quinta-feira, 2 de junho de 2016

Eu poético: Morada

MORADA
 
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     e
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       b
        e
         m
 
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                 r
                  a
 
                   o
 
                 coração.
 
algures entre um ponto
e o outro
o possas encontrar,
o saibas compreender,
o saibas escutar,
talvez saibas dar as respostas
que não tenho.
 
ajuda-me a descobrir de que sou feito,
do que me arrependo,
do que anseio,
do que me faz tremer.
 
aperta a minha mão com força,
não tenhas medo de a magoar.
leva-me a ver o mar,
os barcos que o cruzam,
as ondas que batem nas rochas.
celebremos as nuvens,
o ar salgado
e os pés na areia.
 
e depois,
depois somos apenas mais uma promessa de amor no mundo.
depois somos a história
que quisermos ser.

não viemos inventar nada de novo,
apenas comprovar aquilo
que
todos
sentem.
seremos, por isso, testemunhas das vontades de existir,
saberemos que a escuridão se ilumina com um fósforo apenas,
mediremos os espaços que cada um ocupa.

e voaremos,
mesmo que estejamos ainda a aprender,
a descobrir,
a presenciar as coisas
no seu primeiro momento.
acredita que só assim podemos encontrar
aquilo que andámos uma vida
a tentar responder,
só assim daremos valor
àquilo que nos dói.
 
morreremos juntos,
no bem / no mal.
 
não sei bem onde mora o coração,
talvez more no amor que me tens.
sabes responder?
 
Rodrigo Ferrão
 
Foto: Ana Christelo

terça-feira, 31 de maio de 2016

DEMOCRACIA é do borogodó!



Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra, pra variar, estamos em guerra e tá cada vez mais down no high society.

Alô, alô, marciano, a crise anunciada piorou, serviu de fundo pra golpe e o caldo entornou. E se o cada um por si já era lei para os pobres mortais, a lama de agora não economiza os imorais, aqueles que eram os tais.

Alô, alô, marciano, quanta patrulha vestida de hipocrisia desfila no meu país amendrontando a democracia...



Eu sou Penélope Martins, toda semana faço ponte de leituras com o Clube de Leitores, diretamente do Brasil, faça chuva ou faça sol, com governo roto, rasgado e mastigado até o pescoço, MAS sem desistir de lutar pelo nosso direito de viver livre e dignamente!

* a fotografia foi tirada em Lisboa.





fôlego


vamos ainda a tempo
de os dias ficarem maiores
o vínculo das árvores
e um rio a ser-nos
dentro
respira-se debaixo
de água na abertura do beijo
raízes fôlego
afora.


Helder Magalhães



Jorge Lima

domingo, 29 de maio de 2016

O meu amante francês

O meu amante francês toca trompete. 
Nunca o ouvi tocar ao vivo mas tenho todos os seus discos, obviamente oferecidos, e por sua causa aprendi a gostar de jazz, mas, principalmente, a distinguir entre um Bix Beiderbecke e um Miles Davis, porque foi assim que começou a explicação, a minha relação com o jazz, ele a dizer, nestes sou mais Bix, nestes sou mais Miles. 
Toca trompete e fuma cachimbo e, a fumar, dependendo da quantidade de nuvens no céu, às vezes lembra o Baudelaire, às vezes lembra o Einstein. 
Fuma cachimbo e avisa ceci n'est pas une pipe, c’est un plaisir. 
On se retrouve dans un petit hôtel sans aucun charme en banlieue de la cité une fois par semaine. 
Chaque mardi à l'heure du déjeuner. 
Mardi gras, brincamos os dois. 
O meu amante francês aime les cornichons, les petit pois, l'odeur du papier nouveau, son chien, appelé Bird à cause de Charlie Parker, qu'il porte avec lui chaque fois qu'on se trouve et surtout le cinéma!
A Deneuve, a Ardant, a Binoche, a Cotillard e a última a entrar na lista, a Marine Vacth, justificando, voyez, je me suis mis à niveau. 
O meu amante francês é um amante de cinema, porém faz questão de sublinhar, Hollywood je n'aime pas! pas de choses américaines, il dit, sauf monsieur Sinatra! 

Fairy tales can come true, it can happen to you 
If you're young at heart. 
For it's hard, you will find, to be narrow of mind 
If you're young at heart. 

Il chante juste pour moi, il chante doucement à mon oreille, avec un délicieux accent anglais. 
É assim, quando estamos juntos insiste que falemos na língua de Flaubert e de Balzac, parce qu'il faut que tu pratiques, dit-il, enquanto as minhas mãos brincam com o seu sexo, a minha boca brinca com o seu sexo. 
E escrevo isto e penso o quão curioso é usar o verbo brincar, talvez porque na cama o amor ganhe uma pureza quase infantil e, em desafio, o meu carinho é maior do que o teu, e a fita métrica de carpinteiro ou não mais que palmo, as mãos atravessam os corpos, pesam e percebem o tamanho, na cama, um singular egoísmo, um não sei quê de heroísmo, porque no amor todos os quartos são iguais, de Telavive a Istambul. 
Les temps sont durs pour les rêveurs, diz-me ao despedir-se antes de sairmos do quarto. 
Somos amantes há dezanove anos, on se retrouve chaque mardi à l'heure du déjeuner. 
Há dezanove anos, há casamentos mais curtos. 
Somos amantes e amamo-nos de facto, que eu, quase avó, ainda sou do tempo em que o sexo exigia pudores e pruridos, exigia um mínimo de ternura, exigia essa coisa a que convencionamos chamar amor e, ao caso, o amor começou pelo nariz, tem um nariz tão volumoso e singular que, se compararmos, o nariz do Depardieu é de meninos. 
E quando vi, que conste que era impossível não ver, aquele nariz pela primeira vez pensei… pensamentos nossos, incontáveis no meio de tantos, pensamentos indizíveis mas que vou dizer… já passaram dezanove anos, pudores e pruridos, mas a ternura cresceu... e acho que o nariz também cresceu, para os lados, definitivamente, crescemos os dois. 
Quando vi aquele nariz pensei que era incapaz de enfiar um nariz daquele tamanho dentro da minha cama, debaixo dos meus lençóis, um nariz fácil de encontrar, um nariz que me fazia sorrir. Pois… pensamentos lúbricos, alados, desdenhosos, a camuflar o meu interesse. 
Cinco dias depois (Deus demorou mais tempo a fazer a terra!) o referido nariz, bem como o proprietário do mesmo, estava comigo debaixo de uns lençóis de seda no melhor hotel da cidade. 
E sim, já contei esta história ao senhorio do nariz, pois conversa muito conveniente entre amantes… muitos anos depois. 
O que te fez reparar em mim? 
Os teus olhos castanhos e doces, Amélia! – Pensei, não disse, mas contei e expliquei, tem que se lhe explicar tudo com cuidado, é francês!, que mantinha a coerência dos meus pensamentos iniciais e que fui, de facto, incapaz ou apenas incompetente, uma vez que, atente-se no pronome possessivo, a verdade é que efectivamente nunca o enfiei debaixo dos meus lençóis, de lençóis meus, uma vez que a locação do quarto do hotel não faz de nós proprietários do recheio. 
E ele riu e eu ri e rimos juntos, coisa que com o meu marido, com o comproprietário dos meus lençóis, comunhão de bens adquiridos, acontece tão às vezes que é quase nunca. 
Uma casa, dois carros, dois filhos, quatro ascendentes, um cão, um gato, responsabilidades e compromissos, outras avenças e desavenças. 
E não foi cinco dias depois, não me tomem por leviana, foi depois de cinco anos de namoro, de sete anos de casamento, de fidelíssima namorada, de fidelíssima noiva, de fidelíssima esposa, assim, até que apareceu Fidel, parisiense filho de comunistas, o meu primeiro, o meu único amante. Sou uma pessoa de relações estáveis, talvez entediantes, mesmo nos amantes, o uso de plural um desleixo, uma ousadia retórica. 
E tudo aconteceu porque ele meteu o nariz com veemência, com prudência, uma ciência, numa conversa onde não conhecia ninguém, e todos, ao caso todas, cinco mulheres no intervalo do cinema de um desenxabido filme francês, achámos graça a um francês amante de cinema, recém-chegado à cidade. 
Assim que, chaque mardi on se retrouve, on fait l’amour, on prend le déjeuner, on bois un verre ou deux de vin rouge, toujours du vin rouge, pendant qu'on écoute de la musique française, toujours de la musique française na modernidade de um tablet. 
Ouvimos o Gainsbourg, a Birkin, o Montand, a Hardy e eu entro em casa a cantar. 

J'fais des trous des p'tits trous encore des p'tits 
Des p'tits trous des p'tits trous toujours des p'tits trous 
Des petits trous des petits trous des petits trous des petits trous
Des p'tits trous des p'tits trous toujours des p'tits trous 
Des petits trous des petits trous des petits trous des petits trous 

E ninguém ouve ou repara.

Raquel Serejo Martins
Revisão do francês: Estelle Valente


Foto: Leonard Freed