sábado, 29 de junho de 2013

Gotas na minha cabeça


Pedaços de Primavera escondidos entre as gotas de chuva que teimam em regar estes dias que não nos largam o presente. Reflexos de luz em cada uma dessas gotas a projectar um pedaço de passado que teima em não largar a memória de um tempo já ido.

Os pés a chapinhar no abandono de partes de água caída do céu no chão de uma cidade triste e abandonada. Um corpo nela esquecido que se deixa empurrar pelo vento no tempo e que esquece a sua prórpia existência.

Uma pessoa residente nesse corpo que desconhece o que a rodeia. Já pouco do que está ali lhe conta uma história.


Texto e Foto: Pedro Ferreira

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Valter Hugo Mãe fala sobre Nelson Mandela

A memória

O Nelson Mandela está a perder a memória e não vai lembrar-se nunca mais de que é um homem sagrado. Morrerá anónimo para si mesmo, indiferente ao mundo e ao quanto ajudou cada um de nós. Vai desconhecer como foi perseverante, como conquistou a lucidez, não vai saber da sua inteligência superior ou da magnitude da sua beleza.

Leio a notícia enquanto atravesso uma extensa sala de casino em Macau. A alcatifa florida engana o chão. Julga o chão que é perfumado, que vive de alguma forma, que sonha. Pousam as mesas e as cadeiras onde os homens obstinados agem automaticamente, como máquinas de estender e recolher fichas. Ausentes. Sem nada dentro. Penso que estou num lugar com corpos sem nada dentro e que o Nelson Mandela ficará assim, ausente, uma máquina de si mesmo apenas para respirar mais um tempo, até não respirar.

Faltava comover-me em Macau, se é verdade que me ando a comover nas terras todas. Passei de olhos no jardim do chão, a fazer de conta que o jardim se levantava e que punha o mundo bonito para que a minha tristeza fosse acudida pela sensibilidade que nos inspiram as coisas bonitas, as coisas vivas. Queria que a vida aparente fosse efectiva. Que a vida se inventasse por um desenho, se criasse pela semelhança.

Somos todos ainda feitos dos mais absurdos preconceitos. Ainda vamos na primária quanto ao respeito e à aceitação. Somos horríveis para as diferenças, os diferentes, sem entendermos que para sermos iguais disfarçamos tudo, para parecermos iguais. Somos contra os gordos e os feios, os sensíveis e as mulheres, somos contra os pretos, os amarelos e os vermelhos, os de olhos em bico, os morenos, os muito brancos, as loiras, as crianças, os funcionários do McDonalds. Somos contra toda a gente. Metemos nojo.

Eu queria ser merecedor do Nelson Mandela. Queria que, se algum dia me tivesse visto, pudesse achar-me imperfeito sem tragédia. Apenas imperfeito e muita vontade de chegar onde ele chegou: ao lugar puro de sentir, de pensar. O lugar puro de se ser. Quem se objectiva por menos, pensa mal da oportunidade de viver.

Quando as notícias vierem dizer que o Nelson Mandela já não sabe quem é, tenhamos a fortuna de lho dizer e de o dizer a toda a gente e para sempre. Quem não tiver a fortuna de saber acerca do Nelson Mandela anda vazio dos bolsos da alma. Tem muito menos hipóteses de se engrandecer à altura da incrível ocasião de existir. Penso assim, que são homens como ele que apontam o quanto é incrível existir. O resto pode ser apenas aparente. Um casino de flores falsas e gente perdida para dentro da sua própria couraça.

Casa de Papel, crónica
Valter Hugo Mãe
revista 2, jornal Público, domingo, 24 de março de 2013


1º Parágrafo: Clea


As laranjas foram este ano mais abundantes e opulentas. Brilhavam nos seus ninhos de um verde-pálido, como lanternas embaladas pelo vento, aparecendo aqui e alem por entre as árvores batidas pelo sol. Era como se quisessem celebrar a nossa partida da ilha – porque finalmente a muito esperada mensagem de Nessim tinha chegado como uma intimação para regressarmos ao mundo das trevas. Uma mensagem que ia atirar-me inexoravelmente de volta para a cidade que para mim tinha sempre pairado entre a ilusão e a realidade, entre a substância e as imagens poéticas que o seu próprio nome despertava em mim. Uma memoria, pensei, que tinha sido falsificada pelos desejos e intuições e apenas semirealizada no papel. Alexandria, a capital da memória! Todos os escritos que fui buscar aos vivos e aos mortos, até eu próprio me tornar uma espécie de pós-escrito de uma carta que nunca foi remetida...


* Edição de Cecília Andrade
* Tradução de Daniel Gonçalves
* Revisão de Clara Joana Vitorino 


a-ver-livros: acqua e Suwannee Sarakana

Se a água
não pinta
de onde vem a cor
com que me inundas?

Anda, salpica-me
de ouro e magenta
e meia dúzia de palavras
que ainda não foram ditas

* para saber mais sobre a pintora tailandesa Suwannee Sarakana
siga o link www.suwanneepainting.com

quinta-feira, 27 de junho de 2013

É do borogodó: a cataplana

Todas as paredes dissolvidas no caldo encorpado do amor (não há tijolos desastrosos de promessa). No silêncio, na casa vazia, plenos do que não fomos. Trancamo-nos na justa cataplana em sobreposições de barbatanas para fazer ferver.

foto de Fernando Fernandes
Deitei-me sobre ti, amor, deslizei as mãos sobre teu rosto; vinha ali tão dedicada a compreender as linhas da tua expressão: sulcos tensos, risos contidos, o brilho gelatinoso do olhar cego e os lábios finos estreitando a pergunta calada entre dentes. Beijei tua boca, amor, e beijei novamente (e novamente). Cavei um poço fundo para enterrar o futuro.

O palato cocegado pela ponta da língua.
Bem que eu te disse:
- Se o beijo é bom, imagine o resto. Se o beijo é bom, amor, não sobra nada.
Tuas mãos ardilosas afrouxaram botões e ganharam espaço. Braços estendidos, salto de escápulas.
- Deitada sobre teu ventre, faz-me visão convulsiva.
Parecida a uma ave de plumas alvas. Uma garsa de pernas longas, meias pretas, e com uns olhos azuis que parecem faiscar estrelinhas. Em Noite alta é só o que se vê: tuas penas brancas.
- Vou me deitar sobre ti e voaremos para bem distante.

Voo de espuma. O gosto do sal na pele parece doce. A cor desfalece nos lábios frouxos de ofegar. E a voz que murmura baixinho suplica:
- Mergulha ao fundo de mim, amor. Resgata-me da dúvida.
Bailam alvoroçadas pálpebras e quadris que serpenteiam. Não há bússola, nem mapa, mas a noite alta se ilumina de estrelas e as carícias medem distâncias a palmos. Os amantes não temem naufrágios.
- Tens-me da nuca ao umbigo. Tens-me da cintura ao tornozelo. Todo lugar onde possas se demorar.
Asfixiados no mar, amam-se na espuma, plumas, a cama cheia.
- Conheci tua verdadeira voz nos teus gemidos.

Penélope Martins

1º Parágrafo: Mountolive


Na sua qualidade de aspirante excecionalmente prometedor tinham-no mandado por um ano para o Egito a fim de aperfeiçoar os conhecimentos da língua árabe, adido à Alta Comissão como uma espécie de escriba enquanto esperava a nomeação para um primeiro lugar diplomático; mas conduzia-se já como qualquer jovem secretário perfeitamente integrado e consciente das responsabilidades que o esperavam. Simplesmente, nesse dia era um pouco mais difícil conservar a reserva habitual, tão excitado se encontrava com a pescaria.


* Edição de Cecília Andrade
* Tradução de Daniel Gonçalves
* Revisão de Clara Joana Vitorino 

a-ver-livros: febre e Miháy Bodó

Mergulho na maresia
que sobe ao andar alto
e a febre não baixa

Elevo o olhar na brisa
e não serena a alma

Maldita a alma em brasa

* para conhecer melhor o artista húngaro Miháy Bodó
é só seguir o link www.artebodo.com

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Clarice em Lisboa

Já viram o teaser da exposição em Lisboa: Clarice Lispector - A hora da Estrela? Se não viram, então convido-vos a assistir.

1º Parágrafo: Balthazar


Tonalidades paisagísticas: castanho-bronze, céu abrupto, sol cor de pérola com sombras nacaradas e reflexos cor de malva. A poeirada leonina, a poeirada real do deserto: túmulos de profeta tomando tons de zinco e cobre quando o crepúsculo desce sobre o lago antigo. As suas imensas brechas como charcos deixados por marés celestiais; verde e limão puxando para o metálico, para um véu singelo cor de abrunho, húmido, palpitante: ninfa de asas viscosas. Taposíris morreu aqui, entre as colunas e as balizas derrubadas, desaparecidos os Arpoadores... Mareotis debaixo de um céu lilás escaldante.


* Edição de Cecília Andrade
* Tradução de Daniel Gonçalves
* Revisão de Clara Joana Vitorino 

a-ver-livros: celebração e Olaf Hajek

Celebre-se a troca
dos nossos olhares

das mãos, dos corpos
o roçar das nossas sombras
na calçada fervente
Celebre-se o confundir
das vozes e dos silêncios
no ar estremunhado
dos estorninhos
Celebre-se a morte
escandalosa 
e efémera 
das nossas solidões

* para saber mais sobre o pintor alemão Olaf Hajek
siga o link www.olafhajek.com

terça-feira, 25 de junho de 2013

Maria Isabel Matos Pereira, África e poesia. Pequenos poemas da antologia «Porque Sim, poesia a doze»

Da antologia Porque Sim, poesia a doze - editada em Março de 2000, saem estes versos. 

Crepúsculo VII

Há uma figueira ao fundo do quintal que fala em silêncio
quando o entardecer passa.
Que graça!
E o entardecer senta-se à beira de um poço à sombra da figueira.
  
Crepúsculo XI

A tarde fechou-se em antracite e cinzas puros.
Nem um fiapo cor-de-rosa aflora as nuvens...
Oh, além há uma fumarola branca!
Sem pressa
o nevoeiro sai do rio e sobe a encosta a caminho de casa.

*Maria Isabel Matos Pereira
Convidada do Clube de Leitores, esta semana.


É do borogodó: subjugados, rendidos, dominados

Guarde o amor.
Deixe o resto de lado.
Abra o ralo,
Deixe ir.
O resto não resta.
O resto não é.
O resto, cadê?


Penélope Martins

1º Parágrafo: Justine


O mar está novamente agitado hoje, com rajadas de vento que despertam os sentidos. Em pleno inverno, a primavera começa a fazer-se sentir. Toda a manhã o céu esteve de uma pureza de pérola; há grilos nos recantos sombrios; o vento despoja e fustiga os grandes plátanos...



* Edição de Cecília Andrade
* Tradução de Daniel Gonçalves
* Revisão de Clara Joana Vitorino 

a-ver-livros: ser ou não ser e Nanda Corrêa

Serei o que quiser
mundo dentro
mundo fora
serei o que sonhar
mundo novo
serei o que serei
e sei que apenas
serei a cereja
no topo de mim
quando for de mim
o sopro primeiro

* para saber mais sobre a ilustradora brasileira Nanda Corrêa
basta seguir o link http://kammiatelier.com/

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Apresentação do livro “Hei-de amar-te mais” de Tiago Salazar

Apresentação do livro “Hei-de amar-te mais” de Tiago Salazar, no dia 28, sexta-feira, pelas 20:30, num jantar na “Flor de Paranhos” (rua da Igreja de Paranhos, 162). O livro, editado pela Oficina do Livro, será apresentado por Carlos Tê e Manuela Matos Monteiro. O jantar condiz com a quadra: entradas, sardinhas assadas com os competentes acompanhamentos, salada de fruta, vinho e café (12€).

Adiram ao evento do facebook para mais informações: https://www.facebook.com/events/1376043595946094/?fref=ts

Hei-de Amar-te Mais
de Tiago Salazar, 2013.
Editor: Oficina do Livro

Hei-de amar-te mais é o diário íntimo de um escritor em viagem. Os destinatários são a sua mulher e os seus filhos e todos os que acreditam no amor como uma forma de atravessar a vida e o mundo. É também um livro de fragmentos, memórias, pensamentos, confissões, a par de diálogos com gente comum e grandes autores universais, como Pablo Neruda, Rabindranath Tagore ou Clarice Lispector, que lhe falam do amor em que se revê. Uma escrita sensível e delicada onde se impõem emoções intensas e contraditórias na vida de um viajante tantas vezes solitário.

1º Parágrafo: O Primeiro Amor


A serpente negra. Sentes-te atraída! Encontras-te por trás da casa alta, de telhado de madeira cor de estanho e encaminhas-te para o pântano que, lá em baixo, brilha ao calor e desliza em direcção ao rio Cassadaga. É a primeira manhã que passas em Ransomville; saltas da cama dura e que te é estranha, vestes-te rapidamente e sais de casa para ver o rio de perto. Como a querer avisar-te, o sol dá-te, ao de leve, uma palmada na testa; já está calor e ainda nem oito horas são. Corre, corre! Os pés atolam-se no terreno empapado. Por todo o lado, a gritaria agressiva e agitada de aves, rãs e cigarras. No sopé da colina, alguém colocou umas tábuas à entrada do pântano: fica-se na dúvida se será seguro caminhar sobre elas, de tão podres que estão.


* Tradução de Carvalho Oliveira

a-ver-livros: sol e sombra e Alex Nabaum

Na sombra, na silhueta
no braço estendido da hora
no mistério fresco de ti
na enigmática serenidade 
do teu abraço

O calor abrasador
da tua história

* para saber mais sobre o ilustrador Alex Nabaum
siga o link www.facebook.com/alexnabaumstudio

domingo, 23 de junho de 2013

Poema à noitinha... António Ramos Rosa

O Jardim

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

*António Ramos Rosa, in Volante Verde.

Garfield e o seu manifesto!

O génio de Jim Davis.

Semana Clarice - Ser feliz

Termina a semana dedicada a excertos e pensamentos de Clarice Lispector. Esperemos que tenham gostado. Em breve concluiremos a leitura do seu livro. Fiquem connosco.

Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia amordaçante: assusto-me. Sou tão medrosa. Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não têm pudor, as leis a obedecer, o assassinato — tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus.

*Clarice Lispector, in Um Sopro de Vida - ed. Relógio d'Água. 

*Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres 
é leitura conjunta neste mês.

Maria Isabel Matos Pereira, África e poesia. Esta semana, no Clube de Leitores

É com enorme alegria que trago uma amiga dos tempos dos livros a este espaço e lhe dou voz. Uma pessoa interessada no meu percurso, sempre presente com um comentário de força e incentivo. 

Assim se apresenta Maria Isabel Matos Pereira. Vamos ter alguns dos seus poemas aqui pelo Clube de Leitores. Fiquem connosco. 

Nasci em Luanda a 1 de Abril de 1952 e aí fiz os meus estudos primários, liceais e superiores tendo acabado o curso superior de Economia na FEP em 1977, pois a descolonização trouxe-me a Portugal em 1975, estava eu no quarto ano de Economia. Na primária "declamava" os poetas que povoavam os livros de leitura: António Correia de Oliveira e Afonso Lopes Vieira. E eu gostava de dizer essas poesias simples..."Os passarinhos tão engraçados/Fazem os ninhos com mil cuidados/São para os filhinhos que estão para ter/Que os passarinhos os vão fazer//(...). Mas a descoberta da poesia aconteceu mesmo aos 14 anos muito por conta de uma das minhas professoras de língua portuguesa, a Dra. Irene Calapez, também ela poetisa. Através dela descobri Pessoa, Torga, Régio, António Nobre, Guerra Junqueiro, Cesário Verde, Pessanha, Teixeira de Pascoaes, Mário de Sá Carneiro, Anthero do Quental e também outros escritores portugueses que eram referências importantes, Eça, Camilo Castelo Branco, Ferreira de Castro, Eugénio de Castro entre outros. Também parti à descoberta de autores angolanos/africanos e foi um fascínio: ler o romance "Panguila" de Lília da Fonseca que me falava da Luanda dos anos quarenta. Foi muito bom. Mas poderia falar de outros que fui descobrindo com o correr dos anos...Ruy Duarte de Carvalho e o seu "Chão de Oferta", Luandino Vieira e a sua obra mestra "Nós, os do Maculusso".. A literatura americana descobri-a nos alfarrabistas de Luanda - Jorge Amado e Gabriel García Marquez estavam em voga à época. Os escritores africanos povoaram a minha vida a partir dos anos oitenta do século passado: Wole Soyinka, Mongo Beti, Sembène Ousmane, Christopher Okigbo, Chinua Achebe e tantos outros trouxeram-me o continente africano e a descoberta de verdadeiros tesouros da literatura deste continente.

Foi pouco antes de entrar para a faculdade que comecei a escrevinhar. A publicação surge apenas em 2000 na antologia POIESIS que a editora Minerva começara a editar e que reunia textos/poesias de vários autores novos. Posteriormente fui sendo convidada a publicar em outras antologias de poesia da mesma editora.