sábado, 17 de março de 2012

De mulheres e tankas


Haikus já conhecia. Mas graças a um presente em forma de livro – “O Japão no Feminino I – Tanka”, da Assírio & Alvim – descobri também os tanka. Uns e outros, pequenas composições poéticas nipónicas abordando a natureza, a religião, o amor. A diferença entre uns e outros? Um haiku tem 17 sílabas, um tanka 31.

Realmente inesperado para mim foi, através da introdução, a descoberta de uma certa liberdade de que a mulher japonesa já usufruia há mil anos, quando a monumental cidade de Heian-Kyo (que hoje conhecemos como Kyoto) era já um dos grandes centros civilizados do mundo.

A poligamia era habitual nos homens, sim. Mas, “os casos amorosos eram aceites às mulheres solteiras”. “Uma mulher solteira podia ter vários namorados e vários romances com homens casados, desde que usasse maior discrição. A esposa, pelo contrário, era suposto ter só um marido e ser-lhe fiel.”

“A mulher do período Heian tinha, mesmo assim, bastante independência nos assuntos do coração e também nas questões monetárias, podendo ser proprietária e usufruir de rendimentos próprios. Também podia divorciar-se ou separar-se, independentemente da opinião familiar.”

Mais me fascina ainda, no entanto, o ritual amoroso assente na poesia que então se vivia. “O primeiro sinal para um novo romance (...) era a chegada à porta de casa de um mensageiro com um poema de cinco linhas escrito por mão desconhecida. Se o poema, a caligrafia e o papel fossem do agrado da dama ou da donzela havia uma resposta encorajadora, também em forma de poema.” Dali em diante, toda a relação seria assente nesta troca de missivas poéticas, com uma etiqueta a cumprir.

No volume em questão, surgem os tanka de duas grandes senhoras: Ono no Komachi, figura lendária da história literária do Japão, que viveu no século IX, e Izumi Shikibu, considerada a maior mulher poeta do país, que viveu no século X-XI. Textos intemporais – de que não se pode falar de tradução, mas sim “de aproximação” em português, assinada por Luísa Freire.

Deixo-vos com quatro tanka de cada uma delas. São tão simples. E tão bonitos.

Komachi

“As cigarras cantam
à hora crepuscular
na aldeia do monte –
esta noite ninguém vem,
excepto o vento, visitar-me.”

“O pescador de algas
volta sempre à minha praia.
Será que ele não sabe
que mais nada apanhará
nesta baía deserta?”

“Este meu corpo
tão frágil e flutuante.
é uma cana sem raízes.
Se um rio acaso pedir
que o siga, eu acho que irei.”

“A aldeia do monte
poderá ser solitária...
Mas viver aqui
é mais fácil do que habitar
entre os desgostos do mundo.”

Shikibu

“Mesmo que eu agora
te visse uma vez que fosse,
o meu desejo de ti
atravessaria mundos,
todos esses mundos.”

“Se o cavalo dele
tivesse sido domado
pela minha mão –
eu tê-lo-ia ensinado
a não seguir mais ninguém.”

“O mundo corre depressa
e a Primavera acabou.
Parece que ainda ontem
estava, tudo o que via,
em plena floração.”

“Consumi o corpo
a desejar o regresso
do que não voltou.
É agora um vale profundo
o que foi meu coração.”


* A ilustração inicial chama-se "Lady Reading Before an Ornate Screen" (1905), de Ikeda Terukata,

in O gordo e o infinito

Amanhã o dentista vai ordenar-me

- Pode cuspir.

É o único sítio do mundo onde nos aconselham a cuspir. De babete ao pescoço inclinamo-nos para uma bacia. Eu, que desde a escola primária cuspo lindamente, reduzo-me a uma saliva azelha que me escorre do queixo e me envergonha. Dantes, acertava num gafanhoto a dois metros e era a inveja da turma. Agora cuspo pior que o gordo, que podia ser o melhor aluno mas em matéria de escarros não valia um chavo. Para se vingar afirmava com segurança que as paralelas nunca se encontravam. Sempre achei que as paralelas não se encontravam porque tinham mais que fazer. O professor não me levava a bem a opinião e garantia que se encontravam no infinito. O infinito, um oito deitado...



sexta-feira, 16 de março de 2012

A anatomia das fontes



A exploração dos tipos de letras, e sua divisão em "famílias" ou grupos genéricos, é o cerne deste estudo abrangente. Alexander Lawson, que ensinou tipografia durante trinta anos no Instituto de Tecnologia de Rochester, explora o vasto território de fontes - o seu desenvolvimento e usos, os seus antecedentes e filhos - com precisão, discernimento e clareza. Este livro é a primeira obra-prima do género desde que Daniel Berkeley Updike publicou o magnifico "Printing Types" em 1922. A data da primeira publicação de "Anatomy of a Typeface" é de 1990, sendo que já vai numa terceira edição de 2002. Não tenho conhecimento que esteja traduzido para português.Do autor deste livro - Alexander S. Lawson - há um blogue/site com mais infos sobre o mesmo, sobre o seu trabalho e sobre o tema que pode ser visitado através daqui.




A fonte é essencial. A fonte comunica e faz os projectos, livros, revistas, publicações, cartazes falarem. O fundamental é conhecer a anatomia das formas das letras. Isto é tremendamente valioso quando se comunica com outros designers, paginadores e até mesmo com o leitor. Tentar caçar esse tipo de letra perfeita para cumprir o objectivo de comunicação. Ao conhecer os pedaços de cada fonte é mais fácil entender por que é que uma parece ser boa e outra má, mais adequada ou menos adequada.

Aqui está uma lista de definições das partes mais importantes formas de letras:

Base: onde todas as letras se assentam. Este é o eixo mais estável ao longo de uma linha de texto, e é uma vantagem crucial para o alinhamento com as imagens de texto ou com outro texto. As curvas na parte inferior de cartas, tais como o pendurar ou ligeiramente abaixo da linha de base. Vírgulas e ponto e vírgula também cruzam a linha de base.

Altura-X: a altura do corpo principal da letra minúscula (ou a altura de um x minúsculo), excluindo os seus ascendentes e descendentes

Altura Maiúscula: a distância entre a linha de base para o topo da letra maiúscula. A altura limite de uma fonte determina o seu tamanho de ponto.

Ascendente: A parte de algumas letras minúsculas (como b, h ou d) que sobe acima do que a altura-x

Descendente: A parte de algumas letras minúsculas (como y, p ou q), que desce abaixo da linha de base. Em algumas fontes, até mesmo letras maiúsculas como J ou Q pode descer abaixo da linha de base

Serifa: Pequenos, derrames acabamento nos braços, caules e caudas de fontes.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Uma Lezíria de Letras.

A viagem de hoje prolonga a estadia no encantamento do vale do Tejo. A viagem de hoje tropeça, mais do que em espaços onde os livros têm lugar, nos encantos. Naquela vivência escondida quando o tempo teima em ser maior do que o Homem e, por isso mesmo, torna-lo tão pequeno.

Escreveu Almeida Garrett As Viagens na Minha Terra naquele percurso que leva o Tejo de Lisboa a Santarém. Em pano de fundo a casa da Joaninha, o Vale. Da velha Sacallabis pouco se consegue visualizar. Nem tinha que ser de outra forma. Porém é este o primado daquela cidade, a vivência escondida. O facto, ou dado curioso, é que, a bem da verdade e da atenção, Santarém tem tudo para ser o recanto idílico dos amantes da escrita, o alto abissal da inspiração, a casa de reunião de gentes das letras, o poema perdido entre Pedro e Inês. Escorre nas paredes das muralhas da sua história o episódio de vingança, o arrancar impiedoso do coração daquele que levou Inês à Morte. As Portas do Sol, o jardim feito nas ruinas dessa mesma muralha, outrora castelo, de onde se avista um Tejo tímido, paredes meias com a casa das Alcaçovas e braços inteiros para quem por ali se senta e desenha, ou se esconde a escrever. Quem faz o caminho dali para o centro cruza-se com o que resta do Teatro Rosa Damasceno. No meio de disputas, aquelas que não se compreendem quando se pensa que o nome do espaço surgiu em reconhecimento, em vontade declarada de homenagear a figura que encantou ao passar em digressão por ali, teve o seu fim num incêndio. O silêncio ficou. A alma dos escalabitanos é apaixonada mas reprime-se. E a História assim o sustenta.

Continuando a deambulação a pé, mais minuto, menos minuto, encontra-se outro Teatro, o Sá da Bandeira. Este espaço, reconstruido e adaptado há meia dúzia de anos funciona hoje não só como palco de peças e concertos como também acolhe serões de leitura, lançamento de livros. Para além do café onde se sentam tanto leitores compulsivos, como meros visitantes, este espaço engloba, também, um designado piano Bar, ponto de encontros Tertulianos. Aliás, Santarém tem um roteiro anual de biblio-cafés organizado pela Biblioteca Municipal, onde durante duas semanas se pode requisitar ou sentar e ler. Normalmente coincide com as comemorações do dia Internacional do Livro, por isso Abril é momento de pensar na esplanada do El Galego no Jardim da República, no Tic-Tac na zona dos Jardins de Cima, ou no Monte Carlo na Av. Bernardo Santareno. E já que “tropeçamos” em Bernardo Santareno vamos caminhar por outro ponto da cidade.

Para além das tertúlias e cafés com livros, dos jardins e das bibliotecas, esta cidade tem uma riqueza impar no que concerne aos seus filhos. António Martinho do Rosário, conhecido para o mundo como Bernardo Santareno, aqui nasceu, aqui foi vivendo, aqui se inspirou. Mais se respira fundo quando, na travessia pedestre, se lê numa placa o nome de Manuel de Sousa Coutinho e se percebe “aqui viveu Frei Luís de Sousa”. Guilherme de Azevedo Chaves, homem da Geração de 70, percursor das Conferências  do Casino, escritor, jornalista, poeta. Autor de uma peça inquietante – Viagem à roda da Parvónia, também ele filho da terra. Mário Viegas, sim Mário Viegas, grande demais para tamanho silêncio, em tanto que este Ribatejo está presente nas suas criações. Ainda Veríssimo Serrão e a facilidade de imagina-lo abraçado à História de Portugal por acabar. Santarém não termina por aqui. E tem música. Esta seria atriz para outro roteiro.

Voltando ao centro há duas moradas difíceis de olvidar. A já mencionada Biblioteca Municipal, conhecida como biblioteca Brancamp Freire por estar instalada num palácio por este doado para o efeito. Nesta Biblioteca é frequente haver encontros com autores e conferências, mostras bibliográficas, tertúlias literárias. É aqui que se criam os projectos sobre biblio-cafés, baús da escrita, sessões de “ a hora do conto”, entre outras iniciativas que vão para a rua, para os jardins, para os monumentos, sempre com as letras em pano de fundo. A segunda morada é a casa de Pedro Álvares Cabral ou casa do Brasil. A casa onde viveu e morreu este Navegador está hoje transformada em centro cultural. Também aqui se lê, se pesquisa, se trocam livros. Também aqui são habitantes as tertúlias literárias.

Em Santarém quase que basta pensar e, logo, existe. Porém o vazio das ruas não permite que este seja o sentido, que este seja o sentimento. “ A alma dos escalabitanos é apaixonada mas reprime-se”. É uma alma de Flamingo que, sendo ave lindíssima, em poucos momentos voa. E se esta terra tem pelo que muito voar.

Paz, por Natália Correia


Paz

"Irreprimível natureza
exacta medida do sem-fim
não atinjas outras distâncias
que existem dentro de mim.

Que os meus outros rostos não sejam
o instável pretexto da minha essência.
Possam meus rios confluir
para o mar duma só consciência.

Quero que suba à minha fronte
a serenidade desta condição:
harmonia exterior à estátua
que sabe que não tem coração."

in "Poemas (1955)"

quarta-feira, 14 de março de 2012

Paul van Ostaijen, poeta dadaísta

Paul van Ostaijen (Antuérpia, 22 de Fevereiro de 1896 –Miavoye-Anthée, 18 de Março de 1928) foi um escritor e poeta vanguardista belga de língua holandesa, considerado um dos melhores do século XX.

Tinha o apelido de "Senhor 1830" pelo hábito de caminhar ao longo das avenidas principais de Antuérpia vestido como um dandy daqueles anos. A sua poesia, por influência do modernismo (Expressionismo, Dadaísmo e primeiro Surrealismo), apresentava um estilo muito pessoal.


Van Ostaijen foi um activo defensor da "independência flamenga" e, devido ao seu envolvimento durante a I Guerra Mundial nesse movimento, foi forçado a fugir para Berlim no final da guerra. Nesta cidade, um dos centros do Dadaísmo e do Expressionismo, pôde conhecer muitos outros artistas. Aí teve também uma grave crise psíquica.

De volta à Bélgica, abriu em Bruxelas uma galeria de arte. Hospitalizado numa casa de repouso nas Ardenas belgas, morreu em 1928, de tuberculose.


Tendo produzido apenas por pouco mais 10 anos, os procedimentos poéticos introduzidos por ele influenciam a poesia de língua holandesa até hoje - início do século XXI.

Paul Van Ostaijen nunca foi traduzido em Po
rtugal. Os poemas aqui apresentados foram traduzidos por Philippe Humblé e Walter Costa em português do Brasil.



Verso 6


Eu não posso coleccionar selos
Eu não posso coleccionar fotos de mulheres
Eu não posso coleccionar namoros
nem sabedoria
eu já não posso nada mais
eu já não posso nada mais
Porque não apago a luz
E não vou pra cama
Eu quero provar
estar nu
pelado quem sabe sim púrpura gelada e palidez
Não é assim o próprio princípio principiante
Eu não quero saber nada
eu não quero perguntar
porque
eu não me tornei um coleccionador de selos
Eu começarei por dar meu fracasso
Eu começarei por dar minha falência
Eu me darei um pobre despedaço de terra
uma terra pisoteada
uma terra de urzes
uma cidade ocupada
Eu quero estar nu
e começar


Melopeia


Sob o luar escorre o longo rio
Sobre o longo rio escorre cansada a lua
Sob o luar no longo rio escorre a canoa pro mar
Pela canalta
Pelo pradalto
escorre com a lua que escorre a canoa pro mar
Assim são parceiros pro mar a canoa a lua e o homem
Por que escorrem a lua e o homem ambos mansos pro mar


Poema


E cada nova cidade
flor que murcha
serão todas as cidades assim
serão todas assim
assim são todas
Em todo lugar
em todo lugar e em nenhum
todo lugar é nenhum
em todo lugar
os mesmos bombons tristes em em copos
bebida fica pérola não há sede
uma canção está em todo o lugar
de amor e adultério
serão todas as cidades assim
serão todas assim
assim são todas

in Pedro Páramo

- Não sei, Juan Preciado. Havia tantos anos que não levantava a cara, que me esqueci do céu. E mesmo que o tivesse feito, que teria ganho? O céu está tão alto, e os meus olhos tão resignados, que vivia contente só de saber onde ficava a terra. Além disso perdi todo o interesse desde que o padre Rentería me assegurou que jamais conheceria a glória. Que nem sequer havia de vê-la... por causa dos meus pecados; mas ele não mo devia ter dito. Já de si a vida é dura. A única coisa que faz uma pessoa mexer os pés é a esperança de que, ao morrer, a levem de um lugar para o outro; mas quando fecham uma porta a uma pessoa e a que fica aberta é apenas a do inferno, mais valia não ter nascido...
- E a tua alma? Para onde julgas que foi?
- Deve andar errando pela terra como tantas outras, à procura de vivos que rezem por ela. Talvez me odeie pelos maus tratos que lhe dei, mas isso já não me preocupa. Descansei dos vícios dos seus remorsos. Amargava-me mesmo o pouco que comia, e tornavam-se-me insuportáveis as noites, enchendo-mas de pensamentos inquietantes com figuras de condenados e coisas parecidas. Quando me sentei para morrer, ela pediu que me levantasse e continuasse a arrastar a vida, como se ainda esperasse algum milagre que me purificasse das culpas. Nem sequer tentei: 'Termina aqui o caminho', disse-lhe, 'Já não tenho forças para mais'. E abri a boca para que se fosse embora. E foi-se. Senti quando me caiu nas mãos o fiozinho de sangue com que estava amarrada ao meu coração.



terça-feira, 13 de março de 2012

Como li o livro de Penelope Fitzgerald, leitura conjunta de Fevereiro

Quero agradecer à Cristina Correia o facto de ter escolhido este livro. Andei a espiá-lo durante algum tempo na livraria onde trabalho. O título não pode ser mais sugestivo para quem, como nós, gosta de livros. Então de histórias que falam deste mundo, nem se conta... O mundo da leitura, dos autores (nesta história o destaque vai para Lolita de Nabokov), dos espaços onde habitam e circulam as personagens... Narrativas que nos levam ao sonho. Àquele sonho particular de fazermos parte da História Universal dos livros...

Mas confesso: A livraria não me encheu as medidas. Talvez esperasse mais de Penelope Fitzgerald, que ganhou um Booker Prize em 1979 com Offshore e teve este livro na celebre "shortlist" do mesmo (bem como The Beginning of Spring e The Gate of Angels). Os prémios (ou as obras"finalistas") podem gerar uma expectativa errada nos leitores. Como tal, não me apaixonei pela escritora (apesar de lhe dar o benefício da dúvida em relação aos seus outros livros que, como é óbvio, ainda não li).

Longe de ser um livro péssimo e de estar mal escrito, o que menos apreciei foi o desenrolar da acção e o desenvolvimento das personagens. A ideia central está bem conseguida: uma mulher que resolve abrir uma livraria numa localidade pequena com o dinheiro que o marido lhe deixou. O pormenor de ser numa casa abandonada, ter uma criança de 10 anos que depois lhe ajuda na manutenção do espaço... tudo isso me parece interessante. E, de certo modo, fez com que acreditasse mais na história. Algo que não acontece mais à frente...



Isto porque falta chama. Porque faltam ingredientes essenciais: a magia de ser livreiro, a beleza de falar de livros, o poder de conquistar as pessoas pela leitura... Toda a história de Florence Green acaba por ser, no íntimo, uma luta burocrática contra o poder instalado local que pretende dar um outro rumo à casa e que, na verdade, o consegue fazer. Substitui a livraria por um Centro de Artes... Mas até este pormenor me irritou um pouco. Um Centro de Artes? Então substitui-se um espaço cultural por outro? Se ainda fosse um talho... uma mercearia... Algo com uma finalidade distante faria mais sentido para mim enquanto leitor.

Salva-se a atitude louvável (digamos assim) da personagem principal. Do sonho de edificar um espaço destes num pequeno e remoto lugar perdido no campo... Há qualquer coisa de romântico nesta ideia. Permanece uma vontade de inverter as lógicas instaladas. Apesar disso, o desfecho acaba por ser a desilusão: o espaço fecha mesmo. Na minha opinião (que vale o que vale), a escritora dá um tiro no sonho. Mesmo que a história se tenha passado nos finais dos anos 50, noutra época, com outras mentalidades.

O que me fica é este final. Uma história infeliz. Que podia ter sido mais explorada. Que podia ter-me feito sonhar mais... Mas que não conseguiu! Tenho que ser honesto: o desenrolar da acção perde-se nas disputas da casa e faz esquecer a livraria... Título que acaba por não fazer jus ao romance.

O nossO Unhappy END

A luz do dia declinou mudando de lugar a sombra dos móveis.
O candeeiro da rua ficou pontualmente amarelo… amarelando a sala.
E nada mais mudou…
Um silêncio sólido, mas não pesado, talvez leve.
O som do meu respirar.
O som do teu respirar.
Conseguíamos respirar.
Sentados lado a lado no sofá, dentro de uma sala amarela, conseguíamos respirar.
O amarelo tem o seu quê de alegre e doce… o amarelo sempre me faz lembrar, não sóis, rebuçados, com sabor a limão, talvez a ananás… mas, o momento era trágico.
Depois... passaram talvez dez minutos ou uma quantidade enorme de segundos… um segundo uma ovelha a saltar a cerca, um rebanho imenso, tanta lã na Primavera… dez minutos intermináveis…
… e continuávamos a respirar…
Dez minutos sem palavras… as palavras todas ditas… todas gastas… desnecessárias… porque nada mais a dizer… talvez por isso um silêncio feito de uma estranha leveza… a leveza depois do depois, do já passou, do acabou…
... os dois corpos no sofá cansados…estafados… mas, ainda a respirar…
Há discussões que são como correr uma maratona…... ficamos sem pernas, sem pulmões, sem ar, o coração fora do sítio, ao pé da boca…. sem conseguir, depois da meta, dar mais um passo... só mais um passo...
Quantos quilómetros tem uma maratona?
Como se fosse coisa que me interessasse!
Como se eu corresse!
Dez minutos intermináveis… e os meus pensamentos saturados e em consequência vazios… a fugir de pensar em coisas más… as almofadas são feitas de linho azul… mas com a luz amarela… as almofadas parecem verdes… lá está… nem tudo é o que parece… e nós parecíamos tão felizes…
Até que os intermináveis dez minutos terminaram… a verdade é que nem tu nem eu sabemos quantos minutos passaram… mas... não passaram horas, não passou a noite, não amanheceu…
Levantaste-te do sofá…
Eu continuava a respirar… tu continuavas a respirar…
Atravessaste a sala e, no corredor, à porta do quarto… do nosso quarto… e já não era o nosso quarto… o teu olhar… pareceu-me triste… nem tudo é o que parece… talvez porque um desses olhares que antigamente se viam nos filmes... nas cenas em estações de comboios… de despedida.
 
Raquel Serejo Martins


 

segunda-feira, 12 de março de 2012

in Campo de Sangue

... a mãe não nasceu com os olhos opacos que o confundem, os olhos velaram-se com os enxovais das noivas que vinham de fora do bairro, traziam peças de pano branco que a mãe transformava em lençóis bordados para as noivas se oferecerem aos maridos, entregavam-se sobre as flores bordadas que cegaram os olhos da mãe, os olhos encheram-se de flores bordadas até não conseguirem ver mais nada, este é o lençol das núpcias mostrava a mãe e as noivas coravam, nunca percebi a satisfação daquelas criaturas transitórias, nunca percebi a linguagem dos bordados, fundos ajourados, ponto de cetim, as noivas escolhiam desenhos para as toalhas de mesa, em ponto de Assis, mais flores e mais passarinhos numa inocência enjoativa, a mãe a encher os riscos a lápis com linhas de cores, as noivas diziam as iniciais dos nomes dos noivos, o monograma era bordado no peito do futuro marido, um roupão com um eme e um efe entrelaçados, o pé da mãe no pedal e a máquina na lengalenga, não posso continuar a sustentar-te, estou cansada...

Estátua com alma de gente

Passo o olhar!
Rostos inexpressivos, saltimbancos do circo da vida, correm.
Tenho o Tempo, aquele que foge quando o queremos resgatar. Sinto-me espectador de uma peça de teatro, sentado naquele banco… único no meio da multidão. Tenho a coragem de pegar no relógio e pará-lo. Não há horários, não há agenda a cumprir, não há nada… rigorosamente nada, a não ser o meu desprendimento assumido de uma vida a correr. Sou dono do tempo, sou dono daquele momento. Sou um “voyeur" fascinado, quase excitado com esse estado de espiar a vida que corre à minha volta.
Acendo um cigarro… inspiro lentamente o fumo… expiro-o… contemplo a nuvem acinzentada que da minha boca sai… prazeres de alma que matam o corpo. Não me importo! Hoje quero mesmo esses prazeres e que se lixe o corpo…
Não resisto… lanço um olhar de macho à mulher que caminha languidamente com um vestido solto que, ao ritmo dos seus passos cadenciados, insinua um corpo apetecível. Passa por mim e deixa-me o rasto de perfume sofisticado misturado com o cheiro do meu cigarro. Apetecia-me dizer-lhe que a minha alma acaba de sentir o prazer de um momento, como o flash da minha Canon quando dispara. Fico pela vontade… fico pela intenção… mas não resisto… disparo, disparo… roubo num instante aquela mulher sensual e retenho-a na minha máquina… não lhe digo o meu prazer, mas fico com ela.
Ouço gargalhadas… viro a cara e vejo um grupo de jovens descomprometidos com a vida. Já fui assim também. O amanhã era apenas uma conjugação verbal, mas o presente… ah, o presente era consumido à velocidade dos sonhos. Nesse tempo, olhava o horizonte e via miragens que eram concretas, reais. Acreditava, tinha a coragem de um guerreiro e a força da lava que rompe o vulcão.
Retomo o olhar agora cansado, desencantado. Fixo-o no homem que, sentado num pedaço de cartão, toca viola. Os acordes são dolorosos como é dolorosa a sua vida. Espanta-me o sorriso rasgado que dá a quem passa. Oferece-o simplesmente, sem nada em troca. Fecho os olhos e, embalado pela melodia, sinto-me também vagabundo… quero pegar na mala do meus sonhos (sim, apesar de tudo, ainda tenho e são imensos) e embarcar sem rumo, sem destino. O que me importa é a viagem e não o destino. Quero parar onde os meus olhos se perdem e consumir o momento que vale a vida inteira. Quero consumir todos os sabores, quero absorver todos os cheiros e amar de todas as formas…
Abro lentamente os olhos…
Sinto-me inerte… estático… estou imóvel…
- Olha! É um homem estátua! – Oiço alguém dizer.
De repente, percebo a minha condição!
Sou uma estátua de rosto branco que, por breves minutos, viveu a condição de Homem!

Elsa Martins Esteves


"Estátua viva.Antero de Quental" - foto Alberto Correia

domingo, 11 de março de 2012

Feira do Livro LGBT pela primeira vez no Porto


O Centro Comercial Miguel Bombarda recebe desde ontem a Feira do Livro LGBT, até 17 de março. Além da venda de livros, o evento oferece workshops e encontros com escritores. Richard Zimler é uma das presenças confirmadas, para além da ilustradora e escritora Manuela Bacelar e Marisa Medeiros.

A Organização Porto Arco-íris, em parceria com a Associação ILGA Portugal e com o apoio da Livraria Index e a Galeria O (com sede no Centro Cultural de Belém), vai realizar a 1.ª edição da Feira do Livro LGBT no Porto. Este evento já teve lugar em Lisboa mas, pela primeira vez, apresenta-se na cidade Invicta.

A feira vai estar no Centro Miguel Bombarda, das 12h00 até às 20h00, de segunda-feira a sábado. Para além da venda de livros, no programa estão marcados workshops e encontros com escritores, ilustradores e investigadores.

PROGRAMA
- 10 março 18.00 - coro CoLeGaS
- 13 março 18.00 – encontro com autor@s-investigador@s Conceição Nogueira e Nuno Carneiro
- 14 março 18.00 - encontro com escritoras Manuela Bacelar, Sandra Cainé e a contadora de histórias Aida Gutierrez
- 15 março 18.00 – workshop de escrita com Adélia Carvalho
- 16 março 18.00 - encontro com escritor Richard Zimler
- 17 março 14.00 - workshop de ilustração com Sandra Luís
- 18.00 - encontro com escritora Marisa Medeiros

Sr. Cem mil


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