sábado, 14 de janeiro de 2012

Trecho d' O DEUS DAS PEQUENAS COISAS

Apenas um sublinhado, entre muitos que se podem fazer deste magnífico livro:

"Quando morreu, Pappachi deixou baús cheios de fatos caros e uma caixa de chocolates cheia de botões de punho que Chacko distribuiu pelos motoristas de táxi de Kottayam. Foram separados e transformados em anéis e pedendentes para o dote das filhas solteiras.

Quando os gémeos perguntaram para que eram os botões de punho - «Para abotoar os punhos das camisas», disse-lhes Ammu -, ficaram excitados por este pedaço de lógica naquilo que até então lhes parecera uma língua ilógica. Botões + punho = Botões-de-punho. Isto, para eles, rivalizava com a precisão e a lógica da matemática. Botões de punho deu-lhes uma satisfação desmesurada (ainda que excessiva), e uma verdadeira afeição pela língua inglesa.


Ammu dizia que Pappachi era um incurável C.C.P. britânico, que era a abreviatura de chhi-chhi poach, que em hindu queria dizer varredor-de-merda. Chacko dizia que a palavra correcta para pessoas como Pappachi era anglófilo. Obrigou Rahel e Estha a procurarem anglófilo no Grande Dicionário Enciclopédico do Reader's Digest. Dizia: Pessoa disposta a apreciar ingleses. Tiveram então de procurar dispor.
Dizia:

(1) Arrumar segundo uma determinada ordem.
(2) Incitar num determinado sentido.
(3) Usar livremente, deitar fora, arrumar para o lado, demolir, acabar, determinar, consumir (alimentos), matar, vender.

Chacko dizia que, no caso de Pappachi, dispor significava (2) Incitar num determinado sentido. O que, dizia Chacko, queria dizer que a mente de Pappachi fora incitada num sentido que o tornava parecido com os ingleses.

Chacko dizia aos gémeos que, embora detestasse admiti-lo, todos eles eram anglófilos. Eram uma família de anglófilos. Apontando na direcção errada, encurralados fora da sua própria história, e incapazes de reencontrarem o caminho porque os seus passos tinham sido apagados há muito. Explicou-lhes que a história era como uma casa velha. Com todas as lâmpadas acesas de noite. E antepassados sussurrando lá dentro."

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A actualidade de Namora

Fernando Namora
(Condeixa-a-Nova, 15 de Abril de 1919 - Lisboa, 31 de Janeiro de 1989)

Médico e escritor português, para mim um dos escritores maiores do século XX e que, infelizmente, anda muito esquecido - apesar de uma visão tão actual, como a que demonstra neste poema que hoje transcrevo.


"Marketing

Aqui a meu lado o bom cidadão
Escolheu Sagres
que é tudo tudo cerveja
a pausa que refresca
a longa pausa de um longo cigarro King Size.
atenção ao marketing.
Eu não gosto de cerveja
mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.
atenção ao marketing.
Ninguém contraria os fabricantes de cerveja
ninguém contraria os fabricantes do Opel e da Super Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens de natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suíça
nem o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive.
Está tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma
a ver as processões passar mesmo sem anjos mesmo sem anjos
que são agora selvagens e voam numa Harley.
Deito-me e obedeço aos fabricantes do Clarim
que é uma alta onda ou uma onda alta
sem esquecer as fitas do John Waine e a chama viva do Butagás
e se calhar sentir fome terei toda a frescura serrana
numa fatia de pão.
atenção ao marketing.
Vitonizo-me desodorizo-me atravesso as ruas nas passagens dos peões
louvo quem me dizem para louvar e desconfio dos negros americanos
e dos blousons noirs que não usam Lux
e não compram um frigorífico a prestações
e com o meu escudo invisível
portejo-me dos vírus subversivos
sou um bom cidadão sou um bom cidadão
obedeço ao marketing à General Motors e ao Pentágono.
Dantes tinha problemas era o odor corporal
e eu não o sabia até me higienizar seis vezes ao dia com o sabonete das estrelas
e as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia
e o talco Cadum que ama demoradamente roucamente tepidamente
os corpos que merecem ser amados...
Obedeço ao marketing não contrario.
Ninguém contraria os fabricantes das ideias e os fabricantes do Fula
que é o da cor do sol
ninguém pisa os riscos brancos do tráfego
nem chama os bombeiros sem concorrer ao sorteio
concorro concorro e vejo nos sinaleiros o pai natal vestido de Scotchgard
ninguém sai do emprego antes de assinar o ponto a horas fixas
e gastar o dinheiro da semana sábado à tarde
no Dardo que é tudo a prestações e é mesmo em frente da Música no Coração.
Fazendo Portugal mais alegre com o folclore da TV e a tinta Robbialac
não contrario obedeço obedeço e meto os meninos na cama
quando me dizem vamos dormir.
atenção ao marketing.
Sagres é uma boa cerveja
e eu acabarei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo as do programa literário que é detergente
e eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e até já consigo adormecer com hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeinado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre Solaire.
Também vou arear as caçarolas e os nervos e os miolos
com um pó azul de que não me lembra o nome
não me lembra mas a culpa já não é minha
porque na mesma noite
massajado com Aqua Velva
fiz a barba com Gillette, e Schick e Nacet
e fui não sei aonde sempre com a mesma lâmina
e oito dias depois (eu era actor ou toureiro?)
a lâmina ainda me escanhoou mais uma barba
antes de eu descer no aeroporto
onde me esperava um agente do marketing.
Os produtores viram-me à descida do avião
primeiro julgaram que era o filho da Sophia Loren
ou o Onassis mas era eu
e gostaram da minha barba bem feita.
(Da barba bem feita
ou do casaco Dralon que não se amarrotara
durante a viagem da Polinésia para Lisboa?)
Confesso que já não me lembra mas a culpa não é minha
pois na mesma noite
fui o homem de não sei quê que marca o rumo
por vestir regras ou camisas ou calças que não enrugam
e fartei-me de assistir a discursos e a inaugurações
e fartei-me de comer chocolates Regina e pescada congelada
e de lavar a roupa com Ajax e com o Rino
e de me banhar com Omo ou seja uma onda de brancura
e fiz-me mecânico de automóveis
só para que o cavaleiro da armadura branca
me tocasse com a sua lança mágica
e me pusesse branco branco branco
três vezes branco como as páginas do Reader’s
de cérebro irrepreensivelmente lexivizado
pelos locutores da televisão pela oratória dos políticos
e passado a ferro com um ferro eléctrico automático
que talvez fosse – ou não? – uma enceradora Philips.
Tudo coisas admiráveis e desesperadamente necessárias
que eu devo ao marketing
e me são cozinhadas num abrir e fechar de olhos
nas palavras de pressão
de todo o bom cidadão.
E no intervalo bebi café puro o do gostinho especial
Sical Sical que é um luxo verdadeiro
Por pouco dinheiro.
Vitonizado esterilizado comprando e concorrendo
esqueci-me de amar do amor das árvores e do rio
esqueci-me de mim tão entretido estava a admirar a Lisnave
esqueci-me do rio e dos barcos
e da saudade de pedra do Fernando Pessoa
e esqueci-me de sonhar que era marinheiro.
Concorra concorra foi isso que não reparei
que uma rapariga cortou as veias
talves fosse com uma Diplomatic
que tem o fio e o silvo de uma espada a degolar avestruzes.
No programa só havia bombeiros
nem uma rapariga a cortar as veias (não era a Caprília)
nem o rio nem o amor nem a raiva da Venezuela.
Se mágoa sentia era a de ter esquecido
dar murros no espião da Missão Impossível
(atenção ao marketing)
e já não saí de casa para ver o rio
só pelo gosto de me aquecer com um Ignis.
E na mesma noite noite boa noite branca
Fumei Estoril Valetes Kayakes e bebi Compal
depois da Salus e da Schweppes
fumei quilómetros e quilómetros de prazer
quilómetros e mais quilómetros – há um Ford no meu futuro –
mais facturas mais fomes mais prazer
e agora já não sei qual dos cigarros com filtro
me soube melhor.
Foram todos foram todos de certeza
pois se me dizem que preciso de Omo
do Ajax do Estoril do Dralon
do esquentador e das alcatifas sem nódoas
não me preocupo não te preocupes
o Meraklon não preocupa ninguém
mando para o diabo o amor e o rio e a rapariga que cortou as veias
não me preocupo não me preocupo
digo pois pois ao Jota Pimenta e ao Escort
e hei-de virar-me do avesso para os possuir.
Os corpos que merecem ser amados merecem o talco Cadum.
Numa onda de brancura obedeço ao marketing. Sou um bom cidadão.
E na mesma noite
vi umas bombas que caíam muito ao longe
numa lonjura mais longe que a Lua
onde as pessoas podiam estar quietas a fumar Marialvas
e a lavarem-se com Rino que lava lava lava
lava três vezes mais lava ou mata que se farta
e me ajuda a ser bom cidadão.
atenção ao marketing.
Vi uns homens a inaugurarem estátuas
e vi fardas e paradas e conferências
e crianças a sorrir
para os homens sorridentes que inauguravam estátuas
e vi homens que falavam e pensavam por mim
a escolherem por mim o bom e o mau
de modo a que eu não possa ser tentado
a confundir o mau com o bom ou vice-versa ou vice-versa.
Deitado no conforto de um Lusospuma
vi os porcalhões dos hippies nas ruas de Estocolmo
bem longe nas ruas de Estocolmo
mesmo a pedirem uns safanões
dos homens que acariciam crianças
e têm todas as verdades na mão
só para que eu seja um bom cidadão.
É isto: marco o rumo. As minhas cuecas marcam o rumo.
Preciso e gosto de uma data de coisas
e só agora o sei.
Menos da Sagres. Mas acabarei por gostar.
Ninguém contraria o marketing por muito tempo.
Ninguém contraria os fabricantes de bem fazer
o bom cidadão.
E tudo graças ao marketing."

http://www.youtube.com/watch?v=JkafySbTIQE

“Retalhos da Vida de Um Médico” (da série da RTP com o mesmo nome baseada na obra de Namora, da responsabilidade de Artur Ramos e Jaime Silva)
Intérprete: Carlos do Carmo
Música: Tozé Brito
Letra: Ary dos Santos

A Claraboia aberta no blogue e os Cadernos abertos no Publico

Clique na imagem para aceder ao site do jornal sobre os livros

Aproveitando o sentido de oportunidade do jornal Público, passo aqui um pequeno momento publicitário. No mês em que escolhemos a última obra publicada de José Saramago para leitura no blogue como livro do mês, o Público vai iniciar a publicação dos Cadernos de Lanzarote a preços bem acessíveis.

Por se tratarem de dois tipos de obra incomuns à figura do Saramago merecem a atenção. Claraboia pelas diferenças de estética e construção literária, pelo tempo de gaveta que suportou e pela publicação pós-mortem e os Cadernos de Lanzarote por serem o quase diário de um homem escritor mas também politico, pai, marido. Diários que são sóbrios e não intrusivos q.b..

Depois disto voltamos ao livro que temos entre mãos. Neste post levantamos o véu um pouco mais sobre as personagens que habitam esta história.

Abel, o homem de 27 anos que recusa compromissos que o tornem "casado, fútil e tributável", à maneira do Álvaro de Campos de Fernando Pessoa, adivinham-se as angústias e interrogações do próprio autor. "Tenho a sensação de que a vida está por detrás de uma cortina, a rir às gargalhadas do nosso esforço para conhecê-la. Eu quero conhecê-la", diz Abel. Os diálogos entre Abel e o seu senhorio, o velho e sábio sapateiro Silvestre, constituem o nó central de uma história que se detém também na opressão dos homens sobre as mulheres - um tema recorrente em Saramago - desenhando personagens femininas inesquecíveis. Entre elas, curiosamente, há uma espanhola, Carmen, que se confronta com a versão inversa do ressentido ditado português ("De Espanha, nem bom vento nem bom casamento"), dado que trocou um potencial bom casamento em Espanha por um casamento desgraçado com um português. E há ainda Lídia, a mulher ostracizada por ser a amante de um homem de negócios - mas à qual um casal respeitável não hesita em pedir que interceda junto do amante para conseguir um emprego melhor para a filha. E há uma família de mulheres sozinhas (mãe, filhas e tia) costurando a sua sobrevivência ao som da música clássica da telefonia.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Livros que deram filme: Os Homens Que Odeiam as Mulheres, Stieg Larsson


"O jornalista de economia MIKAEL BLOMKVIST precisa de uma pausa. Acabou de ser julgado por difamação ao financeiro HANS-ERIK WENNERSTÖM e condenado a três meses de prisão. Decide afastar-se temporariamente das suas funções na revista Millennium. Na mesma altura, é encarregado de uma missão invulgar. HENRIK VANGER, em tempos um dos mais importantes industriais da Suécia, quer que Mikael Blomkvist escreva a história da família Vanger. Mas é óbvio que a história da família é apenas uma capa para a verdadeira missão de Blomkvist: descobrir o que aconteceu à sobrinha-neta de Vanger, que desapareceu sem deixar rasto há quase quarenta anos. Algo que Henrik Vanger nunca pôde esquecer. Blomkvist aceita a missão com relutância e recorre à ajuda da jovem LISBETH SALANDER. Uma rapariga complicada, com tatuagens e piercings, mas também uma hacker de excepção. Juntos, Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander mergulham no passado profundo da família Vanger e encontram uma história mais sombria e sangrenta do que jamais poderiam imaginar."



«Millennium não é um livro policial no sentido habitual do termo. O estilo de Stieg Larson é minucioso, detalhado, lento. Como se dispusera de todo o tempo do mundo para apresentar aos leitores as personagens e tudo o que as rodeia. Detalhes, pequenas histórias, situações paralelas, descrições exaustivas. Minúcia no detalhe, em suma. (...) O que resulta de toda esta minúcia são personagens (...) com uma profundidade inabitual que se movem num cenário opressivo, dominado por uma inquietação latente que vem do passado. E de repente, (...) não havendo uma percepção imediata de tal, a trama desenrola-se a uma velocidade manifestamente superior e demonstra que o detalhe, afinal, não foi demais: o que se tinha por difuso revela-se abominável, o que se tinha por suspeito surge como demoníaco. Nada era o que parecia. Era pior. É quando se descobre que o pormenor conta, que Stieg Larson sabia exactamente quando e como encaixar todas as peças de um imenso puzzle (...) Escrito e descrito com mestria, este primeiro volume de uma trilogia promete.»

Luís C. Marinha, Os meus livros

«[Larsson cria] um retrato poderoso e fiel deste tempo conflituoso e inquietante em que as mulheres são abusadas e as crianças e animais sujeitas a violência e maus tratos. [...] apesar deste policial ser duro e feroz com os ingredientes que são próprios do género, a verdade é que o autor não negou a sua cultura, mostrando uma preocupação saudável em relação aos problemas de consciência social e política com um olhar extremamente perspicaz no que diz respeito às várias patologias da mente do homem e da mulher contemporâneos.»

Helena Vasconcelos, Público

*Os Homens Que Odeiam as Mulheres, Stieg Larsson é uma publicação da Editora Oceanos. Pode também ser comprado na edição de bolso (colecção Bis leya).

Clube de Leitores é candidato a blogue do ano 2011

Estar na categoria de Livros / Literatura / Poesia ao lado de grandes monstros que assinam nesta área é um grande privilégio. Bem sei que ainda é cedo para lançar foguetes: a lista de blogues impõe respeito e vai crescendo. No entanto, não podia deixar de ficar contente com o facto de reconhecerem o nosso trabalho. Tinha que partilhar convosco este momento.

As votações iniciam-se, numa primeira fase, de 15 a 21 Janeiro de 2012. Esta é uma iniciativa do blogue Aventar, que lançou a aventura de organizar uma votação dos melhores blogues do ano 2011 em diferentes categorias. Se tudo correr espantosamente bem, então o nosso blogue passará a uma segunda fase, cujas votações são de 23 a 28 de Janeiro de 2012.


O mais importante não é o concurso em si, mas o facto de falarem de nós. De termos leitores que nos acompanham e sugerem o nosso nome como referência. Isto dá crédito e ânimo àquilo que publicamos. Sinal que gostam do que fazemos, sinal que transmitem as nossas mensagens. Sinal de uma equipa de colaboradores que traz assuntos interessantes e que procura lutar pela divulgação da literatura e dos livros. Tarefa muito exigente e difícil. Também muito específica e num mundo que poucos acompanham.

Estar neste concurso contribui para o crescimento do projecto. É a primeira vez que atinge este nível de divulgação. E, pois claro, estar ao lado de blogues que já andam nestas bandas há muitos anos, deixa-me muito orgulhoso. Alguns nomes viraram referências no panorama da crítica e divulgação literária em Portugal.

Fico muito feliz por este projecto que iniciei, pela equipa que resolvi convidar e por todos os leitores que emprestam o seu Amor a este espaço.

Muito obrigado a todos. Mais uma vez!

P.S.- Ah, parece que eu, individualmente, também lá estou - na categoria Autor/Blogger do ano... Como é que isso foi acontecer?

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Al-poeta-Berto

Se fosse vivo, Al Berto faria hoje 64 anos.
Morreu aos 49, em Junho de 1997, de seu nome completo Alberto Raposo Pidwell Tavares, nascido em Coimbra, adolescência vivida em Sines. Poeta, pintor, editor, polémico.
Mas, no fim, fica a poesia.


"Mais Nada se Move em Cima do Papel

mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridiscente pressagia
o destino deste corpo

os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinada

desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração"

in “O Medo”

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

in O Mecânico

Se calhar estou a maçar-vos com esta conversa, mas pensei que talvez não lhes desagradasse conhecer a oficina. Os produtos saem para as livrarias sem que os leitores conheçam onde e como são feitos, na confusão de uma bancada de arames de períodos, parafusos ao acaso, de adjectivos pelo chão, capítulos inteiros no balde dos desperdícios e cá o rapaz a sair de baixo do romance como o mecânico de sob um carro de motor aberto, com os bolsos cheios de chaves inglesas de canetas, sujo de óleo dos períodos por ajustar e da fuligem das bielas das vivências insuficientemente limpas. Tanto esforço por uma vírgula, um verbo. Tanto obscuro sistema eléctrico que resiste. Tanta incerteza. Tanta aflição. Tanta alguma alegria.

(…)

- Serei capaz?

- Serei capaz de ser capaz?

(…)

Quando eu era estudante de Medicina contavam-me que outrora tiravam as pedras da bexiga por intermédio de um processo designado “litotrícia”, que consistia em introduzir na uretra uma espécie de tenaz e a seguir, às cegas, esmagar as ditas pedras, o que, como é de ver, apenas raramente se conseguia. A escrita é um pouco isso, só temos que persistir até esmagar as pedras todas. Não há compulsão nem inspiração que valha: há ofício e método. E nem sequer é romântico: são os braços sujos até ao cotovelo.

in Retrado do Artista Quando Jovem

… e eis que descubro no primeiro ano do liceu

(julgo que foi no primeiro ano do liceu, não me recordo bem)

um professor de ruga atormentada na testa como se os rins da alma lhe doessem que atravessava o pátio do recreio torcido por incómodos metafísicos. Um colega mais instruído revelou-me que o professor se chamava Vergílio Ferreira e publicava livros: observei-lhe melhor as úlceras existenciais

(a criatura parecia descascar-se em sofrimento)

e levei meses a treinar ao espelho cálculos na uretra da sensibilidade e a tentar falar francês com sotaque de porteira. Logo que me senti suficientemente Vergílio e suficientemente Ferreira compareci ao jantar ansiosíssimo com o sentido da existência, pronto a redigir uma Manhã Submersa qualquer, já podre e tudo de passar tanto tempo debaixo de água, recusei os croquetes com uma melancolia obstinada, perguntaram-me

- O menino é parvo ou faz-se?

eu respondi com firmeza

- Os escritores são assim

mandaram-me ter juízo e separar as sobrancelhas porque graças a Deus não padecia de hemorróidas, o meu pai mostrou-se o retrato do Byron e eu decidi partir no dia seguinte para a Grécia e morrer em combate a recitar alexandrinos.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O Deus das Pequenas Coisas - Livro do mês



Como o Pedro diz, é preciso tempo para ler este livro. É uma densa floresta narrativa onde Arundhati Roy, com uma mestria alucinante e em jeito de Hansel e Gretel, vai espalhando migalhas por trilhos pouco lineares mas meticulosamente escolhidos. O modo brilhante como, pelo caminho que a Autora nos conduz, vamos ouvindo sons e sentindo os vultos do que está para vir, faz parte de uma experiência literária que eu senti intensamente. E tanto que desejei ignorar aqueles instintos premonitórios provocados.

"O Deus das pequenas coisas" é uma obra de tensões e equilíbrios. Confronta gerações, estratos sociais, mentalidades e valores (um pai de olho hipotecado que se oferece para matar o filho), as pronúncias iletradas ou os pensamentos infantis transliterados só para os nossos olhos sorrirem, modos de amar (a violência, o amor do sangue e do duplo um, o amor para além das leis que estipulam quem deve ser amado, e como, e quanto), e até formas de odiar e de provar a vingança, que nunca pensei poderem conter tanta beleza como aquela que vi no silêncio de Estha e na consumação do(s) amor(es). Percebi também que sempre que o equilíbrio desapareceu, algo partiu.

Por outro lado, enquanto movimentava toda a engrenagem daquela trama inserida num contexto histórico e geográfico muito específico, Arundhati Roy conseguiu criar personagens soberbas de tão naturais e permeáveis que são. As evoluções sofridas, sempre sustentadas, são particularmente visíveis nos gémeos dizigóticos - um quente e um frio -  o que confere à história um realismo apenas encontrado em grandes romances. E conseguiu ultrapassar as grandes tragédias ao terminar com numa nostalgia futura, num doce "Amanhã". Mesmo que ele nunca chegue, o "Amanhã" aconteceu.

Por fim, tenho que confessar que me senti incapaz de absorver toda a riqueza desta obra: não fui suficientemente paciente para digerir com moderação, nem tão pouco me empenhei no trabalho de casa necessário para compreender muitas das suas referências. Em ambos os casos apenas estou a reconhecer o defeito da leitora, não da obra.

Só mais uma nota, que o texto já vai longo: é um óptimo livro para quem gosta de sublinhar. E sem spoilers, apetece-me partilhar:

"Mas agora Joe estava morto. Um buraco em forma de Joe no universo." (não é spoiler, o Joe não é assim tão importante)

"- Estás a ter um pesadelo-sesta - informou-a a filha.
- Não era um pesadelo - disse Ammu. - Era um sonho.
- Estha pensou que tu estavas a morrer.
- Parecias tão triste - disse Estha.
- Estava feliz - disse Ammu, e deu-se conta de que fora.
- Ammu, quando se está feliz num sonho, isso conta? - perguntou Estha.
- Isso conta?
 - A felicidade - conta?
Ela sabia muito bem o que o seu filho de poupa desarranjada queria dizer.
Porque a verdade é que só conta o que conta.
A sabedoria simples e inabalável das crianças.
Quando se come peixe num sonho, isso conta? Quer isso dizer que se comeu peixe?"

GavetaS

No quarto ao lado
alguém gemia,
não sei se de dor,
se de prazer.

O do terceiro,
adormeceu,
ao som granulado do televisor.

A do esquerdo acabou de chegar,
e caiu vencida sobre o sofá,
nem o cigarro apagou.

A do direito,
continua à espera.
Espera sempre acordada.

Em frente,
não havia por quem esperar.

Por baixo, continuavam a discutir.
nunca pararam de discutir,
palavras puídas de tão repetidas.

E sobretudo apenas o céu.

Era um prédio pequeno,
para tantas solidões.

Era um céu sempre cinzento.
Um céu cansado de ser cinzento.

Será que amanhã vai chover?

Pergunta-me a mim?

Sim, deve chover,
aqui, chove quase todos os dias,
para desgosto do jardineiro,
para alegria dos patos.


a-ver-livros: Pelo olhar de Alexander

Sou de paixões. E no final deste ano enamorei-me intensamente de certo quadro, este primeiro quadro. ‘Visitava-o’ de vez em quando, ficava ali a contemplá-lo e a interrogar-me: será que ela está entediada? Este livro seria uma seca? Perdeu-se apenas na sua própria imaginação?
Munida do nome do autor, esse quadro levou-me a outro. E a outro. E a outro. Quando dei por mim, queria saber mais. Queria saber o que estava do outro lado. Saber mais sobre quem assim pinta gente que lê.


Abençoadas as novas tecnologias que me fizeram ter acesso primeiro ao quadro, depois a Alexander Sokht, 44 anos, pintor russo de Krasnodar, ali à beira do Mar Negro, que a vida e a arte levou primeiro para Moscovo e, mais tarde, para Praga, na República Checa. Já com a mulher, a também pintora Svetlana Kurmaz, abriu por lá uma pequena galeria de arte.
Terá sido, quem sabe, no intervalo entre assuntos burocráticos da galeria e mais umas pinceladas numa nova tela que Alexander decidiu abrir a net – e encontrou a minha mensagem. Quero saber mais, dizia eu, cheia de lata.


As tecnologias não fazem tudo, e o facto de ele pouco mais falar do que russo e eu de russo não saber mais do que meia dúzia de palavras não facilitava. Prometi simplicar o meu inglês ao máximo. Ele prometeu recrutar a ajuda da mulher para tentar responder o melhor possível na língua de Shakespeare. “Obrigado, Ana, pelas interessantes questões que colocas. Para mim será interessante também descobrir as respostas. Vou trabalhar nisso”, diria numa das mensagens. E confirmaria dias depois. “Foi realmente uma experiência interessante. Tenho a certeza de que dei imensos erros no inglês mas confio que entendas o que pretendo dizer.”


O que vos apresento em seguida, com um irreprimível sorriso, é a pequena entrevista que assim se proporcionou. E tudo porque uma paixão pelos livros se reflecte numa paixão pela arte, que se traduziu numa paixão por um quadro, que justificou uma conversa que, lida com atenção, é quase literatura. Eu acho que já vos tinha dito que isto anda tudo ligado.

“AA – No teu portfolio há inúmeras pessoas, principalmente mulheres, a ler. Como é que os livros começaram a aparecer na tua arte?
AS – Quando eu era mais novo tinha imensos livros ao meu redor. Quando cresci conheci a mulher da minha vida. Hoje em dia tenho comigo a mulher da minha vida e alguns livros. Eles reunem-se, de vez em quando, nos meus quadros.

AA – As mulheres que pintas estão entediadas ou apenas a sonhar, a divagar?
AS – Às vezes, quando estão a ler, elas voam do lugar onde estão na realidade… E quando regressam a essa realidade é como se tivessem acabado de acordar, tentam ainda reencontrar-se consigo mesmas. Porque é que pinto principalmente mulheres a ler? Isso é fácil de responder. Porque as mulheres são mais susceptíveis, compassivas, têm mais imaginação e apreciam mais o processo da leitura.

AA – Encontrei apenas um quadro teu com um homem a ler [Alexander enviar-me-ia depois mais dois]. É um auto-retrato? Se sim, porquê com um livro nas mãos e o que estás a ler?
AS – Eu queria responder ‘Simmmmm, sou eu’. Porquê com um livro? Porque com um livro na mão pareço mais inteligente. Mas, na verdade, não é um auto-retrato. Não sou eu que ali estou. É apenas alguém que representa o outro lado do processo da leitura, a leitura não pelo prazer mas pelo conhecimento que proporciona. Precisamente por isso este quadro se chama ‘Non Fiction’.

AA – Fala-me mais da tua relação com os livros. Vê-los como simples objectos que ajudam a compor um quadro?
AS – O livro não é para mim um objecto fetiche. A leitura é mais importante do que o livro. Porque podemos ler imenso nos olhos da pessoa que amamos, no voo dos pássaros, nas vozes dos amigos… Os livros nos meus quadros são apenas simbólicos da nossa capacidade de ler.


AA – Lês muito? O que gostas de ler? Algum autor ou livro preferido?
AS – Hoje em dia prefiro reler alguns livros de tempos a tempos em vez de ler algo novo. Diria que o meu autor preferido é Leon Tolstoi e o livro o “Anna Karenina”.

AA – Pode dizer-se que influenciou muito a tua arte?
AS – Não tenho apenas livros por amigos, tenho alguns verdadeiros. E que me influenciaram muito mais do que qualquer livro. Podemos ler toneladas de livros sobre nadar, mas só aprendemos o que é realmente nadar quando estamos dentro de água. Hoje em dia, a minha maior influência artística são as pessoas sinceras, homens e mulhers (não necessariamente artistas ou escritores), crianças e até cães, gatos, pássaros… Quando era mais novo era influenciado por Giotto, Picasso, Modigliani.

AA – Ser um russo a viver em Praga influencia o teu trabalho?
AS – Ser um artista russo será mais importante na Rússia do que em qualquer outro sítio. Porque, em qualquer outro sítio, sou apenas estrangeiro. E Praga não é excepção. Excepção… talvez seja essa a palavra-chave. Quando vivemos na terra pátria, nós (especialmente artistas, escritores…) tentamos alcançar essa sensação de ser excepcional, diferente. Quando vivemos fora temos essa sensação mesmo sem fazer qualquer esforço.

AA – Alguma vez estiveste em Portugal? O que conheces do nosso país? Algum escritor? Pintor?
AS – Ainda não estive em Portugal, mas sei que os russos adoram o teu país. Também sei que vocês têm uma coisa especial a que chamam ‘saudade’… E esse é também o sentimento preferido dos russos. Sei ainda que há algumas paredes em Portugal que têm quadros meus pendurados. E que há uma galeria em Paderne, no Algarve, que tem quadros da minha mulher (http://www.corterealarte.com). E conheço um artista, Julião Sarmento. Vi uma exposição dele em Munique, há muitos anos, e fiquei muito impressionado. Quanto a escritores portugueses só conheço um, José de Sousa Saramago. Li “The Stone Raft – A Jangada de Pedra”. É realmente um grande escritor.

AA – Que direcção achas que leva a tua arte por estes dias?
AS – A direcção da minha arte, neste momento, está em mudança e ainda não sei definir qual seja. Vamos esperar e ver.”

Agora sento-me, olho para os quadros de Alexander Sokht e vejo-os também pelos seus olhos. “Porque podemos ler imenso nos olhos da pessoa que amamos, no voo dos pássaros, nas vozes dos amigos…” E na sinceridade de um artista.


http://www.alexandersokht.com/

http://xpgallery.com/

domingo, 8 de janeiro de 2012

Livraria Portuguesa e galeria de Arte - Macau

Macau estranha-se e ama-se de diferentes formas. Mistura um pouco de Portugal com a poderosa China. Num passado e num presente que se cozinham numa amálgama de influências, com clara prevalência para a cultura Asiática.


Foi em 2009 que passei lá uns dias - inicialmente chegado de Hong Kong onde aterrei. Mais tarde, com outra calma e regressado da Tailândia, explorei as ruas de calçada portuguesa, as fachadas das Igrejas, jardins, o Senado e os edifícios coloniais. Memórias que convivem lado a lado com inúmeros arranha-céus que rasgam o céu a perder de vista. E de Casinos que crescem como cogumelos. Um mundo frenético, muito difícil de transmitir em palavras ou mesmo imagens.


De qualquer forma, existe um espaço cultural por excelência: A Livraria Portuguesa e galeria de Arte. De câmara apontada, saíram estas fotos que hoje partilho. Quanto à experiência: sensação semelhante ao que deve passar um perdido no deserto quando imagina avistar um oásis... A presença portuguesa num mundo e povo tão diferentes do nosso é absolutamente extraordinária!


Ver livros escritos ou traduzidos na nossa língua, acessíveis aos portugueses que por lá vivem e para todos os outros que lêem português; é o culminar de uma viagem que vos aconselho vivamente. Por momentos, no outro lado do mundo, voltamos a sentir a Portugalidade do nosso ser...

Carlos Drummond de Andrade a pensar assim...


Este pensamento é a reflexão que levo para esta noite.

Vivência Limitada

"A impossibilidade de participar de todas as combinações em desenvolvimento a qualquer instante numa grande cidade tem sido uma das dores de minha vida. Sofro como se sentisse em mim, como se houvesse em mim uma capacidade desmesurada de agir. Entretanto, na parte de acção que a vida me reserva, muitas vezes me abstenho e outras me confundo. [...] A ideia de que diariamente, a cada hora, a cada minuto e em cada lugar se realizam milhares de acções que me teriam profundamente interessado, de que eu certamente deveria tomar conhecimento e que entretanto jamais me serão comunicadas — basta para tirar o sabor a todas as perspectivas de acção que encontro à minha frente. O pouco que eu pudesse obter não compensaria jamais esse infinito perdido. Nem me consola o pensamento de que, entrando na confrontação simultânea de tantos acontecimentos, eu não pudesse sequer registrá-los, quanto mais dirigi-los à minha maneira ou mesmo tomar de cada um o aspecto singular, o tom e o desenho próprios, uma porção, mínima que fosse, de sua peculiar substância."

*foto retirada do blogue A Terceira Noite (Vilar de Mouros, 1971)