Encontrado na página For Reading Addicts
sábado, 28 de fevereiro de 2015
Eu poético: «avô»
avô
o avô descia todas as manhãs o caminho de sua casa até ao marco.
fizesse chuva, fizesse frio ou sol.
colhia o correio,
colhia o jornal.
quase sempre de fato e gravata,
o corpo gasto numa vida de trabalho.
numa rajada de vento forte
corria sério risco de levantar voo.
com um abre cartas bem afiado,
ia abrindo a correspondência uma a uma.
logo a seguir as contas.
quando lhe dava para isso, sacava o extrato do telefone,
agarrava a lupa e inclinava-se para a frente,
focando o mais que podia.
começava então a assinalar com um visto todos os números que conhecia
e com uma bola imperfeita destacava os incógnitos.
depois passava um cheque, letra de médico, assinatura estilo eletrocardiograma.
ou então pedia ajuda a um filho ou um neto,
caso estivessem ali à mão.
enquanto o almoço não chegava, abria o comércio do porto.
torto na sua cadeira, prostrado e de lupa,
começava a ler e não mais parava.
um detective à procura de prova,
ia de uma ponta à outra.
terminava o almoço,
geralmente puré e bife picado.
pegava na manta e na almofada,
sentava-se no sofá
e dormia a sesta.
a mão sempre a segurar a cabeça,
os dedos na testa,
o grande anel em destaque.
ali ficava algum tempo,
mastigando o silêncio.
saía para a varanda e pegava nos baralhos.
dois, assim ditava a paciência.
durante anos - dizia - só havia terminado o jogo duas, talvez três vezes.
desde que vim ao mundo... todos os dias o vi no mesmo ritual.
sempre vivi espantado com a insistência e a militância.
sempre admirei a luta incansável contra as improbabilidades.
tinha o dom da simpatia
e da generosidade pura.
ajudou muita gente
e salvou vidas.
acreditou no próximo
e em deus.
sorria
e deixava as pessoas felizes.
tinha uma palavra de consolo
e dicas de sabedoria.
trabalhou muito
e deixou no mundo dez filhos.
fez por ser presente,
nunca ausente.
fez de mim melhor,
ofereceu-me amor.
sempre deu,
nunca exigiu troco.
e é por isso que, apesar da saudade, apesar de ainda escutar a sua voz, apesar de recordar o seu cheiro, apesar de ter vivos os abraços que lhe dava...
eu continuo a olhar para o céu.
é lá que mora a estrela que me guia.
Rodrigo Ferrão
o avô descia todas as manhãs o caminho de sua casa até ao marco.
fizesse chuva, fizesse frio ou sol.
colhia o correio,
colhia o jornal.
quase sempre de fato e gravata,
o corpo gasto numa vida de trabalho.
numa rajada de vento forte
corria sério risco de levantar voo.
com um abre cartas bem afiado,
ia abrindo a correspondência uma a uma.
logo a seguir as contas.
quando lhe dava para isso, sacava o extrato do telefone,
agarrava a lupa e inclinava-se para a frente,
focando o mais que podia.
começava então a assinalar com um visto todos os números que conhecia
e com uma bola imperfeita destacava os incógnitos.
depois passava um cheque, letra de médico, assinatura estilo eletrocardiograma.
ou então pedia ajuda a um filho ou um neto,
caso estivessem ali à mão.
enquanto o almoço não chegava, abria o comércio do porto.
torto na sua cadeira, prostrado e de lupa,
começava a ler e não mais parava.
um detective à procura de prova,
ia de uma ponta à outra.
terminava o almoço,
geralmente puré e bife picado.
pegava na manta e na almofada,
sentava-se no sofá
e dormia a sesta.
a mão sempre a segurar a cabeça,
os dedos na testa,
o grande anel em destaque.
ali ficava algum tempo,
mastigando o silêncio.
saía para a varanda e pegava nos baralhos.
dois, assim ditava a paciência.
durante anos - dizia - só havia terminado o jogo duas, talvez três vezes.
desde que vim ao mundo... todos os dias o vi no mesmo ritual.
sempre vivi espantado com a insistência e a militância.
sempre admirei a luta incansável contra as improbabilidades.
tinha o dom da simpatia
e da generosidade pura.
ajudou muita gente
e salvou vidas.
acreditou no próximo
e em deus.
sorria
e deixava as pessoas felizes.
tinha uma palavra de consolo
e dicas de sabedoria.
trabalhou muito
e deixou no mundo dez filhos.
fez por ser presente,
nunca ausente.
fez de mim melhor,
ofereceu-me amor.
sempre deu,
nunca exigiu troco.
e é por isso que, apesar da saudade, apesar de ainda escutar a sua voz, apesar de recordar o seu cheiro, apesar de ter vivos os abraços que lhe dava...
eu continuo a olhar para o céu.
é lá que mora a estrela que me guia.
Rodrigo Ferrão
Na foto: o meu avô
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
a-ver-livros: para quê?
Rédea solta ao que resta
das palavras
sílabas a toda a brida
cavalgada insolente letra
a letra
rasgando o pano das frases
que o coração engana
pontuados os dias de páginas
em branco
sem circunlóquios
ou ufania
pugnando as noites
pela honra de dizer nada
no silêncio das desoras
---
escrever para quê?
Ana Almeida
das palavras
sílabas a toda a brida
cavalgada insolente letra
a letra
rasgando o pano das frases
que o coração engana
pontuados os dias de páginas
em branco
sem circunlóquios
ou ufania
pugnando as noites
pela honra de dizer nada
no silêncio das desoras
---
escrever para quê?
Ana Almeida
![]() |
* para saber mais sobre o ilustrador polaco Mariusz Stawarski siga o link http://mariuszstawarski.blogspot.pt/ |
Poesia em matéria fria: Cecília
Siga a página no facebook: https://www.facebook.com/poesiaemmateriafria
quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015
Gonçalo Viana de Sousa - O Flâneur das Sensações
Meu
querido José
Segue,
em papel pardo e já um tanto amolgado, desculpe mas escrevi este segmento em
condições extremas, pois fui até à Galiza e aproveitei o momento, fim de tarde
em Finisterra, para encetar mais uma parte deste que acredito cada vez mais ser
o meu Testamento. Viajei por terras para mim muito queridas, que sempre me
fazem pertencer a uma herança céltico-gaélica. Já leu ou conhece alguma coisa
sobre a Teoria da Continuidade Paleolítica? Fiquei rendido a essa ideia que
fervilha em mim, fazendo-me, pois, irmão de galeses e irlandeses e daqueles
formidáveis homens da ilha de Man. Se não leu, diga-me, pois tenho comigo uns
exemplares (poucas páginas, descanse, não o molesto com leituras que não pode fazer
agora, jovem positivamente vestido do avesso).
Efraim
voltou a abrir o meu correio electrónico e voltou a encontrar uma missiva
daquela que deve ser a única leitora que temos! Co’a brreca, Viana de Sousa,
deixa de serrr tão teimoso e escrrreve no computadorrrr! Mas para mim o
“computadorrrr” resume-se a isso mesmo: dor. Irei responder, disse-lhe eu, mas
com tempo. Mas, como lhe dizia, ou não acabei por dizer ao certo, viajei pela
Galiza, li essas teorias para mim desconhecidas, conheci pessoas interessantíssimas,
mas apareça hoje à noite, e falaremos de velho viajante para jovem romântico e
futurista e filho das maluquices de todos os dias. (Só me faltava isto: PIM!)
Abrrraço
do forrrmidável Efrraim
Abraço
amigo do muito
Seu
Gonçalo
V. de Sousa.
A música ditava os pares que dançavam
naquele elegante salão do Copacabana
Palace. E eu continuava a ver-te como se o início de todas as coisas fosse
aquele momento em que os teus dourados cabelos anelados e o teu vestido azul
encantavam o ar, perfumando-o de uma forma não esdrúxula, antes bruxuleante.
Must
you dance, every dance, with the same fortunate man? Dizia o senhor Sinatra, enquanto tu sorrias para ele e
eu imaginava que aquele sorriso fosse para mim, só para mim, guardião eterno do
teu olhar e dos teus lábios de cetim, senhora minha dos beijos sedosos. Tenho
agora noção que o tempo é líquido e interior, pois aquela música foi a mais
longa de toda a minha vida. Naqueles quatro minutos acredito que se passaram as
estações e todas as grandes e esquecidas constelações. A tetralogia do anel,
que já tivera ouvido mas não visto seria um segundo, dentro daquele remoinho,
daquela agitação que era estar tão perto de ti, que era estar tão longe de ti,
madona dos tesouros longínquos e belos e líquidos.
Ver-te era como dizer: água. You have danced with him since the music
began. Continuava o senhor Sinatra enquanto meu primo Jobim – ainda não
sabendo que era meu primo – dedilhava na sua guitarra segredos que eram
melodias doces, suaves e divinas. Antes de continuar, devo dizer que tu existes
e não és somente fruto dos meus sonhos e da minha fuga ao fisco da imaginação.
Nada disso. Este não será um testamento em que tudo será feito de viagens
semi-lúcidas, embaladas por bebidas de outros tempos, mais europeus e, mesmo
assim, muito menos belos e cosmopolitas. A música que ouvia ainda hoje
continua. Não interessa o facto destas paragens no fio da narrativa, pois ainda
que morra subitamente, tudo isto se irá repetir vezes sem conta (enquanto não
terminar o texto, isto se algum dia o fizer) e em todas elas irei amar-te
sempre e cada vez mais. Serei sempre o turista
com pouca coragem para ir ao teu encontro, enquanto a vida vinha de encontro a
todos os meus propósitos de viagens a teu lado, pelo Rio e pelo Mundo. Ainda
que as palavras apresentem vários braços e várias indicações com diferentes
finalidades, a encruzilhada jamais se resolverá. (Mesmo que venha a contar a
verdade mais à frente. Interessa sim, toda esta plácida e terna viagem pelo
tempo, saboreando novamente aqueles minutos que foram definitivos para a minha
vida, meu tesouro de flores por criar.)
Ainda que a Change Partners esteja em cada fibra de cada vogal, em cada poro de
todas as consoantes e palavras deste texto, há sempre um fio sereno, suave e
sibilino de Wagner que paira como uma bênção silenciosa: Träume.
O tempo passa.
Ainda que esta tarde de Fevereiro, deste dia
vinte e um de dois mil e catorze seja de um itálico a sépia, nada será capaz de
desgastar a luminosidade do teu sorriso, ainda que de papel. Nada será capaz de
corromper os teus cabelos e os teus lábios, ainda que de papel. Nada será capaz
de sufocar o meu amor, ainda que de sangue.
Vem, e acalma esta minha ladainha profana
de tardes sem nexo ou desejo algum de o ter. Vem, novamente, brevemente, para
sempre. Vem, dourada senhora dos pensamentos perfeitos. Vem, ainda que sejamos
de papel, meu amor. Vem. Fim da 4ª parte.
BRANCO
Para quê ser fitado quando despontamos em vida se quando a deixamos já não nos fitam os mesmos olhos. Até os olhos são substituídos. Para quê nos queixarmos dos defeitos que a cara nos deu, olhos maiores, nariz gigante, dentes afastados, testa comprida. Tudo isso igual, isso e o café com o amigo, as compras com a mãe, as pinhas na garagem a desaparecerem cada vez mais rápido. O céu fora da lareira. A vida é o que temos. Ir de férias e esconder o branco de que somos feitos, disfarçá-lo com o que nunca havemos de ser, também eu o faço, que cabeça a minha, não percebo. E depois o silêncio. A hora do médico e ele sério a olhar para uns papéis e nós já meio enterrados no consultório. Sabemo-lo de antemão. Puxam-nos as pernas. Não sei se vale a pena ter manias, um apelido mais chique, um casaco caro, escrever um livro, tudo isso manias. Mentiras de costas voltadas e desfazemo-nos em lágrimas, nem lágrimas partilhamos. Uma vez por mês coelho à caçador e vinho na mesa sei lá, se isso engana o branco, que seja. À noite um passeio, um gelado no Verão e um chocolate quente no Inverno. O acordar mais difícil a cada dia, as mantas cada vez mais frias e a persiana uma merd, deixa entrar a manhã toda. Está estragada. Hei-de levá-la para consertar. Talvez me distraia e fale com o moço dos arranjos. O Sol forte demais e as ruas com tantos buracos. O alcatrão tão queixoso. Aos Domingos da parte da tarde uma bicicleta e a beira-rio. Os homens a saírem do casino, vidros fumados e fatos completos, na mesa do póquer deixaram esquecidos a mulher e os filhos. Quando há aniversários uma mesa cheia e cada vez mais bengalas. Os pratos os talheres tão bem arranjados e no final tantos doces, tanto colesterol. O guardanapo em copa. De que vale isso? Na Segunda-feira a escola. Penso nas cores que condizem mas fico sem conclusão. Ténis vermelhos calças béjes e uma sweat tão velha, o azul já pouco azul. Saio assim, tão desajeitado. A Professora com uma música na voz, gosto de a ouvir, distraio-me do branco. Diz que tem filhos e que todos os dias vai buscar o neto ao colégio. A turma, parva, olha-a no início. No final já nem olhos. O chegar a casa e os os ténis desarrumados no meio da sala. O corpo estendido na cama. Sobram-me inutilidades e a música que não oiço, os outros com que não falo, os livros que não leio e os filmes cada vez mais parvos que não vejo. Tudo isso para enganar o branco em que vivo.
Um poema (e foto) de Mar Babo
Sou propensa a cefaleias
cardíacas, defeito congénito que
propaga maus olhados a quem me
espreita por dentro
{e lá}
raiam flores na fechadura dos ossos
jugulares rasgadas por risos
e mãos coladas a par, até que a
morte, gentil, os separe
{depois}
latejam as têmporas, à falta de
visita adicional, um ventre abastado
e breve, com toque de recolher
obrigatório à cela que ainda sou
{eis que}
se solta o verbo da carne e se
enche de chuva o lençol, o cetim
de tão crónica e livre a clausura
cede à palma da mão redentora
{sabendo que}
em mim se embebe, de mim se evapora.
*Mar Babo
cardíacas, defeito congénito que
propaga maus olhados a quem me
espreita por dentro
{e lá}
raiam flores na fechadura dos ossos
jugulares rasgadas por risos
e mãos coladas a par, até que a
morte, gentil, os separe
{depois}
latejam as têmporas, à falta de
visita adicional, um ventre abastado
e breve, com toque de recolher
obrigatório à cela que ainda sou
{eis que}
se solta o verbo da carne e se
enche de chuva o lençol, o cetim
de tão crónica e livre a clausura
cede à palma da mão redentora
{sabendo que}
em mim se embebe, de mim se evapora.
*Mar Babo
Na foto: Mar Babo, Rodrigo Ferrão e Helder Magalhães
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015
a-ver-livros: magnólia 426
Emílio Miranda - A crónica de Um suicídio (29 a 40)
A Crónica de Um suicídio
29
Durante
noites e noites sonhou com aqueles momentos. E todas as tardes voltou em vão
para que a magia voltasse a repetir-se.
Até
àquela, muitos dias depois, em que a promessa de que tudo poderia acontecer de
novo… e a sua ânsia o fez debruçar-se tanto sobre o caminho – o abismo que o
separava da casa que lhe bebia o olhar – e se viu a precipitar-se na calçada em
baixo.
Até à
dor que lhe tolheu todos os movimentos…
30.
Despertou
muito depois, sob o olhar severo da mãe e o olhar atento e condescendente da
mulher que lhe tinha povoado as noites de desejo… e percebeu que ela sabia o
que o levara até àquele lugar.
Onde
a vergonha o impediu de voltar…31.
Durante
muito tempo teve que viver com a mensagem definitiva que a mulher que nunca
mais avistou lhe dirigiu naquele dia:
– És
jovem de mais para que possa amar-te como tu desejas… Cresce e aparece, fedelho!O que nos faz amar alguém fora do tempo? Fora de todos os tempos e de todos os lugares possíveis?
32.
Há
uma linha ténue entre o possível e o que nunca se realiza…
O que
faz com que uma coisa nunca seja? Nunca seja mais do que um desejo que nos tortura,
tantas vezes indiferente ao tempo que passa… Como se a linha ténue entre o possível e o impossível se mantivesse… entre o «nós» que vive e o «nós» que sonha…
33.
O teu
perfume ainda me viaja na pele, e as palavras com que dizias amar-me, ainda teimam
em fazer-se ouvir…
34.
A dor
estava ali, não o abandonava; cravada entre o peito e a fronte, enquanto uma
voz aflita e assertiva agia e dava instruções…
Quis
que falhasse e simultaneamente que o salvasse da vida…35.
- Lesões graves no lóbulo direito…
Paragem cardiorrespiratória… Manobras de reanimação…
36.
A
primeira vez que partiu, jurou que não voltaria… Andou tão longe que acreditou
que não seria possível regressar, mesmo que num acesso de arrependimento
pudesse desejar contradizer-se…
Mas a
vida tem o condão de mandar em tudo quanto desejamos para ela… para nós… Não penses que decides… Resta-te apenas fazer o melhor que te é possível com o que te é destinado…
Se tiveres coragem de abdicar mais do que de concretizar os teus desejos…
37.
O que
procuraste todos os dias da tua vida, até desistires?
Um
lugar que te entendesse ou alguém que dissesse as palavras que não sabias, que
nunca soubeste?38.
Eu
nunca devia ter questionado tanto a vida; devia apenas tê-la vivido…
39.
Esqueci-te
dentro de mim e por isso é lá que estás… Irremediavelmente!
E
como se esquece o que não se esquece?
40.
- Cessar manobras de reanimação. Hora
da morte…
*Emílio Miranda
Começado em Sintra a 5 de abril de 2014,
Nunca terminado! BANG!
Poesia em matéria fria: Rubem Alves
Siga a página no facebook: https://www.facebook.com/poesiaemmateriafria
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
partitura
o som contínuo do soalho
como se a ausência de movimento
rangesse
nos mais díspares sentidos
a infiltração nas águas-furtadas
deixa cair pedaços de céu
pelo precipício
que veste o corpo agora
toda a casa devota às ruínas
em um tempo
de clausura ao abandono
uma só nota dos teus cabelos
sobre o peito do piano
e todo o pó entre a partitura
faria música.
Helder Magalhães
como se a ausência de movimento
rangesse
nos mais díspares sentidos
a infiltração nas águas-furtadas
deixa cair pedaços de céu
pelo precipício
que veste o corpo agora
toda a casa devota às ruínas
em um tempo
de clausura ao abandono
uma só nota dos teus cabelos
sobre o peito do piano
e todo o pó entre a partitura
faria música.
Helder Magalhães
![]() |
Natalia Drepina Photography |
In O Meu Amante de Domingo
Quando nos fodem o coração de um momento para o outro,
género um pé no chão, outro no ar, a grande perplexidade não é como vivemos o
que vivemos mas como não vimos o que não vimos, ou seja, não a entrega mas a
estupidez. Se a paixão já é uma forma de suspensão do raciocínio, num caso de
embuste dá‑se uma paralisia cerebral progressiva: ele quer‑me; ele quer‑me à
maneira dele; ele quis‑me, não foi mentira. Golpe de misericórdia é saber logo
que foi mentira. Porque se algo aí morre, algo começa a matar.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015
O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial
Para
lermos este livro precisamos de antes demais ser estudiosos e/ou no
mínimo interessados nas áreas de ciência
política, relações internacionais e sociologia, não sendo um
livro fácil é um livro muito interessante e polémico mas que na
globalidade está muito longe das criticas fáceis que lhe fizeram,
com certeza efetuadas, por quem nunca se deu ao trabalho de o ler.
Por isso irei me afastar destas e irei olhar para o livro como um produto
de uma forma de pensar, que tem como resultados algumas estranhas e
retorcidas teorias/hipóteses e outras muito interessantes e positivas.
Quem o escreve,
o já falecido professor de ciência política, Samuel
Phillips Huntington,
foi um conceituado professor de ciência política da Universidade
de Colúmbia
– no qual foi diretor do seu reputadissimo Instituto
de Estudos de Guerra e Paz
– e, a partir de 1963,
professor
da Universidade
de Harvard
acumulou estas três atividades académicas com duas outras
prestigiadas, a primeira como co-fundador e co-director até 1977, da
respeitada e influente revista – de relações internacionais e de
política interna americana – Foreign
Policy,
a segunda, a partir de 1975, como membro eleito – aliás são todos
eleitos pelos seus pares – da American
Academy of Arts and Sciences
ou seja a Academia de Letras dos E.U.A..
Desta maneira vemos que era um influente e sólido académico mas que
não era alguém neutral nem muito menos pacifico, foi consultor do
U.S.
Department of State
– o Ministério dos Negócios Estrangeiros dos E.U.A.
– e era conotado com os democratas
– nos E.U.A.
os democratas vão desde o socialismo democrático ao liberalismo
social e económico – embora fosse o que podemos dizer um democrata
conservador
nos assuntos da política externa, foi já com esta visão que
colaborou entre 1977 e 1978, com a administração de Jimmy
Carter,
onde foi o Coordenador do National
Security Council
– é um gabinete de conselheiros em várias áreas ligadas aos
negócios
estrangeiros,
serviços
secretos,
defesa,
segurança
interna e externa
que estão sob a égide do Executive
Office of the President of the United States
– para as áreas do Planeamento de Segurança. Já no final da sua
vida foi um critico feroz das administrações de George
H. W. Bush
e de Bill
Clinton,
não sem antes passar, nos anos 80, por um controverso cargo de conselheiro de
segurança do governo do apartheid
da Africa do Sul, liderado por P.W.Botha,
embora podemos dizer em sua defesa que tivesse aconselhado reformas neste
sistema e aconselhado ao gabinete governante medidas de segurança
que pudessem lidar com a mudança do sistema de apartheid,
com que então se pensava acabar e o qual não se concretizou, para outro mais inclusivo e democrático.
O
livro serve, e o autor assume-o no Prefácio, para fundamentar um
artigo que este tinha publicado no verão de 1993 – ou seja três
anos antes – na revista Foreign
Affairs
intitulado The
Clash of civilizations?.
E aqui ficamos com a grande dúvida se o livro serve para fundamentar
uma teoria já existente, qual a credibilidade cientifica do mesmo?
Bem isso não lhe retira o mérito ou o demérito das analises que
faz e da fundamentação que usa mas perpassa por todo o livro esta
teoria o que lhe retira alguma credibilidade. Para além de que
algumas fundamentações históricas são incompletas e muito
dirigidas para o objectivo final que é provar que existe
um choque de civilizações
e que tal irá
influenciar o futuro da ordem mundial.
Mas
vejamos o livro foi escrito em 1996 e de entre toda a especulação
que tem um livro com essa data, existem quase 19 anos depois, um
conjunto de analises que se tornaram certeiras, irei referir três
que me parecem as mais certeiras: primeiro sobre uma provável guerra na Ucrânia que oporia a Rússia
– estado-núcleo
da chamada por este civilização Ortodoxa
– e a civilização Ocidental;
segundo o papel dos chamados países
dilacerados
acertando não só na evolução negativa da Rússia,
como da provável islamização da Turquia,
como e por fim da aproximação e reforços dos laços entre os
E.U.A.
e o México;
em terceiro lugar acerta completamente na
ameaça
islâmica –
e no choque que esta civilização faz com todas as outras – que
então tinha apenas esboçado algumas pequenas e tímidas ameaças.
Mas erra em muitas outras análises e apercebo-me que se este não
tentasse forçar tanto a sua teoria do tal choque
de civilizações
talvez
as suas analises fossem bem mais certeiras!!!
No
final vemos que o autor não defende que este choque seja algo de
inevitável, aliás o seu ultimo capitulo, intitulado A
civilização como um bem comum,
defende apenas que uma ordem internacional assente em civilizações será a mais segura
salvaguarda contra uma guerra mundial e até dá alguns exemplos de
como poderemos superar as diferenças entre estas e quais os valores
que todas estas comungam. Por isso e até pode ser, que todo o seu
livro seja um exercício um bocado forçado num determinado sentido,
mas está longe de ser um incendiário irresponsável que muitos dos
seus críticos que leram o seu livro lhe atribuem de forma, essa sim,
irresponsável e incendiária.
Como
a próxima semana é a primeira 2.ª feira de Março, e
analiso/critico livros de romance, poesia, viagens e best sellers,
escolhi analisar um livro de viagens, o que escolhi foi O Vento dos Outros
de Raquel Ochoa.
Saudações a todos os leitores e boas leituras,
.'.Sandro Figueiredo Pires.'.
Etiquetas:
ameaça islâmica,
civilizações,
guerra na Ucrânia,
O Choque das Civilizações,
Samuel P. Huntington,
Sandro Figueiredo Pires
Poesia em matéria fria: Vinicius de Moraes
Siga a página no facebook: https://www.facebook.com/poesiaemmateriafria
domingo, 22 de fevereiro de 2015
ALGO ME MULTIPLICA
O problema da angústia destas personagens em colisão umas com as outras e sem entendimento suficiente. Todas elas estruturas concebidas sobre fundações de confiança escassa. Todas elas abanando por tudo o que é lado e por isso cada uma delas ignorante em relação às outras e a tudo. A personagem principal talvez o espaço (o espaço sem dúvida) em que existem porque, se bem virmos, é esse espaço que as regula e lhes dá a vida tão necessária para continuarem em colisão. E esta escrita tão dura porque inventar pessoas, que coisa mais difícil. Mas de criador nada tenho. A maneira como as palavras se constroem e vão dando entrelinhas a pessoas inventadas é-me um mistério. Vou guardando afeição por algumas delas. E depois o tempo a criar-se, dá-me continuidade e coloca-se responsável por tudo o que é detalhe. Uma corrente de ar e não tarda eu doente de cama. Melhor porque assim talvez as personagens doentes e se as personagens doentes talvez incapazes de continuarem em colisão. Agora um cão tão bonito e a queixar-se da velha infância que nunca teve. Também ele um mar em forma de silêncio. Escrevo porque lhe escuto o deserto. Acompanha-me os dedos que correm cada vez mais rápido e vê-me o vómito em forma de desrespeitos à gramática. As personagens e os livros com particularidades. Ganham vida e constroem-se de forma independente de mão alheia. Começam a ter vontade própria e aí já nada a fazer. Na cozinha chora-me a Inês e na sala o João sem ver importância nisso. Têm filhos pais e uma casa que só é possível porque o preto da tinta e o branco da página têm tamanha perfeição no contraste. O autor que nunca o foi perde o poder que nunca teve e passa a ser um espetador (espetador que estranho isto), um leitor no meio de todos os leitores. Eu assim neste momento. Não tenho o mais pequeno mando no que escrevo. Não sou o escritor deste livro. Escreveu-se sozinho.
Sempre soube que as árvores dançam
"O que importa é fazer da vida uma obra de arte, como se literatura e existência estivessem ligadas, unidas no mesmo andamento - "Pessoalmente, não consigo separar a vida da literatura e vice-versa. Está tudo profundamente ligado. Para mim, é assim: tem de haver uma grande coerência na maneira como se escreve, como se vive, como se está no mundo, senão nem a vida nem a poesia fazem qualquer sentido (...)".
Prefácio do livro Al Berto, Diários, por Golgona Anghel
Assírio & Alvim
Marta Antunes, Jardins da Gulbenkian, 2015
Árvore a dançar
Subscrever:
Mensagens (Atom)