sábado, 21 de setembro de 2013

Cormac McCarthy - para ler

É difícil, a vida do pecador. Deus fez este mundo, mas não o fez a contento de todos, pois não?
Não me parece que ele estivesse a pensar muito em mim. 

Pois, disse o velho. Mas em que é que as ideias de um homem o ajudam? Que mundos viu ele que preferia a este? 

Consigo imaginar lugares melhores e melhores costumes.
E vossemecê consegue fazê-los existir? 

Não. 

Não. É um mistério. Um homem vê-se em palpos de aranha para entender a própria mente porque só tem a própria mente para entendê-la. Pode entender o próprio coração, mas não quer. E faz muito bem. O melhor é nem espreitar lá para dentro. Não é o coração de uma criatura que esteja no caminho que Deus lhe traçou. Encontra-se ruindade na mais mesquinha das criaturas, mas quando Deus criou o homem tinha o diabo à sua ilharga. Uma criatura capaz de tudo, capaz de criar uma máquina e uma máquina para criar a máquina. E maldade que se perpetua sozinha durante um milhar de anos, sem ser preciso alimentá-la. 

Vossemecê acredita nisso?
Não sei.
Pois acredite.

*Cormac McCarthy, in Meridiano de Sangue
Relógio d'Água


Ler para uma criança: Shakespeare como nunca o viu


Conheça outras acções que também mudam o mundo em: http://issomudaomundo.com.br

Cronicando pela Ásia... De Banguecoque a Chiang Mai

Banguecoque »» Chiang Mai
02 de Maio 2009

Já era de manhã quando cheguei a Banguecoque. E foi uma roda viva para chegar à estação e arranjar um bilhete de comboio para Chiang Mai - próximo destino, no norte do país.


Não cheguei tão cedo quanto queria - "bilhete esgotado", disse o homem. Não esmoreci e depressa arranjei uma segunda via. Lá ia uma vez mais de camioneta. E, de repente, dava por mim a pensar nas doze horas que levei de PukhetBanguecoque e nas outras doze que me esperavam até Chiang Mai. Cruzar o país demora um dia... mas só se formos em bons transportes.

O relógio avançava, não podia desperdiçar um segundo. Qualquer desvio podia custar o plano de viagem... A estação tinha imensa gente sentada no chão. E vindo lá do fundo, um apito ruidoso! Eram oito horas: tudo de pé para cantar o hino.

O hino nacional toca e as pessoas levam a mão ao coração. Os estrangeiros respeitam o momento, perante a figura do Rei - que está em todo o lado. Concorre com Buda nas adorações do país. Geralmente estão lado a lado.


Parti. Mochila às costas, minha imagem de marca. E a viagem foi logo invadida pelo gelo da camioneta. O fascínio pelo frio que os Tailandeses têm, não impediu que contemplasse belas paisagens, me espantasse novamente com as paragens no meio do nada para deixar pessoas ou simplesmente recolhê-las. As hospedeiras serviram bebidas a todos. O sono resolveu aparecer...


Chegado a Chiang Mai, dei conta que uns alemães tinham sido roubados. As suas malas no porão estavam mais leves... Ficaram sem cartões de memória das máquinas fotográficas e uma máquina de barbear. Pouca sorte, pensei para mim. O meu dinheiro e documentos seguiam numa bolsa que levava à cintura. Na mochila deixava apenas as roupas e os meus livros. Ninguém lhes tocou.

Fui dar uma volta completa à cidade. E que volta! Foi mais de uma hora de passeio, contemplando a muralha que a cerca. Jantei num restaurante italiano e depois passei numa farmácia - estava com uma alergia nas pernas. Mais tarde percebi que tinha origem no creme hidratante que usei para curar o escaldão das Phi-Phi. Nada como arranjar um amigo farmacêutico nesta zona... A alergia passou em pouco tempo.


Rodrigo Ferrão

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Poema à noitinha... Florbela Espanca e a noite que desce

A Noite Desce

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me beijassem!
Assim me adormecessem! Caridosas
Em braçados de lírios, de mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe embriagada, louca!

E a noite vai descendo, sempre calma...
Meu doce Amor tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!


*Florbela Espanca, in Livro de Sóror Saudade


O destino - num livro de Murakami

Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti.

Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.

(...) E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.

E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.

*Haruki Murakami, in Kafka à Beira-Mar

a-ver-livros: sangue e Louai Kayyali

Abram-me a porta
quero fugir
Arranquem-me o livro
chega de histórias
que não vivi
Rasguem-me a alma
preciso de sangue
e tripas
para escrever as linhas 
que faltam 
na página que ainda
não virei

* para conhecer mais sobre o pintor sírio Louai Kayyali
siga o link www.louay-kayali.com


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Poema à noitinha... António Botto

A Noite Suavemente Descia

A noite
Suavemente descia;
E eu nos teus braços deitádo
Até sonhei que morria.

E via
Goivos e cravos aos mólhos;
Um Christo crucificado;
Nos teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco rôxo, cinzento,
Rendas, velludos puídos,
Perfumes caros entornados,
Rumôr de vento em surdina,
Insenso, rézas, brocados;
Penumbra, sinos dobrando;
Vellas ardendo;
Guitarras, soluços, pragas,
E eu... devagar morrendo.

O teu rosto moreninho,
Eu achei-o mais formoso,
Mas, sem lagrimas, enxuto;
E o teu corpo delgado,
O teu corpo gracioso,
Estava todo coberto de lucto.

Depois, anciosamente,
Procurei a tua boca,
A tua boca sadía;
Beijámo-nos doidamente...
- Era dia!

E os nossos corpos unidos,
Como corpos sem sentidos,
No chão rolaram... e assim ficaram!...


*António Botto, in Canções


É do borogodó: "As Cocadas", de Cora Coralina

"Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo. Tinha ajudado a fazer aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando foi cortada em losangos.

Saiu uma cocada morena, de ponto brando atravessada de paus de canela cheirosa. O coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada. Botou no alto da prateleira. Duas cocadas só… Eu esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez, mesmo.

Dias seguidos namorei aquela terrina, inacessível. De noite, sonhava com as cocadas. De dia as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente.

Sempre eu estava por ali perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguando e de olho na terrina. Batia os ovos, segurava gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno e socava cascas no pesado almofariz de bronze.

Estávamos nessa lida e minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado. Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiiii… Apanhou um papel pardo sujo, estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.

As cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.

Aí minha prima chamou o cachorro: Trovador… Trovador… e veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio, lerdo, preguiçoso, nutrido, abanando a cauda. Farejou os doces sem interesse e passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.
Eu olhando com uma vontade louca de avançar nas cocadas. Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida – de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro."

de Cora Coralina

* Cora Coralina nasceu em Goiânia, Centro-Sul do Brasil, no ano de 1889. Aos 75 anos de idade teve publicado seu primeiro livro, "Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais", e se tornou uma das mais importantes poetisas e contistas brasileiras. Cora Coralina foi doceira de profissão e sempre se manteve alheia aos modismos literários. Mulher simples da roça, retratou em sua obra a vida quotidiana do interior do Brasil. Dois anos antes de deixar o mundo, em 1985, Cora Coralina recebeu o Prêmio de Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores muito embora ela nunca tenha se preocupado em ser uma intelectual...



Penélope Martins

Bom Dia, com Octavio Paz

Dia

De que céu caído,
oh insólito,
imóvel solitário na onda do tempo?
És a duração,
o tempo que amadurece
num instante enorme, diáfano:
flecha no ar,
branco embelezado
e espaço já sem memória de flecha.
Dia feito de tempo e de vazio:
desabitas-me, apagas
meu nome e o que sou,
enchendo-me de ti: luz, nada.

E flutuo, já sem mim, pura existência.


*Octavio Paz, in Liberdade sob Palavra 
Tradução de Luis Pignatelli

foto: Daniel Marin

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Poema à noitinha... uma noite longa de Fernando Pessoa

Como a Noite é Longa!  

Como a noite é longa!
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p’r’ao pé de mim...

Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido!
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir
E seja isto o fim.


*Fernando Pessoa, in Cancioneiro

Ler...

Concordam com a dose servida?


Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

a-ver-livros: calar e Micah Bloom

Tenho qualquer coisa
para dizer 
e prefiro calar
mastigar silêncio
que as palavras correm
depressa demais
mal comportadas
sem verem onde põem
os pés
as mãos
vasos quebrados
em varandas alheias

as palavras são meninas
estouvadas
amigas da baderna e de subir
às árvores de fruto 

colher romãs 
ainda pouco maduras

* para saber mais sobre o pintor Micah Bloom
siga o link www.micahbloom.com

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Poema à noitinha... «Nox» de Antero de Quental

Nox

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!


*Antero de Quental, in Sonetos

É do borogodó: batuque na cozinha sinhá não quer

- Batuque na cozinha?

- Xiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, batuque na cozinha sinhá não qué, batuque na cozinha sempre dá alteração.

- Mas se o balaio insiste em ritmar gostoso…

- Melhor não bulir nisso não.

- Tá com ciúme, é?

Siga o link: http://www.youtube.com/watch?v=eWE4e29axew

Batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei o pé
Não moro em casa de cômodo
Não é por ter medo não
Na cozinha muita gente sempre dá alteração
Batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei o pé
Então não bula na cumbuca
Não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
Que dirá o mulato
Eu fui na cozinha
Pra ver uma cebola
E o branco com ciúme
De uma tal crioula
Deixei a cebola, peguei na batata
E o branco com ciúme de uma tal mulata
Peguei o balaio pra medir a farinha
E o branco com ciúme de uma tal branquinha
Então não bula na cumbuca
Não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
Que dirá o mulato
Mas o batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei o pé
Eu fui na cozinha pra tomar o café
E o malandro tá de olho na minha mulher
Mas, comigo eu apelei pra desarmonia
E fomos direto pra delegacia
Seu comissário foi dizendo com altivez
É da casa de cômodos da tal Inês
Revistem os dois, botem no xadrez
Malandro comigo não tem vez
Batuque na cozinha …
Mas seu comissário
Eu estou com razão
Eu não moro na casa de arrumação
Eu fui apanhar meu violão
Que estava empenhado  com Salomão
Eu pago a fiança com satisfação
Mas não me bota no xadrez
Com esse malandrão
Que faltou com respeito a um cidadão
Que é Paraíba do Norte, Maranhão
Batuque na cozinha …

* a canção “Batuque na Cozinha” foi escrita por João da Baiana e ficou muito conhecida na voz de Martinho da Vila. Nesta versão, a filha de  Martinho, Mart’nália apresenta o samba para crianças.

João da Baiana nasceu em 1887 no Rio de Janeiro onde viveu até 1974 – quando virou pó de estrelas. Cresceu em rodas de candomblé e samba, de onde vem sua aptidão natural para o ritmo. João é tido como introdutor do pandeiro no samba, viajou fazendo música com Pixinguinha, gravou com Clementina de Jesus e participou de gravação de Native Brazilian Music  organizada por Heitor Villa-Lobos.

Penélope Martins

a-ver-livros: eufemismo e Frederick Childe Hassam

Porra para mim
sou uma bucólica,
só posso
que fascinam-me as flores
que fecham estações
e pássaros que se congregam
na copa de uma árvore certa
para chilrear o dia fora
e respiro o mar
que vai e vem 
e espuma e tal
e cliché após cliché,
ainda assim com a felicidade
estranha de quem se sabe parte
do todo

Ou talvez apenas
seja incapaz de falar 
da dor e do resto,
eufemismo com pernas
e palavras para gastar 
a tentar manter o monstro
à distância

* para saber mais sobre o pintor impressionista Frederick Childe Hassam
siga o link www.frederickhassam.org

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Afinadí-s-s-i-m-o-S




Depois de quatro anos de namoro, oito meses de noivado, o casamento com dia marcado, oito de Março, um Domingo ainda de Inverno, dia de São João de Deus, padroeiro dos hospitais, dos enfermeiros e dos livreiros, devoção que, como se pagasse apólice, acautelava o bem-estar do corpo e da alma, para mais sua santidade oriunda de Montemor-o-Novo, santo da casa, portanto, qualidade que, para seu desgosto, se revelou defeito obrigando-a a concluir que santos da casa não fazem milagres.
Depois de a costureira lhe ter tirado por duas vezes as medidas, ter cortado e alinhavado o tecido, ter feito a primeira prova, ela de branco, branco-pérola e o metro caríssimo, dizia sobre a seda a costureira, enquanto ela sem ouvir apenas a sentir-se noiva do outro lado do espelho.
Depois de encomendar as flores na florista.
Queria jacintos, jacintos brancos, porque singelos e simples, porque quem percebe de flores sabe que significam alegria no coração.
Depois da notícia, não de página de jornal, de boca em boca, em todas as bocas, antes de chegar aos seus ouvidos, que ele ia ser pai, que havia outra, que para mais de esperanças.
No princípio nem percebeu, talvez não tivesse ouvido bem, tão difícil de perceber como na escola a demonstração matemática de um teorema.
Teorema de Pitágoras, num triângulo rectângulo, o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos.
Como se o amor um triângulo!
Arestas e vértices como lâminas!
Tudo o que sabia sobre o amor ficou devastado.
Tem de reconhecer que sabia pouco.
Depois de quarenta anos.
O tempo simplesmente passa.
Os dias da sua vida iguais, talvez mais lentos, o que os faz parecer ainda mais iguais.
Percebe que precisa de mais tempo para fazer as mesmas coisas.
No caminho para a florista, rotina das manhãs de Sábado, gasta o dobro do tempo, antes, em casa, o dobro de tempo a vestir-se, a pentear-se.
Gasta uma manhã para comprar um ramo de flores.
Gosta de flores frescas, consola-se com a tristeza de as ver murchar.
Não diz murchar, diz fenecer.
Diz fenecer porque lhe parece mais bonito dizer fenecer, apesar de serem poucos os que percebem, enquanto aos outros pouco ou nada lhes importa, que flores são coisas que de poucos dias.
Nunca mais comprou jacintos, o que deixou de a apoquentar.
O que a apoquenta é o tempo.
Demorou a perceber.
Era tão ingénua! Pensa.
Quando percebeu, o seu primeiro pensamento: o tempo quase no fim e uma pessoa a gastar o dobro do tempo em minudências, vestir as meias, calçar os sapatos, atar os cordões.
Agora usa sapatos com cordões para os prender aos pés.
Primeiro foram as semicolcheias, depois as colcheias, as notas a fugirem-lhe das mãos numa velocidade furtiva, como se um cardume de sardinhas, excessivamente velozes para os nós que agora lhe atam os dedos das mãos: artroses.
Depois que se reformou, sobra-lhe, resta-lhe, o coro da igreja.
Correcção: o coro das crianças, que do coro dos adultos também a dispensaram.
Falhas intoleráveis de ouvido, disseram.
Deve ser verdade, pensou, porque quando a notícia lhe chegou aos ouvidos foi difícil de perceber, tão difícil como na escola a demonstração matemática de um teorema.
Teorema de Ptolomeu, considerando qualquer quadrilátero inscrito numa circunferência, o produto das diagonais é igual a soma dos produtos dos lados opostos.
A vida passou, na diagonal ou do lado oposto, pensou sem saber responder ou escolher. Sempre tão indecisa!
Depois ela reformada e solteira e ainda menina. Uma menina de cabelos brancos.
Foi professora de música, professora de piano.
Se lhe perguntassem qual a sua peça preferida, diria a Polonaise de Chopin, porque cheia de semicolcheias, perfeita para contrariar dias de chuva.
Onde vive chove muito, dentro e fora do seu peito, o que é bom para o cultivo de alfaces, espinafres, grelos e nabiças.
Estar sozinha é isto, comer espinafres, ricos em ferro, na companhia da televisão.
Nunca liga a televisão, falta-lhe paciência para tanta alegria e tanto barulho.
Estar sozinha é isto, ninguém a fazer perguntas, ninguém a querer saber, apenas ela a contar, a pensar no que diria e não diz.
Depois ela reformada e solteira.
Depois ele reformado, casado, três filhos, cinco netos.
Sabe o que aconteceu na sua vida.
A vila é pequena e nunca viveu noutro lugar.
Foi ela que ensaiou o coro, os meninos, escolheu as canções, para os votos dos seus vinte e cinco anos de matrimónio, bodas de prata.
É alérgica à prata, só usa brincos de ouro, bolinhas pequenas a imitar pérolas.
Quem lhe encomendou o serviço não sabia o que tinha acontecido.
Sabia, mas não se lembrava.
Foi há tanto tempo que apenas ela tem memória, apenas ela guardou o que aconteceu.
Às vezes cruzam-se na missa de Domingo, no adro da igreja, no fim da missa.
Ele diz que gostou de a ouvir tocar, que parabéns pelo trabalho, que o coro um encanto, que os meninos afina-d-í-s-s-i-m-o-s.
Como se não se lembrasse do que aconteceu.
Será que não se lembra?
E afina-d-í-s-s-i-m-o-s!, repete para si mentalmente, quando o mais bonito é que uns tantos, quase todos, não conseguem seguir a linha melódica.
E conclui que o ouvido dele sem dúvida num estado intolerável pelo que devia marcar uma consulta no otorrino.
O que pensa e não diz, porque a solidão é isto e porque não lhe guarda amor.

Raquel Serejo Martins

O TEatroensaio apresenta "Arte de Ser" imprecação a Teixeira de Pascoaes


O Teatro é uma das mais importantes formas de expressão artistica e também de expressão literária, como tal o Clube de Leitores vai estando atento e vai fazendo o papel de divulgador. Temos tido como parceiro uma companhia de teatro do Porto, o TEatroensaio que se propõe também a levar o teatro a outras dimensões seja através da revista que edita, seja em forma de conferências e debates ou mesmo formação aberta para todos os públicos.

Assim sendo desta vez o TEatroensaio apresenta:

Arte de Ser
Imprecação a Teixeira de Pascoaes
texto e encenação de Inês Leite

> Dia 19 de Setembro de 2013, 21h30.
Local: Teatro Carlos Alberto, Porto.
Informações e Reservas: 800 10 86 75 ou bilheteira@tnsj.pt  (PVP: 10,00€)
Este espectáculo terá a sua estreia absoluta no Teatro Carlos Alberto, Porto, inserido no Corrente Alterna – Mostra de Criações Incógnitas, Linha de Programação Resistor (uma coprodução Cia Erva Daninha e Teatro Nacional São João)


> De 20 a 29 de Setembro de 2013, 21h30 (de quinta a domingo)
Local: Blackbox, Cace Cultural do Porto, Porto.
Informações e Reservas: 918626345 ou teatroensaio@gmail.com  (PVP único: 5,00€)
Produção: TEatroensaio

Duração : (aprox.) 55 minutos
Classificação etária: 12 anos

Sinopse:
Este monólogo para uma actriz apresenta numa imprecação satírica ao texto de Teixeira de Pascoaes Arte de Ser Português, questionando a “superioridade” ideológica da nossa cultura e identidade assentes sobre a ideia de “Saudade”, proposta numa época plena de contradições políticas e ideológicas. Explorando múltiplos pontos de contacto desses ecos no nosso quotidiano, Arte de Ser… interroga o nosso tempo, propondo novas formas de olhar possíveis futuros.


a-ver-livros: olfacto e Mario Caoile

O vento abana
a alfazema
e entranha-se o cheiro
na memória
e dou por mim
fascinada
com a sombra
que os pinheiros novos
hão-de dar um destes verões

Talvez tão quente
como o que hoje
deixa um rasto
laranja
nos céus

* para saber mais sobre o pintor Mario Caiole
siga o link www.youtube.com/watch?v=5Luj0j5Dj2k

domingo, 15 de setembro de 2013

David pinta... Erasmo de Roterdão

David pinta... Erasmo de Roterdão



Nenhum animal é mais calamitoso do que o homem, pela simples razão de que todos se contentam com os limites da sua natureza, ao passo apenas o homem se obstina em ultrapassar os limites da sua.

Segundo a definição dos estóicos, a sabedoria consiste em ter a razão por guia; a loucura, pelo contrário, consiste em obedecer às paixões; mas para que a vida dos homens não seja triste e aborrecida Júpiter deu-lhe mais paixão que razão.

O amor recíproco entre quem aprende e quem ensina é o primeiro e mais importante degrau para se chegar ao conhecimento.

Deve respeitar-se o casamento enquanto é um purgatório, e dissolvê-lo quando se tornar num inferno.

Handwritten Manuscript Pages From Classic Novels: Sartre


Já alguma vez pensou ver Jean-Paul Sartre desta forma? Então fique com uma das páginas de Náusea, escrita pelo próprio.

Visite o site http://flavorwire.com para encontrar mais. 
Siga o link directo.

«Não sei, Amor, sequer, se te Consinto»

Não sei, Amor, sequer, se te Consinto

Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intemida em que me esqueces.

Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas

outra coisa de mais que nos feneça;
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,

o vento que nos leves ou nos traves,
a mão que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.


*Pedro Tamen, in Tábua das Matérias

foto: Monika Tognollo