sábado, 6 de outubro de 2012

Poema à noitinha... Pedro Homem de Mello



Porque o poeta portuense tem palavras a dizer nesta noite de sábado,
um poema para recordar. Boa noite.

"Resgate

Não sou isto nem aquilo
É o meu modo de viver
É, às vezes, tão tranquilo
Que nem chega a dar prazer...
Todavia, onde apareço,
Logo a paz desaparece
E a guerra que não mereço
Dá princípio à minha prece.
És alegre? Vês-me triste?
Por que não te vais embora?
Quem é triste é porque é triste.
E quem chora é porque chora.
Tenho tudo o que não tens
Tenho a névoa por remate.
Sou da raça desses cães
Em que toda a gente bate.
Só a idade com o tempo
Há-de vir tornar-me forte.
A uns, basta-lhes o vento...
Aos Poetas, basta a morte."


Pedro Homem de Mello (Porto, 1904 - 1984)
in "Eu Hei-de Voltar um Dia"

a-ver-livros: tatuagem com Lorenzo Mattotti

Posso ler no meu corpo
como leio neste livro
as marcas que deixaste
quando partiste

Viraste a página
e eu fiquei a tentar editar
o que resta de nós

* para conhecer mais sobre o pintor italiano Lorenzo Mattotti,
que vive em Paris, siga o link www.mattotti.com

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

1º Parágrafo: Eugénie Grandet


Em certas cidades da província encontram-se casas inspirando à vista uma melancolia igual à que produzem os claustros mais escuros, as charnecas mais sombrias e as mais tristes ruínas. Há, talvez, nessas casas o silêncio do claustro, a aridez das charnecas e as ossadas das ruínas: e nelas é tal a tranquilidade da vida e do movimento, que um estranho as julgaria desabitadas se não encontrasse de súbito o olhar pálido e frio de uma pessoa imóvel, cuja figura monástica se debruça da sacada, ao ruído de passos desconhecidos. Tais sintomas de tristeza notavam-se na fisionomia de uma habitação situada em Saumur, ao fim da rua acidentada que conduz ao castelo, pela parte superior da cidade.


* Tradução revista por João Grave

a-ver-livros: memórias e Francine Van Hove

Mergulho em ti
como mergulhas na minha memória
sem pedir licença

faço-me extensão
do que somos juntos
serena sereia amando pirata
enredo de livro de cordel
final obviamente feliz

bendita a literatura
que nos mantém juntos
quando a morte ceifou
a verdade

* para conhecer mais sobre a pintora francesa Francine Van Hove
siga o link www.francinevanhove.com

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

1º Parágrafo: Parker Pyne Investiga


Uns quantos grunhidos, uma voz indignada perguntando porque razão não o deixavam em paz, Mr. Packington bateu com a porta e saiu para apanhar o comboio das 08.45 para a City. Mrs. Packington sentou-se à mesa do pequeno almoço. As suas faces estavam ruborizadas, os lábios contraídos. Não chorava apenas porque, subitamente, a mágoa tinha dado lugar à raiva. – Não vou consentir – disse Mrs. Packington. – Não vou consentir. – Manteve-se durante alguns instantes a cismar e, de seguida, murmurou: - A serigaita! Que desavergonhada! A manhosa! Como pode o George ser tão imbecil!

* Tradução Hugo Santos
* Revisão da tradução Carolina Vasconcelos

a-ver-livros: à espera do sol com Gerard Boersma

O mundo passa-me ao lado
mas não há pressa no livro que leio

nem comboios que se cruzam
nas entranhas da terra

nem mulheres de perna traçada
como quem espera o futuro
sem confiar que ele chegue 

Estou suspenso de mim
e ainda não vi o sol

* para conhecer mais sobre o pintor holandês Gerard Boersma siga o link www.gerardboersma.nl


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Aldous Huxley in "Sobre a Democracia e Outros Estudos". O significado do Ritual.

«A ânsia pelo ritual e pelas cerimónias é forte e generalizada. Quanto é forte e está largamente espalhada vê-se pelo ardor com que homens e mulheres que não têm nenhuma religião ou têm uma religião puritana sem ritual se agarram a qualquer oportunidade para participarem em cerimónias, sejam elas de que espécie forem. A Ku Klux Klan nunca teria conseguido o seu êxito do pós-guerra se se aferrasse aos trajes civis e às reuniões de comissões. Os Srs. Simmons e Clark, os ressuscitadores daquela notável organização, compreendiam o seu público. Insistiram em estranhas cerimónias nocturnas nas quais os trajes de fantasia não eram facultativos mas sim obrigatórios. O número de sócios subiu aos saltos e baldões. O Klan tinha um objectivo: o seu ritual simbolizava alguma coisa. Mas para uma multidão ritofaminta a significação é aparentemente supérflua. A popularidade dos cânticos em comunidade mostram que o rito, como tal, é o que o público quer. Desde que seja impressivo e provoque uma emoção, o rito é bom em si próprio. Não interessa nada o que ele possa significar. À cerimónia dos cânticos em comunidade falta todo o significado filosófico, não tem nenhuma ligação com qualquer sistema de ideias. É simplesmente ela própria e mais nada. Os rituais tradicionais da religião e da vida quotidiana sumiram-se deste mundo vastamente. Mas o seu desaparecimento causou pena. Sempre que as pessoas têm oportunidade, tentam satisfazer a sua fome cerimonial, mesmo que o rito com que a mitigam seja inteiramente destituído de significado.»


*Aldous Huxley foi escritor e poeta. Nasceu em Inglaterra, corria o ano de 1894. Morreu em 1963.

1º Parágrafo: A Morgadinha dos Canaviais


Ao cair de uma tarde de Dezembro, de sincero e genuíno Dezembro, chuvoso, frio, açoutado do Sul e sem contrafeitos sorrisos de Primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretensiosamente gozava das honras de estrada, à falta de competidora, em que melhor coubessem.


* Júlio Dinis, pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, médico e escritor, faleceu, vítima de tuberculose, com apenas 32 anos.

a-ver-livros: ler é amor, sabias Yuroz?

Quero ler para ti
baixinho
ao ouvido

quero que a minha voz
te toque o âmago 
e te enrole as entranhas

quero que nunca esqueças
o calor das minhas vogais
a ventania que fazem as consoantes
o rumorejar quando se encostam umas nas outras
e se amam

como eu te amo
quando te leio
baixinho

* para conhecer mais sobre o pintor arménio Yuroz siga o link www.yurozart.com

terça-feira, 2 de outubro de 2012

5º Encontro Nacional de Ilustração



A 5.ª edição do Encontro Nacional de Ilustração decorrerá, este ano, de 4 de Outubro a 30 de Novembro, em São João da Madeira, e incluirá no seu programa, entre 15 e 20 de Outubro, oficinas de ilustração, mesas-redondas, lançamentos de livros, conferências e exposições.

Estão já confirmadas as presenças de 55 ilustradores nacionais e internacionais, havendo ainda a participação de figuras de áreas como a arqueologia e a arquitectura.

O programa completo assim como a lista de ilustradores e convidados, pode ser consultado no site no Encontro.

O Encontro apresenta-se assim ao público, em forma de verso livre:

Lápis, tu conténs um ciclo de vida inteiro,
Inscrevendo a passagem do tempo nas tuas entranhas
Permitindo, porém, a inscrição de uma marca quase atemporal.
Lápis, em único testemunho do nascimento, da vida e da morte da árvore,
Bem podes orgulhar-te da tua origem na terra,
Do teu crescimento para o céu,
Da tua formação com o fogo,
E da tua aliança transformadora com a água.
Como uma árvore genealógica, inscreves em ti o genograma dos quatro elementos vitais,
Das quatro componentes fundamentais que estruturam um conto,
Ancestral, magnífico, imemorial.
Na tua essência encontra-se a fusão dos princípios, eros e tanato,
Mas também a aliança, sem falha, alfa e ómega, dos elementos,
Para que estes escrevam outras histórias de vida.
Lápis que risca, que marca, da tua rigidez nasce o movimento;
Lápis que esboça, que desenha, da tua negrura irradia a cor, surge a luz;
Lápis que estrutura, que constrói, da sua solidez emerge o esqueleto de um plano, a coluna vertebral de um projecto;
Lápis que planeia, que projecta, da tua redução pelo fogo brota o futuro, tão amplo, abrindo o universo dos possíveis.
Lápis de cor, lápis de cera, lápis de olhos, lápis de lábios,
De mina mole ou dura, rija ou tenra,
Sublinhas um detalhe, contornas um limite, evidencia um de muitos aspectos,
Com um traço, sempre único, talvez belo ou nem por isso.
Lápis vermelho, apontas o erro, desvalorizas a tentativa;
Lápis azul, censuras a ideia, aniquilas a diferença.
Lápis grande, pequeno,
Largo, delgado,
Redondo, achatado ou pentagonal,
Decorado ou banal,
Comum ou especial,
Liso ou com borracha,
Escorregadio ou anti-deslizante,
Para o operário, para o general,
Para o simples ou o genial,
Para o estudante e o doutor,
Na mão, direita ou esquerda,
No pé, até,
Nos bolsos, de todas as formas e feitios,
Ou atrás da orelha
O merceeiro, o carpinteiro e o poeta,
Estes guerreiros do quotidiano e da alma,
Precisam de ti,
Pois assinalas o diário como o fenomenal,
O vulgar e o espiritual.
Lápis, lapiseira,
Grafite, grafema,
Afias o decorrer do tempo,
Aparas a distribuição do espaço,
Desafias sempre a percepção do sentido.
Lápis novo, usado e mesmo velho,
Permites a transformação do natural em funcional,
Do branco da página em arte,
Das letras em mensagens,
Do vazio da folha em vastos espaços espaçosos,
Da textura real, da gramagem do papel em viagens indeléveis,
Do caos em memória estruturada.
Lápis, pouco importam, afinal,
As tuas cores, as tuas formas, as tuas texturas, os teus tamanhos e até mesmo a tua idade,
Pois exorcizas o genograma,
Explicando a genealogia das origens,
A conjuntura do presente
Onde se fundiu – diluído ou espesso – o passado ainda activo.
Lápis, novo ou já todo roído,
Gostaria que traçasses projectos de amor – sempre planos de construção – erguidos a dois e em duro…
Que destruísses todo e qualquer muro
Que não fosse de ternura um abrigo
E que arvorasses sonhos alcançáveis
A partir de uns simples traços
Como o bom e o belo, fortes e ligeiros,
Assim transformados em laços,
Então unidos em abraços…

1º Parágrafo: Sombras no Capim


Ao retomar aqui, após 25 anos, alguns episódios da minha vida em África, perfila-se do limiar de todas essas recordações uma bela figura erecta e verdadeira: a de Farah Aden, o meu criado de raça Somali. A qualquer leitor que queira sugerir-me a conveniência em escolher uma personagem de maior envergadura, desde já respondo que tal não seria possível.



* Tradução de Helena Ramos

a-ver-livros: encontrar o amor e Charles Dana Gibson

Tentei perceber o que estavas a ler;
nada como avistar uma capa 
para saber se quero casar contigo
ou fugir para o mais longe possível

não conheço outro modo 
de encontrar o amor

* para conhecer mais sobre o americano Charles Dana Gibson
(1867-1944) siga o link  www.illustration-art-solutions.com/charles-dana-gibson

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Poema à noitinha... Wislawa Szymborska

ABC

«Jamais saberei
o que A. pensava de mim.
Se B. acabou por me perdoar.
Por que razão fingia C. que tudo estava bem.
Qual a quota-parte de D. no silêncio de E.
O que esperava F. se acaso algo esperava.
Por que fingia G. sabendo de tudo.
O que tinha H. a esconder.
O que queria I. acrescentar.
Se o facto de eu estar por perto,
teve algum significado
para J. e K. e para o resto do alfabeto.»


*Gentilmente retirado do mural do Facebook de Clara Amorim. 

1º Parágrafo: Os Alferes


Eu lá afeiçoara o meu recanto, entre dois abarracamentos do batalhão, e entretinha-me, pelas tardes, e ler provocatoriamente a Seara Nova e a Vértice de um molho túrgido que havia levado para África. Ninguém se deu por provocado, o que é a medida da importância que me concediam. Mesmo os tipos da PIDE estavam-se marimbando para as ostentações progressistas dum alferes engenheiro.



a-ver-livros: a lição e Linda Olafsdottir

Na desarrumação dos dias
encontro-me e desencontro-me

há um livro a meio
e uma cadeira caída
e uma lição para aprender
e ensinar

* para conhecer mais sobre Linda Olafsdottir,
ilustradora da Islândia, siga o link www.lindaolafsdottir.com

domingo, 30 de setembro de 2012

Oração ao Sol

(ao domingo) Letras Focadas 
*texto de EME.

“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”

Nuvens em flocos de algodão, brancas e cinzentas, prelúdio de uma natureza que começa a declinar, bailam como se o céu fosse uma pista de dança.
Sopra um vento ameno, misto de um quente que arrefece lentamente.
Olho em redor e vejo-o ali cabisbaixo, neste fim de tarde com sabor a Outono.
De semblante inexpressivo, sem vida, quase estátua gasta e abandonada.
Penso:
- O fim da linha! O sangue corre-lhe nas veias, mas a vida apagou-se.

Sinto ao meu redor as sombras que vão parecendo. O Sol, escondido atrás das densas nuvens, é agora um rasgo de luz, como se uma espada fosse e que pela força de uma vontade inquebrável, tivesse cortado a meio as paredes de uma prisão.
Fecho os olhos e deixo-me acariciar por este inesperado calor de luz.
Não estou só nesta entrega.
Ele que antes, era vida esvaída, é agora um rosto erguido, vibrante, pujante, iluminado pelo raio do sol que parece só existir apenas para ele.
Fico imóvel; em suspensão. Não quero que o meu respirar perturbe aquele estado hipnótico, quase ascético que em frente de mim, acontece. O mundo em redor pára: não vejo nada, não oiço nada a não ser a voz que em mim vai crescendo.
Não sou mais eu...

...

Perdi a fé!
Rezei a todos os deuses;
Foto de José Oliveira
Implorei a todos os anjos;
Cantei a mais bela Ode à divindade.
E apenas o inferno se tornou casa
O purgatório, o caminho
E o céu, a miragem.
Ardo por dentro sem calor;
Sou estações do ano sem transformação;
E o cheiro das acácias ...
Ah! onde está o cheiro das acácias?

Afaga-me...
Mata este frio que se fez alma
Dá vida esta morte lenta que me consome


Penetra-me...
Quero sentir-te mulher
Amante nas noites deste meu entardecer
Nos teus braços encontrar a mansidão 
E simplesmente adormecer.

Restas-me tu, Sol!
A única carícia, o único afago, a única luz que sinto
nestes meus dias sem esperança,
onde o dia se fez noite
e a vida se tornou morte.
...

Escurece!
Abro os olhos.
O Sol partiu e no lugar daquele homem há agora uma estátua de rosto brilhante, cheio de luz e vida a que todos chamam:
"Oração ao Sol"

Revista LER prepara o seu primeiro festival


O pretexto não podia ser melhor. Para celebrar os seus 25 anos, a revista LER prepara o seu primeiro festival: seis dias de cruzamentos entre cinema e literatura, numa parceria com a EGEAC e a Câmara Municipal de Lisboa.

De 4 a 9 de Dezembro, as portas do Cinema São Jorge, em Lisboa, estarão abertas para a exibição de 25 filmes — selecção de Pedro Mexia —, debates, concertos, entrevistas, conferências, exposições, programas de rádio, contadores de histórias, entre outras propostas.

Mais detalhes sobre a programação do festival serão anunciados em Outubro.

a-ver-livros: um gato, um poeta e Suzanne Clements

"Estou tão farto de ver fotografias de gatos, é um cliché a meu respeito", disse o poeta Manuel António Pina numa entrevista que deu já este ano. E, no entanto, é ele que me ocorre quando olho para este quadro. Nem me atrevo a arranhar poesia, deixo apenas o olhar neste domingo que corre lento. E talvez um trecho de um poema do poeta.

"Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem"


* para conhecer mais sobre a pintora americana Suzanne Clements
siga o link art.suzanneclements.com