê-los.


Gosto de livros
Seja onde for
Seja onde for que os encontre.

V
Há livros perdidos
Em que nos descobrimos
Não sei se encontrá-los
É encontrar-me neles…

Todos os dias descubro que as imperfeições
Não são uma mera constatação
Mas um desafio

O livro perfeito é o que tento escrever
Dia após dia…

VI
Do primeiro livro que li
Lembro o vício
É o que lembro todos
Os dias
Em cada livro que leio…

VII

Escrevo com a língua de fora
Quando as palavras são difíceis;
E às vezes para lê-las
Tenho que as humedecer.
Isso acontece
Quando foi mais difícil escrevê-las
Esqueço-me dos sentidos
Quando são passadas para o papel…
Não sei se são os livros que são difíceis
Se sou eu.

VIII
Há livros que choram
E onde confundimos as nossas tristezas.
Há livros que riem
E onde nos perdemos
Lugares de palavras
Acesas em desejos!

IX
Há livros que nos inspiram
E escrevemos outros livros
Tudo é novo e velho
Simultaneamente…

Emílio Miranda
*Depois de ler O Livro do Ano de Afonso Cruz, num sopro... Emílio Miranda escreveu este poema - também num sopro.

Uma outra forma de ler Bukowski: "The Secret of My Endurance"

The Secret of My Endurance: lido pelo próprio Bukowski.



The secret of my endurance 

Charles Bukowski


I still get letters in the mail, mostly from cracked-up
men in tiny rooms with factory jobs or no jobs who are
living with whores or no woman at all, no hope, just
booze and madness.
Most of their letters are on lined paper
written with an unsharpened pencil
or in ink
in tiny handwriting that slants to the
left 

and the paper is often torn
usually halfway up the middle
and they say they like my stuff,
I've written from where it's at, and
they recognize that. truly, I've given them a second
chance, some recognition of where they're at. 

it's true, I was there, worse off than most
of them.
but I wonder if they realize where their letters
arrive?
well, they are dropped into a box
behind a six-foot hedge with a long driveway leading
to a two car garage, rose garden, fruit trees,
animals, a beautiful woman, mortgage about half
paid after a year, a new car,
fireplace and a green rug two-inches thick
with a young boy to write my stuff now,
I keep him in a ten-foot cage with a
typewriter, feed him whiskey and raw whores,
belt him pretty good three or four times
a week.
I'm 59 years old now and the critics say
my stuff is getting better than ever. 

Grandolados nas Correntes. (en)Cravados na Póvoa

Foto: Pedro Ferreira

5ª Mesa do Correntes D'Escritas de 2013, prometemos passar por lá e cumprimos. Eu e o Rodrigo Ferrão fomos participar nesta mesa. Estava dado o mote, "desse país arranquei todos os cravos". Houve espaço e tempo para todas as abordagens, mesmo as mais inesperadas.

Ignacio Martinez de Pisón numa visão da historiografia da actualidade do Estado Espanhol, república e monarquia e o franquismo pelo meio, da bandeira tricolor ao brasão e as identidades construídas.

Luis Carlos Patraquim a partir de uma metáfora mote de um poema do Herberto Helder. Grândola, a primeira da noite. Revisitar a simbologia do cravo.Os discursos das finanças e as reservas, a do ouro e a reserva povo. A palavra e a usurpação dos significados das mesmas.

Maria do Rosário Pedreira do espirro das suas alergias às flores. Partimos numa viagem histórica conduzida pela evolução e crescimento de uma familia em tempos politicos e históricos, a sua própria familia. Um execelente texto tremendamente bem lido.

Nuno Camarneiro explicou a sua visão de um Portugal, o Portugal de todos os dias. Sarcasmos históricos e a relação amor ódio que existe de quem é deste país. O quotidiano da queixa e do cá se vai andando e lá fora... lá fora não é assim! O reconhecimento que só vem depois do abandono.

Rui Zink, a cereja no topo do bolo. Trespassando um pouco de todos os outros discursos numa intervenção humorada que mais palmas tirou do público. Depois do chorrilho de critica, humor e capacidade de saber fazer rir e saber rir do que temos. Da imortalidade linguistica dos tempos históricos conseguiu sacar a toda a plateia uma Grândola.

Na Póvoa de Varzim nas Correntes d Escritas, a Grândola que se tem cantado pelo país ganhou novas letras, novas palavras. São tantos os/as autoras/es que regam os cravos para florescerem daqui a pouco num Abril que se quer para breve. 


Esta mesa foi moderada pelo escritor Carlos Quiroga.

Daqui a pouco há mais...

O que Sempre Soube das Mulheres - Zink para matar a noite

Foto: Pedro Ferreira 
(Correntes d'Escritas - Póvoa de Varzim)
Da esquerda para a direita: Rui Zink, Maria do Rosário Pedreira, Carlos Quiroga, Nuno Camarneiro, Luis Carlos Patraquim e Ignácio Martínez de Pisón


O que Sempre Soube das Mulheres

Tratam-nos mal, mas querem que as tratemos bem. Apaixonam-se por serial-killers e depois queixam-se de que nem um postalinho. Escrevem que se desunham. Fingem acreditar nas nossas mentiras desde que tenhamos graça a pregá-las. Aceitam-nos e toleram-nos porque se acham superiores. São superiores. Não têm o gene da violência, embora seja melhor não as provocarmos. Perdoam facilmente, mas nunca esquecem. Bebem cicuta ao pequeno-almoço e destilam mel ao jantar. Têm uma capacidade de entrega que até dói. São óptimas mães até que os filhos fazem 10 anos, depois perdem o norte. Pelam-se por jogos eróticos, mas com o sexo já depende. Têm dias. Têm noites. Conseguem ser tão calculistas e maldosas como qualquer homem, só que com muito mais nível. Inventaram o telemóvel ao volante. São corajosas e quando se lhes mete uma coisa na cabeça levam tudo à frente. Fazem-se de parvas porque o seguro morreu de velho e estão muito escaldadas. Fazem-se de inocentes e (milagre!) por esse acto de vontade tornam-se mesmo inocentes. Nunca perdem a capacidade de se deslumbrarem. Riem quando estão tristes, choram quando estão felizes. Não compreendem nada. Compreendem tudo. Sabem que o corpo é passageiro. Sabem que na viagem há que tratar bem o passageiro e que o amor é um bom fio condutor. Não são de confiança, mas até a mais infiel das mulheres é mais leal que o mais fiel dos homens. São tramadas. Comem-nos as papas na cabeça, mas depois levam-nos a colher à boca. A única coisa em nós que é para elas um mistério é a jantarada de amigos – elas quando jogam é para ganhar. E é tudo. Ah, não, há ainda mais uma coisa. Acreditam no Amor com A grande mas, para nossa sorte, contentam-se com pouco.

*Rui Zink, in "Jornal Metro"

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

1º Parágrafo: As Mulheres do Meu Pai


Acordei suspenso numa luz oblíqua. Sonhava com Laurentina. Ela conversava com o pai, o qual, vá-se lá saber porquê, tinha a cara do Nelson Mandela. Era o Nelson Mandela, e era o pai dela, e no meu sonho tudo isso parecia absolutamente natural. Estavam sentados ao redor de uma mesa de madeira escura, numa cozinha idêntica em tudo à do meu apartamento na Lapa, em Lisboa. Sonhei também com uma frase. Acontece-me frequentemente. És a frase:
- De quantas verdades se faz uma mentira?


a-ver-livros: o espelho e Felice Casorati

Vê-te ao espelho
pequena
nestas páginas que folheias

Revê-te nua
toda
tu mesma
nas linhas que escrevi
sem saber que eram sobre ti

* para conhecer mais da pintura do italiano Felice Casorati
siga o link weimarart.blogspot.pt/2010/07/felice-casorati

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O que faz um leitor ser um bom leitor?


Mais que um simples acto de ler um texto, a leitura possui diversos graus para atingir um entendimento difícil de mensurar. Muitos escritores, leitores e críticos dissertam sobre essa actividade, porém, cada um de nós pode chegar a uma resposta diferente quando ouvimos a pergunta: “O que significa ser um bom leitor?”

H.P. Lovecraft afirmava que a leitura deveria ser sempre criteriosa, Virginia Woolf sentia pena de quem não lia Shakespeare considerava importante ler os clássicos desde sempre. Enfim, cada leitor possui suas convicções, os seus critérios para escolher uma forma confortável e prazenteira de leitura, por géneros, por escritores, por temas, por assuntos e até por capas, cada um escolhe o livro da forma que este mais lhe provoca o encantamento, a atracção e prazer.

Deixo-vos um desafio/ actividade de Vladimir Nabokov, sobre o que é ser um bom leitor. Ele divulgou esta ideia em diversas palestras que fez nas universidades inglesas, deixando-a sempre em tom de desafio para as plateias de estudantes.

Seleccione quatro respostas para a pergunta: “O que faz um leitor ser um bom leitor?”

1. O leitor deve pertencer a um clube do livro.
2. O leitor deve identificar-se com o herói ou heroína.
3. O leitor deve se concentrar no ângulo económico social.
4. O leitor deve preferir uma história de acção e diálogo a uma história sem esses elementos.
5. O leitor deve ter visto o livro  num filme.
6. O leitor deve ser um autor iniciante.
7. O leitor deve ter imaginação.
8. O leitor deve ter memória.
9. O leitor deve ter um dicionário.
10. O leitor deve ter algum sentido artístico.

Muitos dos alunos de Nabokov responderam com os itens 2, 3 e 4. Porém, para ele, o que realmente faz um bom leitor são os itens 7, 8, 9 e 10. E vocês, quais são as frases que consideram mais importantes?

1º Parágrafo: O Vendedor de Passados


Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espectáculo sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me como se o visse pela primeira vez. A semana passada Félix Ventura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um cão, tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda.


a-ver-livros: a viagem e Anna Bodnar

Esconde-te aqui dentro
o mundo lá fora está mais escuro
do que a história 
que te conto

Esconde-te aqui 
que te levo 
numa viagem especial

* para conhecer mais do trabalho da fotógrafa polaca Anna Bodnar
siga este link www.annabodnar.eu

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Livro do Ano

O Livro do Ano é o título do mais recente trabalho de Afonso Cruz.

Serve este espaço para servir de montra. Esperemos que os leitores fiquem convencidos, porque vale mesmo a pena ler este escritor. Ou acompanhar o seu trabalho de ilustração.

Do livro publicado pela Alfaguara... sei tão pouco. Que pouco é o que vos deixo.


Estas são páginas do diário de uma menina que carrega um jardim na cabeça, atira palavras aos pombos e sabe quanto tempo demora uma sombra a ficar madura. Páginas feitas de memórias, para leitores de todas as idades.

Fica o mistério... Tentemos descobri-lo!


1º Parágrafo: Milagrário Pessoal


As palavras, como os seres vivos, nascem de vocábulos anteriores, desenvolvem-se e fatalmente morrem. As mais afortunadas reproduzem-se. Há-as de índole agreste, cuja simples presença fere e degrada, e outras que de tão amoráveis tudo à sua volta suavizam. Estas iluminam, aquelas confundem. Umas são selvagens, irascíveis, cheiram mal dos pés, fungam e cospem no chão. Outras, logo ao lado, parecem altivas e delicadas orquídeas.



a-ver-livros: natureza e Vladimir Kush

Do amor se fez árvore
e da árvore frutos
e de nós laços

e um dia pó e sementes
para outras sombras
e novas flores

* para conhecer mais da pintura do russo Vladimir Kush
basta seguir o link vladimirkush.com

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Poema à noitinha... António Mega Ferreira

Esquece-te de Mim, Amor

Esquece-te de mim, Amor, 
das delícias que vivemos
na penumbra daquela casa,
Esquece-te.
Faz por esquecer
o momento em que chegámos,
assim como eu esqueço
que partiste,
mal chegámos,
para te esqueceres de mim,
esquecido já
de alguma vez
termos chegado.


*António Mega Ferreira, in Os Princípios do Fim - 

Não é isto que a maioria dos livros procura? Uma boa história?

Uma animação que trata um dos assuntos mais estudados pela emoção humana. Caso para dizer: Não é isto que a maioria dos livros procura? Uma boa história?


O Rapaz do Papel (Paperman, no original) é uma animação da Disney realizada por John Kahrs e nomeada para os Óscares. Escrita por Clio Chiang e Kendelle Hoyer, conta com as participações de Jeff Turley, Kari Wahlgren e do próprio realizador.

1º Parágrafo: Barroco Tropical


Contei os segundos entre o instante do relâmpago e do trovão – um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Depois multipliquei por trezentos e quarenta, a velocidade do som em metros por segundo, para calcular a distância a que caíra o primeiro raio: dois quilómetros, trezentos e oitenta metros. Calculei o segundo, o terceiro, o quarto. A tempestade avançava veloz na nossa direcção. Soube onde iria cair o quinto raio um instante antes que o céu se abrisse.


a-ver-livros: pressa e Mar Hernandez

Porquê a pressa de florir
se as lágrimas do inverno
vão destruir-te essa beleza
precipitada

Para quê a ânsia
de abrir os olhos 

ou almejar o perfume
antes do tempo

Se tudo é compassado
regular e vagaroso
e a Primavera não se apressa
nem as andorinhas

* para conhecer mais do trabalho da ilustradora espanhola Mar Hernández
siga o link www.malotaprojects.com/studio

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Nem só de livros vivemos nós e nem só de cinema vive o Fantasporto


Mais um ano e não poderíamos faltar em mais um grande evento. O cinema aos poucos vai fazendo também parte deste blogue de livros e literatura, a desculpa é claro, os livros que passam a filme e a forma como este dois mundos se cruzam.

Costumam andar por aqui na rubrica "Livros que deram filme", o Fantasporto passou por aqui também nessa rubrica e no lançamento do livro promovido pela organização do Fantas. Uma compilação de contos do fantástico, terror e ficção cientifica que não deixamos passar ao lado.

Este ano voltamos, porque vale sempre voltar ao que tem qualidade e que ainda consegue sobreviver neste país em que sucessivos governos viram costas à cultura e ao norte.

A 33ª edição do Fantasporto, o maior festival de Portugal (segundo a revista Variety), está a chegar de 25 de Fevereiro a 10 de Março. A semana de 1 a 9 de Março é dedicada às competições internacionais, como habitualmente.

Com um programa muito rico onde serão apresentados os filmes mais recentes nas três competições, o Fantasporto conta ainda com retrospectivas e homenagens várias.
A edição de 2013 vai celebrar oficialmente o novo cinema do mundo mas também Michael Powell, o celebrado autor de tantas obras-primas do cinema como “The Red Shoes” (1948) e As Estrelas do Cinema Francês, em toda a beleza através dos rostos dos seus actores e actrizes.

O Programa Especial 2013 será de cruzamento entre o Cinema e a Literatura. Tudo não esquecendo a curta metragem no Fantas in Shorts.

1º Parágrafo: Teoria Geral do Esquecimento


Ludovica nunca gostou de enfrentar o céu. Em criança, já a atormentava um horror em espaços abertos. Sentia-se, ao sair de casa, frágil e vulnerável, como uma tartaruga a quem tivessem arrancado a carapaça. Muito pequena, seis, sete anos, recusava-se a ir para a escola sem a protecção de um guarda-chuva negro, enorme, fosse qual fosse o estado do tempo. nem a irritação dos pais, nem a troça cruel das outras crianças a demoviam. Mais tarde, melhorou. Até que aconteceu aquilo a que ela chamava O Acidente e passou a olhar para esse pavor primordial como uma premonição.


a-ver-livros: a falta e Olimpia Zagnoli

A água das chuvas
nos charcos do chão
O cheiro ao café
ali no fogão


O espaço vazio
dentro da mão
a que falta a tua mão,
meu irmão

* para conhecer mais sobre a ilustradora italiana Olimpia Zagnoli
siga o link www.olimpiazagnoli.com

domingo, 17 de fevereiro de 2013

a-ver-outros-livros no Metro: David Mourão-Ferreira

Anda-se uns passos mais na estação Aeroporto do Metro de Lisboa e lá está também David Mourão-Ferreira. O cachimbo, o dedo no ar, a postura que o cartoonista António tão bem registou no mármore. Quase conseguimos ouvi-lo, lendo do seu livro "Um Amor Feliz":

"(...) a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionado, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem outra mais disposta a por amor ser fecundada.
Como se pode interpretar de outro modo esse velho lugar-comum de ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro? Só se em todos os casos se tratar de grandes e inevitáveis actos de amor: com a Mulher, com a Terra, com a Língua. Mas de plantar árvores e ter filhos haverá sempre muita gente que se encarregue. De destruir árvores também; de estragar filhos igualmente. Em compensação, um livro, um livro que viva, multiplicado, durante alguns anos ou alguns séculos, e que depois vá morrendo, sem ninguém dar por isso, mas nunca de uma só vez, até ser enterrado na maior discrição ou até se ver de súbito renascido, inesperadamente ressuscitado, um livro com semelhante destino - luminoso por mais obscuro, obscuro por mais luminoso -, isto é que foi sempre o que me empolgou
."

David Mourão-Ferreira (Lisboa, 24 fevereiro 1927 - Lisboa, 16 junho 1996), poeta, escritor professor e até jornalista, do Diário Popular até à Capital, de que chegou a ser director. Foi ainda secretário de Estado da Cultura no final dos anos 70 - e fica recordado nesse âmbito por ter assinado o despacho que criou a Companhia Nacional de Bailado. 


Mas fica também na memória de Portugal por ter assinado tantos poemas que Amália Rodrigues cantou. "Abandono", que aqui vos deixo, texto e música, foi gravado pela fadista nos anos 60.

"Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar

Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.

Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
"




Uma outra forma de ler Bukowski: "Worst Hangover Story"

Charles Bukowski é nosso guia neste Worst Hangover Story. Vale a pena escutar com atenção.

O fim de "Ah, a Literatura!"

Ah, a Literatura! foi um programa do Canal Q dedicado a livros, literatura e escritores. Desaparecido da grelha do canal, foi convertido numa rubrica no programa Inferno. Pedro Vieira e Catarina Homem Marques falam de livros que lêem e dão opinião. Geralmente de forma divertida e descontraída: nem sempre a literatura tem que ser tratada num tom excepcionalmente erudito ou produzido com palavras caras.

É com pena que vi este programa ser reduzido a uma rubrica. É com pena que vejo a rubrica acabar. 

Nesta semana, a leitura versou sobre os Contos Completos de Lydia Davis (publicado pela Relógio D'Água). Um livro que anotei para a minha lista de compras. Não percam, também, Cláudia: A mulher que ama "Godóte."