sábado, 17 de janeiro de 2015

MEUS VELHOS

Mal abriram a porta um cheiro podre envenenou-me a cara. Os meus olhos percorreram cada canto daquele espaço e quase só viram branco. As paredes eram brancas demais e não havia janelas. Para tantos quilos de branco havia uma porta cinzenta e feia que, quando se abria, trazia mais camadas de branco infinito. Empurraram-me até ao meio da sala e saíram. Fiquei a ouvir os passos deles a perderem-se no corredor por onde me tinham trazido, o apoio do pé no chão a desvanecer-se no meio da humidade até desaparecer. Nesse preciso momento tive a certeza que não os ia voltar a ver. 
Ao lado da cadeira deixaram-me uma mala castanha, velha, cheia de qualquer coisa que não ia precisar. À minha frente havia uma mesa grande com várias cadeiras ocupadas por velhos. Observei-os. Apesar da distância, estava ao nível deles e por isso consegui olhá-los diretamente na cara. Eram velhos caducos, usados, parados, prontos para deitar fora. No meio deles havia uma mulher nova, na casa dos quarenta, cabelo desdenhoso e boca gigante, impaciente. Tinha os sonhos feridos e era fácil perceber que só estava ali para matar a fome aos filhos. Saiu. Nesse tempo consegui observá-los com maior afinco. Tinham movimentos lentos, quase impercetíveis, e duvidavam da pouca agilidade que lhes restava. Fui trocando o olhar entre eles. Eram quase todos iguais e mesmo que quisessem não podiam deixar de o ser. Eram velhos bons. Percorri a mesa retangular de uma ponta à outra até me fixar num deles. Tinha fato completo e perfeitamente limpo, os bolsos cheios de memórias. No cocuruto da cabeça ainda lhe resistiam alguns cabelos brancos que, envergonhados, se confundiam com as paredes. Faltava-lhe força para demonstrar fraqueza. Todos eles eram sós, mas aquele velho era mais só que os outros. Olhou-me com olhos mortos e pasmou-se, mudo, quando reparou na minha pele lisa e pouco pálida. Ficámos naquele impasse até a mulher entrar pela mesma porta que tinha saído e desamarrar-nos o olhar. Nem reparou em mim. Vinha com uma missão. Trazia tigelas em número suficiente para todos os velhos e uma cara maldisposta e a decompor-se. Misturou leite com um pó meio amarelo e mexeu até empapar. Pôs uma tigela à frente de cada um dos velhos e disse-lhes para comerem. Nenhum deles tocou na colher. O brilho do inox manteve-se ali, estático, triste, quieto, refletindo-me os anos. Aquela velhice já nem fome tinha. A mulher obrigou-os a comer, um por um. Num movimento brusco, agarrou na colher e tentou enfiá-la na boca do meu velho. Foi o primeiro. Forte, resistiu. Trancou os maxilares com uma decência invulgar e não mostrou medo. A mulher, irritada, abriu-lhe a boca com os polegares e indicadores e despejou-lhe aquela pasta esquisita pela goela abaixo. A pasta era branca. O velho engoliu-a e baixou a cabeça até tocar com o queixo no peito. Olhou o chão branco e ficou na mesma posição até a mulher voltar a sair pela porta. Não quis ver os irmãos.

Tell a story

Quem conhece esta livraria em Lisboa? Estive lá em Setembro passado e gostei do conceito! Autores portugueses traduzidos. Para turista, e não só!
 
Vale a pena seguir o projecto:
 
Librairie ambulante à Lisbonne.

 
Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Foto frase do dia: Sherman Alexie


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações




Sem qualquer referência, Gonçalo fez-me chegar este texto que me atrevo a atribuir à coletânea "Histórias de pauta e de papel".Descontentamento? Cansaço? Eis as questões!




Nos tempos de nevoeiro e frio continental, os concertos para piano de Beethoven têm um efeito telúrico e lenitivo na alma errante e cosmopolita do sujeito que turista pela Europa, pelos sistemas e pelo mundo. Sem Beethoven o que seria de Wagner? O que seria do Romantismo sem o ímpeto de um homem incompreendido, romântico en abîme? Beethoven é, sem dúvida alguma, o pai da moderna música. Sem Beethoven, nem florestas germânicas ou cantos nacionalistas, ainda que poéticos. Sem Beethoven, nem o Palácio da Pena teria o mesmo encanto, com o seu nevoeiro embalando as serras e o orvalho que sacia a sede de uma terra encantada.
Mas ia-me esquecendo de Mahler, esse portentoso génio que nos fez chegar o legado de Beethoven sem mácula. Génios traduzindo génios.
Mas interessa sim o frio continental, a chuva e o nevoeiro que fecham as cosmopolitas cortinas das capitais europeias e americanas. O som dos passos pelos passeios encharcados. Os táxis correndo, os transeuntes de guarda-chuva na mão, pasta ou mala na outra, a gabardina cobrindo do vento, do frio e da água que respinga das cornijas góticas de uma capital crística. Os prédios altos e cinzentos, os vapores fumegantes saindo dos esgotos multinacionais., as montras das lojas abarrotadas de produtos e preços e descontos. O frio transforma o suspiro de um casal de namorados em duas vibrantes linhas de fumo apaixonado. Nos bancos de jardim, avista-se os espaços vazios, deixados por uma solidão que se refugia em casas abandonadas ou em quartos de velhos esquecidos pelos filhos e pelo mundo. O ciclo natural das coisas. Alma bendita das sensações musicais. O concerto de Beethoven, o sexto, continua no seu ritmo benfazejo, líquido. O resto não interessa.
Continuemos as nossas vidas, tão fingidas, tão mesquinhas, tão desinteressantes

Tom Gauld: The Rediscovered Classic

a-ver-livros: raízes

Há páginas espalhadas
de mim
por aí
arrancadas de dentro
sem licença
naves de papel à deriva
santuários
fibras, sangue, suor
meia dúzia de lágrimas
acoitadas em outros tantos
sorrisos
talvez esgares, raízes
gramáticas
do que fui, sou ou quis ser
folhas perdidas
de um inverno qualquer

Ana Almeida

* para saber mais sobre o ilustrador belga Benoit Van Innis
siga o link http://www.benoit-artist.com/

Bai'má Benda - Bomba nas finanças?! Quem foi?


Bomba nas finanças?! Quem foi?

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Foto frase do dia: Jeffrey Eugenides


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Concordam com esta ideia?


a-ver-livros: viagem

Percorre-me o corpo o comboio
da tua curiosidade
e nem pára para espreitar
a magnólia
que insiste na nudez 

acelera mais e mais 
sofreguidão de encontrar o que não chega
nunca

leviandade de crer que o mundo espera
por novo ocaso
para parar no apeadeiro 
ventrículo 
aurícula
das minhas raízes

Ana Almeida

* para saber mais sobre a ilustradora chilena Evangelina Prieto
siga o link http://evangelinaprieto.carbonmade.com/


In Viagem ao Fim da Noite


A andar sempre para a frente recordava-me da cerimónia da véspera. Fora num prado que se realizara aquela cerimónia, por detrás de uma colina, e com a sua voz grossa o coronel arengara à frente do regimento. «Corações ao alto! - tinha ele dito... - Corações ao alto! e viva a França!» Quando não se tem imaginação, morrer é coisa de nada, quando se tem, morrer é coisa séria. Eis a minha opinião. Nunca tinha compreendido tanto de uma só vez.
Mas o coronel, esse, nunca tivera imaginação. Todas as desgraças daquele homem provinham daí, aquela sobretudo. Seria eu então o único a ter a imaginação da morte no nosso regimento?

Poesia em matéria fria: os deuses de Sophia

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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Baraça

da cartografia das memórias
percorro as linhas da infância
histórias feitas piões
livres de baraça
a circunscreverem risos
remoinhos na água
aberta à face dos seixos

quantas constelações edificaram
os sonhos a partir da margem
a lua a fundir-se na pele do rio
e coaxos palpitações ao peito

da cartografia das memórias
percorro as linhas da infância
refaço a bainha da esperança.

Helder Magalhães


(Crianças a jogar ao pião.
S.d., Fotografia de Ferreira da Cunha, AML-AF, A70465.)

É do borogodó: poesia que te quero ver




* Ayssa Bastos é poeta, ilustradora, designer, e um monte de outras coisas que inventa para deixar mais bonita a vida. A partir desta semana, Ayssa assina a autoria das postagens em POESIA QUE TE QUERO VER, no blog Toda Hora Tem História - http://todahoratemhistoria.wordpress.com/2015/01/12/poesiaquetequerover/

Penélope Martins

A história da Maria e dos dois pais é um livro infantil — mas também é para adultos

 
"Um dia na praia" é o primeiro livro infantil português que fala abertamente sobre a exclusão de uma menina por ter sido adoptada por um casal homossexual, diz a autora Sónia Pessoa. Campanha de "crowdfunding" está a decorrer até 26 de Janeiro 
Texto de Mariana Correia Pinto

Tinham sido personagens secundárias no primeiro livro de Sónia Pessoa e assumem agora o papel principal: Maria, Luís e Miguel são uma família — ela a filha, eles os pais — num mundo onde a diferença ainda é mal vista e a homofobia persiste. "Um dia na praia" é um livro infantil que também é para os pais, "o primeiro em Portugal que aborda abertamente o tema da exclusão da Maria por ter sido adoptada por um casal homossexual", mas só será publicado se a campanha de "crowdfunding" para angariar 3600 euros tiver sucesso.

A aproximação de Sónia Pessoa a temas relacionados com a inclusão já vem de longe. Um dia, ao passar por um casal homossexual que trocava carinhos na rua, o filho de três anos surpreendeu-a com um comentário: "Ele disse-me 'Oh mãe, que nojo'. Aquilo foi estranho para mim. Como é que uma criança tão pequena já tem interiorizado que a noção de família tem de ser de um homem e uma mulher?" Tempos depois, ao ver um programa onde Júlio Machado Vaz e Gabriela Moita discutiam o assunto, a ideia voltou: "Comecei a pensar como é que podia fazer com que as pessoas vissem isto de outra forma e lembrei-me dos livros infantis", contou ao P3 a portuense de 45 anos.

O livro "Ser diferente é bom", publicado em 2008, foi a primeira abordagem que fez do tema. Contava a história do primeiro dia de escola de um menino romeno em Portugal, mas através das imagens iniciais já abordava o tema da adopção indirectamente: "No início aparecia a Maria em casa dela com os dois pais, o Pedro em casa com o pai e a mãe. Quis passar essa mensagem de normalidade propositadamente", recorda a autora, mãe de dois filhos.

Essa história paralela acabou por transformar-se em assunto de debate e o livro, editado pela Papiro, esgotou em Portugal e vendeu vários exemplares para o Brasil. Sónia Pessoa, ex-trabalhadora do PÚBLICO, actualmente desempregada, quer com este segundo livro “abordar o tema como tem de ser abordado: sem chocar, sem invadir espaços, mas abertamente”. 

Crianças aceitam a diferença

Essa "naturalidade" com que escreveu este livro, já pronto há "bastante tempo", é a mesma que encontrou quando, depois do primeiro livro editado, esteve em várias apresentações do "Ser diferente é bom". “As crianças nunca me perguntaram porque é que a Maria tinha dois papas, as crianças aceitam. E não é por estarem habituadas a ouvir o assunto”, analisa.

Para conseguir editar o livro “Um dia na praia”, que terá ilustrações de Miguel Felix e será o primeiro de uma colecção de histórias infantis sob o tema "Ser Diferente é Bom", Sónia Pessoa criou uma campanha de “crowdfunding”, a decorrer até 26 de Janeiro, para angariar 3600 euros. Escrever para os mais novos pode ser uma forma eficaz de mudar mentalidades, acredita a autora, mas este livro infantil não é só para os mais pequenos: “Sinto-me sempre tentada a dizer que é mais para os pais do que para os filhos”, diz, numa entrevista concedida por telefone. “Acho que facilita a tarefa dos pais em explicar temas que não são fáceis.”

O grau de eficácia pode ser indagado através da experiência da própria autora com os dois filhos. Sónia percebeu, quando o episódio com o filho na rua aconteceu, que também na casa dela, não havendo preconceito, o assunto não era abordado. E mudou isso: “Eles leram os livros e foram educados para aceitar a diferença. Há dois anos, tinha o meu filho tinha 14 anos, a escola estava a preparar uma peça teatro e havia uma personagem gay. Ele foi o único que aceitou fazê-la.”

*A notícia é do Jornal Público - http://p3.publico.pt/cultura/livros/14826/historia-da-maria-e-dos-dois-pais-e-um-livro-infantil-mas-tambem-e-para-adultos

Foto frase do dia: Anne Fadiman


domingo, 11 de janeiro de 2015

Zink: LOVE IS IN THE AIR...

1.Ontem foi mais um dia de horror. Infelizmente, ao contrário do que diz a canção, não é «o Amor» mas sim O ÓDIO que está no ar.

Ontem lá houve o proverbial massacre numa loja judaica, o Hyper Cacher - «When in doubt, blame the Jews», não é? - e da Nigéria vêm notícias de centenas de assassinados pelo bando Boko Haram. Ironicamente, a minha amiga Efrat lembrou-me que esta quarta-feira 7 foi o primeiro dia em três anos sem vítimas registadas na Síria. Se... vamos a comparar números, quem ganha é... Mas as pessoas não são números, pois não? Cada pessoa é uma vida preciosa - e muito muito preciosa para alguém seu próximo.

2.Há uma onda de ódio contagiante no ar e, pelo menos para mim, o «espírito Charlie» era contra o ódio. O riso é o oposto do ódio. Amos Oz escreveu que, conseguisse alguém inventar uma injecção de humor, deixaria de haver fanáticos.

3. Os maridos encornados que matam as mulheres num ataque de ira (até recentemente, «compreensível» para muito bom juiz...) veriam o lado cómico da questão - «E agora, como vou usar chapéu?» - e pousariam a arma. Os líderes da FN seriam os primeiros a perceber a graça que tem o seu dirigente histórico lembrar fisicamente o Alberto João. Os que acham que a sua religião é assunto público entenderiam que a relação com o divino é espiritual e que, nos tempos de antão, não havia Kalashnikovs.

4.O que é para mim o «Espírito Charlie»? É usar O RISO COMO AUTO-DEFESA contra os que nos chateiam e maltratam e, com palavras aparentemente virtuosas - Deus, Pátria, Família, etc. -, acham que têm direitos a pisar os calos a um indivíduo. A liberdade como sal da vida. A liberdade como valor moral superior ao respeitinho e ao medo e à reverência às «tradições» (entre aspas porque muitas delas são, ao contrário do que se julga, invenções recentes).

5. Nunca vi ódio - nem sequer à Frente Nacional ou a qualquer religião - nos cartoons e textos do Charlie Hebdo. (sim, também havia textos, e alguns de «análise séria») . Havia, isso sim, um «não me lixes». Eram todos «soixante-huitards», para quem a liberdade de expressão era a primeira frente de combate contra o Mal, venha ele de onde vier. Sim, gente de 68, mesmo os que, como Charb, não tinham vivido esse tempo. No Fiel Inimigo (1994), dirigido pelo Júlio Pinto, havia gente assim. O Viriato Teles, por exemplo, que escreveu um belíssimo livro sobre Zeca Afonso e sempre senti que nasceu com 20 anos de atraso.

6. Et c'est ça.

*Rui Zink: https://www.facebook.com/pages/Rui-Zink/326526430888997

Foto frase do dia: Erica Jong



Apanhei-te a ler... dia 35

Johnny Depp
 
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