sábado, 7 de setembro de 2013

Namora: «Poema Cansado de Certos Momentos»

Poema Cansado de Certos Momentos

Foi-se tudo
como areia fina escoada pelos dedos.
Mãe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do teu mundo de medos.
Meus braços, vê-os, estão gastos
de pedir luz
e de roubar distâncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvário dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida,
dissipando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
ai, mãe, só um louco ou um Messias
estendendo a face de justo

para os homens cuspirem o fel das veias,
só um louco, ou um poeta ou um Cristo
poderá beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os pegos nem as cobras,
verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino.
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem elmos ou gibões,
nem lutei nem vivi:
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
— e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.

Mãe! aqui me tens,
restos de mim.
Guarda-me contigo agora,
que és tu a minha justiça e o exílio
do perdido e do achado.
Guarda-me contigo agora
e adormece-me as feridas
com as guitarras do fado.

Mas caberá no teu regaço
o fantasma do perdido?


*Fernando Namora, in Mar de Sargaços

Abrindo o livro de Dostoiévski - «Noites Brancas»

... Ou foi criado para ficar 
Pelo menos por um instante
Perto do teu coração?

I. Turguénev

PRIMEIRA NOITE

                                                                                                                               Era uma noite divina, uma
noite que só pode haver, querido leitor, quando somos jovens! O céu estava tão estrelado, tão límpido que, olhando para ele, nos podia escapar a pergunta: será possível viver sob este céu gente zangada e injusta? Jovem é também esta pergunta, querido leitor, muito jovem, mas oxalá Deus a mande mais vezes à tua alma!... Por falar de genteinjusta e zangada, não poderia também deixar de me lembrar do meu lindo comportamento durante todo o dia que passou. Desde manhã que uma mágoa esquisita me começou a atormentar. De tão solitário que sou, parece que toda a gente me abandona e renega. Ora, qualquer um tem o direito, claro, de perguntar: mas quem é essa «toda a gente»? Porque eu vivo há oito anos em Petersburgo e ainda não arranjei praticamente nenhum conhecimento. 

*in Noites Brancas, leitura conjunta do blog - mês de Setembro. 

Valter Hugo Mãe está de volta com «Desumanização»

O primeiro livro de Valter Hugo Mãe desde que publica pela Porto Editora chega às livrarias a 15 de Setembro.

«Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.»

Passado nos recônditos fiordes islandeses, este romance é a voz de uma menina diferente que nos conta o que sobra depois de perder a irmã gémea. Um livro de profunda delicadeza em que a disciplina da tristeza não impede uma certa redenção e o permanente assombro da beleza.

O livro mais plástico de Valter Hugo Mãe. Um livro de ver. Uma utopia de purificar a experiência difícil e maravilhosa de se estar vivo.



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Handwritten Manuscript Pages From Classic Novels: Jane Austen

Já alguma vez pensou ver Jane Austen desta forma? Então fique com uma das páginas de Persuasão, escrita pela própria.


Visite o site http://flavorwire.com para encontrar mais. 
Siga o link directo.

Sting: «The Book of my life»

Muitos saberão que Sting tem uma canção sobre livros... ou será sobre a vida? Fiquem com a música e a letra; divirtam-se a descobri-la.


The book of my life

Let me watch by the fire and remember my days
And it may be a trick of the firelight
But the flickering pages that trouble my sight
Is a book I'm afraid to write

It's the book of my days, it's the book of my life
And it's cut like a fruit on the blade of a knife
And it's all there to see as the section reveals
There's some sorrow in every life

If it reads like a puzzle, a wandering maze
Then I won't understand Ã,?'til the end of my days
I'm still forced to remember,
Remember the words of my life

There are promises broken and promises kept
Angry words that were spoken, when I should have wept
There's a chapter of secrets, and words to confess
If I lose everything that I possess
There's a chapter on loss and a ghost who won't die
There's a chapter on love where the ink's never dry
There are sentences served in a prison I built out of lies.

Though the pages are numbered
I can't see where they lead
For the end is a mystery no-one can read
In the book of my life

There's a chapter on fathers a chapter on sons
There are pages of conflicts that nobody won
And the battles you lost and your bitter defeat,
There's a page where we fail to meet

There are tales of good fortune that couldn't be planned
There's a chapter on god that I don't understand
There's a promise of Heaven and Hell but I'm damned if I see

Though the pages are numbered
I can't see where they lead
For the end is a mystery no-one can read
In the book of my life

Now the daylight's returning
And if one sentence is true
All these pages are burning
And all that's left is you

Though the pages are numbered
I can't see where they lead
For the end is a mystery no-one can read
In the book of my life

a-ver-livros: qualquer coisa e Karen McKendry Minton

Há qualquer coisa
na forma como não me olhas

que diz tanto do que não vês
ou não queres ver

Há qualquer coisa
na forma como não me ouves

que diz tanto da surdez
em que te escondes


Há qualquer coisa
na forma como não existes
que diz tanto de mim

* para saber mais sobre a pintora americana Karen Minton
siga o link www.karenminton.com

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A livraria... em Lego

Quer descobrir um mundo de livrarias feitas em Lego? O blog Mr. Library Dude mostra-lhe várias situações passadas numa. Vale a pena espreitar, aqui.


Namora: «Balada de Sempre»

Balada de Sempre

Espero a tua vinda
a tua vinda,
em dia de lua cheia.

Debruço-me sobre a noite
a ver a lua a crescer, a crescer...

Espero o momento da chegada
com os cansaços e os ardores de todas as chegadas...

Rasgarás nuvens de ruas densas,
Alagarás vielas de bêbados transformadores.
Saltarás ribeiros, mares, relevos...
- A tua alma não morre
aos medos e às sombras!-

Mas...,
Enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aí além,
sempre duvidoso,
desenha interrogações na areia molhada...


*Fernando Namora, in Relevos

É do borogodó: fotopoema

nosso amor no ladrilho
água tanta em flor
querer tímido
 

Penélope Martins
 

a-ver-livros: semente e José van Gool

Semente, pasta, papel
sílaba, amor, palavra
fruto, suco, tinta
olhar, mão, toque
carne, suor, prazer
silêncio, grito, choro
tu, eu, nada
somente

de novo a semente

* para saber mais sobre a pintora holandesa José van Gool
siga o link www.artofcreativity.nl/en/artists/jose-van-gool

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Feira do Livro Independente - Caldas das Taipas, Guimarães


Esta iniciativa tem como objectivo dar espaço às editoras, pequenas e não só, que continuam a manter a sua independência. Nesta feira estarão presentes as editoras que continuam a ver o livro como elemento desestabilizador e desassossegador, transmissor de cultura e rastilho para a revolução individual (e colectiva). Porque nunca se sai de um bom livro da mesma forma como se entrou.

Além de novidades das várias editoras que decidirem estar presentes, a feira terá também uma área dedicada ao livro descatalogado e de alfarrábio.

A Feira do Livro Independente é uma iniciativa conjunta dos Banhos Velhos, Livraria Snob e Livraria Pinto dos Santos. A entrada é livre.


Venha à feira! Um belo passeio para o fim-de-semana.

13 de Setembro - 15 de Setembro.
Banhos Velhos: Caldas das Taipas, Guimarães.



Namora: «Alheamento»

Alheamento

Meu corpo estiraçado, lânguido, ao logo do leito.

O cigarro vago azulando os meus dedos.

O rádio... a música...

A tua presença que esvoaça
em torno do cigarro, do ar, da música...

Ausência!, minha doce fuga!

Estranha coisa esta, a poesia,
que vai entornando mágoa nas horas
como um orvalho de lágrimas, escorrendo dos vidros
duma janela,

numa tarde vaga, vaga...


*Fernando Namora, in Mar de Sargaços

a-ver-livros: livre e Nicole Wong

Não me metas na caixa
abraça-me
não me coles a etiqueta
aceita-me assim
ontem louca
hoje sábia
amanhã apenas ali
sentada contigo aos pés
livro nas mãos
absolutamente livre
de ser quem nunca fui
antes e jamais
serei depois

* para conhecer mais do trabalho de Nicole Wong siga os links
thesundaypainter.blogspot.pt e www.etsy.com/shop/PainterNik

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Namora: «Todos os Caminhos me Servem»

Todos os Caminhos me Servem

Todos os caminhos me servem.
Em todos serei o ébrio
cabeceando nas esquinas.
Uma rua deserta e o hálito
das pessoas que se escondem,
uma rua deserta e um rafeiro
por companheiro.

Ó mar que me sacode os cabelos
que mulher alguma beijou,
lágrimas que os meus olhos vertem
no suor dos lagares,
que uma onda vos misture
e vos leve a morrer
numa praia ignorada.


*Fernando Namora, in Mar de Sargaços

É do borogodó: refém



Aguarela de Van der Moes
penetra-me a palavra

o recôncavo do peito.

Palavra de sal e beijo

de espuma: tens-me refém.

Lá fora suplicam os sons

desditos na curva da escápula.

Aqui dentro, sons não-ditos

roçam lóbulos a folhear

dicionários do fim

ao recomeço.


Penélope Martins

a-ver-livros: quietude e Rommel Joson

É no meio sono
entre o corpo que cai
e a mente que voa
que plano entre
navios no mar alto
e portas que não fecham
e as tuas mãos
carinhosas marcadas
pelas cesuras
dos dias vividos

É no acordar
que sei
que não sonhei

* para saber mais sobre o pintor filipino Rommel Joson
siga o link strangeskins.com

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

«Noites Brancas»: Fiódor Dostoiévski em Setembro

A leitura conjunta de Setembro é «Noites Brancas» de Dostoiévski. A minha versão é a da Biblioteca editores Independentes (colecção BI), neste caso da Assírio & Alvim e tradução de Nina e Filipe Guerra. Se não encontrarem esta edição, a história acaba de ser publicada pelo Clube do Autor. Em alternativa, poderão arranjar a edição da Europa-América

Conheçam o romance que nos vai juntar em mais uma aventura... Espero que gostem! 

Noites Brancas (publicado pela primeira vez numa revista em 1848) esboça a figura de mais um herói proscrito da lista de Dostoiévski, desta feita o sonhador. Este sonhador de Noites Brancas não é só um romântico lamechas, mas uma “aberração” social, como o próprio autor (em Crónicas de Petersburgo, 1847) explica: não podendo o homem encontrar o seu lugar no mundo, “(...) nos caracteres ansiosos da actividade, mas fracos, femininos, ternos, nasce a pouco e pouco aquilo a que se chama ‘sonhadorismo’, e o homem deixa de ser homem, torna-se uma espécie esquisita... — o ‘sonhador’ (...). A realidade produz no coração do sonhador uma impressão grave, hostil, que então se apressa a meter no seu cantinho secreto e dourado, que na realidade é, não raro, poeirento, desmazelado, desarrumado e porco. A pouco e pouco, o nosso rebelde começa a alienar-se dos interesses comuns e, gradualmente, imperceptivelmente, começa a embotar-se nele o talento de viver na vida real.” É assim o herói de Noites Brancas, mergulhado na sua trágica solidão. A linguagem deste conto, fazendo jus ao eclectismo do autor neste particular, assume-se ironicamente e de raiz como melifluamente romântica.

Noites Brancas refere-se às noites do início do Verão em que não escurece, fenómeno observado em ambos os hemisférios a partir dos 60 graus de latitude norte e sul (em Petersburgo vai de 11 de Junho a 2 de Julho). Estas noites de Petersburgo que imitam o dia são o símbolo que preside ao conto de Dostoiévski: o sonho imitando a vida, até se tornar nela, para sempre.

Namora: «Profecia»

Profecia

Nem me disseram ainda
para o que vim.
Se logro ou verdade,
se filho amado ou rejeitado.
Mas sei
que quando cheguei
os meus olhos viram tudo
e tontos de gula ou espanto
renegaram tudo
— e no meu sangue veias se abriram
noutro sangue...
A ele obedeço,
sempre,
a esse incitamento mudo.
Também sei
que hei-de perecer, exangue,
de excesso de desejar;
mas sinto,
sempre,
que não posso recuar.

Hei-de ir contigo
bebendo fel, sorvendo pragas,
ultrajado e temido,
abandonado aos corvos,
com o pus dos bolores
e o fogo das lavas.
Hei-de assustar os rebanhos dos montes
ser bandoleiro de estradas.
— Negro fado, feia sina,
mas não sei trocar a minha sorte!

Não venham dizer-me
com frases adocicadas
(não venham que os não oiço)
que levo caminho errado,
que tenho os caminhos cerrados
à minha febre!
Hei-de gritar,
cair, sofrer
— eu sei.
Mas não quero ter outra lei,
outro fado, outro viver.
Não importa lá chegar...
O que eu quero é ir em frente
sem loas, ópios ou afagos
dos lábios que mentem.

É esta, não é outra, a minha crença.
Raios vos partam, vós que duvidais,
raios vos partam, cegos de nascença!


*Fernando Namora, in Relevos.

a-ver-livros: prisão e Francine Van Hove

Presa na sombra 
das cadeiras
a reverberação 
de dias claros,
plenos de luz
e vocábulos 
conjugados sem pressa

Presa no corpo
a vontade
de gritar

* para saber mais sobre a pintora francesa Francine Van Hove
siga o link www.francinevanhove.com

domingo, 1 de setembro de 2013

Poema à noitinha... Rainer Maria Rilke

A Canção do Suicida

Só mais um momento.
Que voltem sempre a cortar-me
a corda.
Há pouco estava tão preparado
e havia já um pouco de eternidade
nas minhas entranhas. 


Estendem-me a colher,
esta colher de vida.
Não, quero e já não quero,
deixem-me vomitar sobre mim.

Sei que a vida é boa
e que o mundo é uma taça cheia,
mas a mim não me chega ao sangue,
a mim só me sobe à cabeça.

Aos outros alimenta-os, a mim põe-me doente;
compreendei que há quem a despreze.
Durante pelo menos mil anos
preciso agora fazer dieta.


*Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira


É do borogodó: pro fundo. fundo.

ilustração: Marcos Garuti

tarados. expande, engole. resvala, consome. presume, mata, aspira, come. expia teus pecados. tarado. tarado. ateia fogo, colore. expande, engole.

catequismo de tarado é tara. assertiva de tarado é marra. primazia de tarado é tanta; a fome tamanha, tamanha, tamanha… esgota. expande, engole.

anômalos famintos, profanos destemidos. profundo. pro fundo. fundo.


Penélope Martins

[ pode encontrar o mesmo texto no blog azeiteealecrim. Siga o link ]

Madrugadas em cinzas por Pedro Ferreira



Renascido em cada madrugada, acordo sob o manto quente das palavras que me acolhem, que me escolhem para as escrever. De caneta, armada na mão, solta que dança pelo espaço em branco de uma virgem, também renascida a cada madrugada. Neste lugar escrevo palavras que brotam de dentro de mim que não tenho a certeza de estar acordado. Não sinto o corpo dorido das noites passadas em branco, não sinto a cabeça pesada pelas ideias que não param de pulsar. Vou olhando pela janela à espera do nascer do sol. Para que tudo se transforme e se torne em esquecimento na esperança que o novo dia traga o abandono do corpo e este repouse nos sons de uma cidade quase abandonada.

Foto e Texto: Pedro Ferreira