sábado, 21 de dezembro de 2013

a-ver-Natal: à procura do espírito da coisa III

Mais um passo de busca:

"Feliz, feliz Natal, que nos traz de volta as ilusões da infância, recorda ao idoso os prazeres da juventude e transporta o viajante de volta à própria lareira e à tranquilidade do seu lar."

Charles Dickens





Amanhã termina o festival «Ler é um carrossel»

Bairro dos Livros «Ler é um carrossel»
13 a 22 de Dezembro // 13h00 – 23h00
MERCADO BOM SUCESSO – BOAVISTA
22 DOMINGO 11H-23H
11h30
«Pratos com histórias» por Saphir Cristal
Convidada: Maria das Rosas (Diana Jorge Marques)
Sessão extra para cozinhar sopa de pedra (receita original de Almeirim) a acompanhar o concerto das 12h30
12h30
«Vozes femininas do mundo» por Sopa de pedra
Concerto de grupo de canto comunitário
Todas as idades
Palco
15h30 [Sessão infantil]
«Pratos com histórias» por Saphir Cristal
Convidada: Maria das Rosas (Diana Jorge Marques)
Show cooking – Hora do conto com culinária
Mercado dos frescos
16h00
Piano a quatro mãos por Kla-Vier Duo – Patrícia Ventura e Sónia Amaral
Concerto de piano
Todas as idades
Hotel
17h30 [Sessão para adultos]
«Pratos com histórias» por Saphir Cristal
Convidada: Chef Orlanda
Show cooking – Hora do conto com culinária
Mercado dos frescos
18h30
«Saber Ouvir»
Pelos 60 anos de carreira (musical, literária e cinematográfica/televisiva) do Maestro António Victorino d’Almeida
Convidados: João Lima e Sara Vaz (piano), Rebeca Vaz (harpa)
Auditório
EDIFÍCIO MONTEPIO – ALIADOS
22 DOMINGO 11H-23H
11h00
«Vozes femininas do mundo» por Sopa de pedra
Concerto de grupo de canto comunitário
Todas as idades
Palco
16h00
Projecto Editorial Raízes: «Oh mãe, deia-nos pão», «Quando eu nasci, aquela fábrica já ali estava», «Marcha da fome de Pevidém», «Caleidoscópio. Fragmentos Culturais», «O mundo todo é de todo o mundo»
Lançamento de livros
Maiores de 12
Palco
21h00
«Cavalo de Troika: poemanifestos» de Renato Cardoso
Lançamento de livro
Maiores de 12
Palco
21h30
«Stand-up poetry» por Isaque Ferreira, Rui Spranger e Renato Cardoso
Sessão de poesia
Maiores de 12
Palco

O melhor amigo do homem...

Photo Steve Mac Curry
Encontrado na página Improbables Bibliothèques, 
Improbables Librairies. A não perder por nada! 

Snobidando: A. A. Milne

A. A. Milne em "When we were very young"



Emílio Miranda, dia 8

Conheço todas as guerras;
Já estive em todas elas
Mas ainda me surpreendo com as formas de morrer.
Receio por todos os mortos que ainda não nasceram
Por todas as guerras que ainda não se travaram…
A todas as outras já erguemos monumentos e tristes estátuas efémeras.
Para os que ainda não morreram imaginamos;
Ainda andamos a imaginar

A forma de os matar….

Emílio Miranda 

Foto: Cláudia Miranda

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

a-ver-Natal: à procura do espírito da coisa II

E a busca continua:

"Vestiu-se com a melhor roupa que tinha e, finalmente, saiu de casa. A essa hora havia multidões nas ruas, tal como ele vira ao andar acompanhado pelo Espírito do Natal Presente. E Scrooge olhava para todos com um ar deliciado, enquanto percorria as ruas de mãos atrás das costas. Em resumo, o seu ar era tão agradável e irresistível que três ou quatro indivíduos simpáticos o saudaram com um 'Bom dia, senhor! Natal feliz!' 

E Scrooge havia de dizer mais tarde que, de todos os sons musicais que ouvira na vida, aqueles tinham-lhe soado como música de anjos."

"O Natal do Sr. Scrooge"
Charles Dickens 

Sábado no Bairro

Nuno Meireles diz "The Sleepers", poema de Walt Whitman, sobre andas no Festival do Livro, Mercado Bom Sucesso. Fotografia de Miguel Oliveira.

Bairro dos Livros «Ler é um carrossel»
13 a 22 de Dezembro // 13h00 – 23h00
MERCADO BOM SUCESSO – BOAVISTA
21 SÁBADO 11H-24H
15h00 [Sessão infantil]
«Pratos com histórias» por Saphir Cristal
Convidado: Chef Elisio Bernardes
Show cooking – Hora do conto com culinária
Mercado dos frescos
17h00 [Sessão para adultos]
«Pratos com histórias» por Saphir Cristal
Convidado: Chef Elisio Bernardes
Show cooking – Hora do conto com culinária
Mercado dos frescos
18h00
«É a hora» de Paulo Borges por Carlos Magno
Apresentação de livro
Maiores de 12
Palco
EDIFÍCIO MONTEPIO – ALIADOS
21 SÁBADO 11H-24H
16h00
«Um poema de Natal» por Portugal Poético
Sessão de poesia e música
Maiores de 12
Palco
19h00
«A nova geração» – organizado por Inês Botelho
Tertúlia sobre as hipotéticas características específicas da nova geração de escritores portugueses e se elas de facto existem
Maiores de 12
Palco
21h30
Casa da guitarra
Concerto
Todas as idades
Palco
22h30
Skeezos
Concerto de rock
Maiores de 12
Palco

a-ver-livros: galáxia e Charlotte Wharton

Preserva a distância,
é a única coisa que nos salva
da tristeza 
de perceber que já
não pertencemos ao mesmo
círculo
de estrelas

De perceber
que a galáxia que nos separa
é maior 
do que o amor
que nos uniu

Ana Almeida

* para saber mais sobre a pintora Charlotte Wharton
siga o link http://www.charlottewhartonstudio.com/


quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

a-ver-Natal: à procura do espírito da coisa

Ando perdida do espírito de Natal. 
Decidi ler trechos de Charles Dickens - pode ser que o fantasma dos escritos passados me ilumine o caminho.
Este trecho é de "O Natal do Sr. Scrooge":

"É o justo, imparcial e nobre ajustamento das coisas que faz com que, enquanto a tristeza e a doença são contagiosas, nada haja no mundo de tão irresistivelmente contagioso como o riso e o bom humor. Quando o sobrinho de Scrooge se ria assim: agarrando-se às ilhargas, rodando a cabeça e torcendo o rosto nas mais extravagantes contorsões, a sobrinha de Scrooge, por afinidade, ria-se tão francamente como ele, e os seus amigos reunidos, sem lhes ficarem atrás, riam-se estrondosamente."



* ilustração de Adam Oehlers

Bairro dos livros: é sexta feira... yeah!


Bairro dos Livros «Ler é um carrossel»
13 a 22 de Dezembro // 13h00 – 23h00
MERCADO BOM SUCESSO – BOAVISTA
20 SEXTA 13H-24H
17h30
«Unir versos» por Cristina Silva
Hora do conto e actividade infantil
7 a 12 anos
Espaço infantil
19h00
«Memórias do Outono Ocidental» de Adriano Moreira por Carlos Magno
Apresentação de livro
Maiores de 12
Auditório
22h00
«Poemas de Natal para homens crescidos» de António Pedro Ribeiro por César Taíbo, com leituras por homens crescidos
Apresentação de livro
Maiores de 16
Palco
EDIFÍCIO MONTEPIO – ALIADOS
20 SEXTA 13H-24H
17h00
AJA Norte (Fernando Lacerda e Manuel Magalhães) “dá música” ao Bairro dos Livros
Palco
19h00
«Natal… ma non troppo» por Sujeitas as Verbo – Celeste Pereira e Ana Afonso
Sessão de poesia
Maiores de 12
Palco

O texto que toda a gente fala: «O último abraço que me dás»

O último abraço que me dás

Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele

*António Lobo Antunes

O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me

- Abrace-me porque é o último abraço que me dá

durante o abraço

- Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento

e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O'Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa determinação tranquila:

- Estou aqui para lutar

e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a esperança.

A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido

- Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento

porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio. Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.

O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam mal:

- Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.

Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.

Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que seja o último abraço que damos. 


*Este texto está na revista Visão. Ler mais: http://visao.sapo.pt/o-ultimo-abraco-que-me-das=f761252#ixzz2nk0AyFL6

a-ver-livros: duas perguntas e Lorenzo Costa

Que lias enquanto esperavas 
a chegada da luz
na noite dos tempos?
Palavras 
quais
as que te aconchegaram 
no frio
e te embalaram a esperança?

Ana Almeida

* para saber mais sobre o pintor italiano Lorenzo Costa
siga o link www.artcyclopedia.com/artists/costa_lorenzo

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Mas porque é que ainda não foi ao Bairro dos Livros?


Bairro dos Livros «Ler é um carrossel»
13 a 22 de Dezembro // 13h00 – 23h00
MERCADO BOM SUCESSO – BOAVISTA
19 QUINTA 13H-23H
18h30
«Natal no carrossel» por Rui Portulez
Sessão de poesia
Todas as idades
Palco
21h00
«Bossa Nova com sotaque do Porto» por João Morais
Concerto de bossa nova
Todas as idades
Palco
EDIFÍCIO MONTEPIO – ALIADOS
19 QUINTA 13H-23H
19h00
«Construir sobre a areia do tempo» por Swark – A poesia na arquitectura e na reabilitação urbana, a partir do poema de António Ramos Rosa
Tertúlia
Maiores de 12
Palco
21h30
«Poesia de choque» por António Pedro Ribeiro e Luís Carvalho
Sessão de poesia
Maiores de 16
Palco

O camisola amarela


Sentou-se, fechou os olhos, esticou os músculos e tendões e, uma a uma, pôs-se a contar todas as dores que sentia no corpo.
O banco do jardim vazio sob uma árvore vazia de folhas, era Outono, quase Inverno, e o sol morno, saboroso.
Ele como uma planta, em fotossíntese, como uma tartaruga, patas e cabeça fora da carapaça, a pele enrugada de réptil, a tartaruga não é um réptil, assim que, como um lagarto, verde cor de musgo e madeira, confundível com o banco do jardim, invisível.
- Sente-se bem? – Ouviu perguntar.
Abriu os olhos e olhou em volta.
A pergunta era para si.
Uma pergunta feita por uma laranja.
Uma cara redonda como uma laranja, um olhar sorridente envolto em sardas, sardinhas quase em movimento, um cabelo cor de abóbora de caracóis redundantes, e mais sardas nos ombros e no decote.
Podia passar o resto do seu dia, talvez da sua vida, a contar-lhe as sardas do decote.
Os seus olhos presos, prisioneiros.
Não consegue evitar não desviar os olhos de objectos ou corpos perfeitos, o que sumamente, laranja em sumo, o irrita.
Incomoda-o padecer dessa qualidade (não pode ser defeito) tão humana, que é a sua irremediável debilidade pela beleza.
E a perfeição, ao caso, uma laranja.
- Para a idade que tenho… – Parou para pensar. Queria dizer qualquer coisa com graça. – …sinto-me como um ciclista! – Respondeu, e continuou a pedalar na resposta. – E não um qualquer ciclista do pelotão, o camisola amarela!
E fez um sorriso amarelo na tentativa de corroborar, de comemorar, a sua recém-adquirida condição de desportista de alta competição.
Tentou imaginar-se um ciclista.
A penas conseguiu ver-se a subir uma montanha, não as duas rodas de uma bicicleta mas as duas rodas de uma cadeira de rodas, não pés a pedalar, mãos, o céu cinzento e num repente chuva. Uma chuva torrencial, inesperada, o céu a desabar, talvez vento, que na sua imaginação chove e venta, e constipações e dores de reumático, que mesmo nos sonhos o sol sem exclusivo. Uma chuva que o deixou com o aspecto frágil e desvalido de um gato molhado, nada apresentável.
Apesar dos seus pensamentos, pareceu-lhe que ela achou graça, ao ciclista, evidentemente!
Fez um sorriso gomo de laranja.
Missão cumprida. – Concluiu. – O camisola amarela até na etapa de montanha cruzou a meta em primeiro.
Fez um sorriso e continuou o seu caminho.
Levou o sorriso consigo.
Deixou-o como estava, lagarto verde cor de musgo e madeira, sentado sozinho num banco de jardim vazio sob uma árvore vazia de folhas.
Assim continuou o que se tinha proposto fazer antes de interrompido por uma laranja: o inventário das dores que sentia.
Contou do corpo doze dores, que à dúzia são mais baratas, pensou.
E, como se gaivotas, curvas de asas em voo, atravessaram, em passo apressado, os seus pensamentos, as ancas de uma vendedora de peixe, de uma varina.
E não as ancas de uma qualquer varina. As ancas concretas de uma mulher ainda menina, quando ele também rapaz moço. Saia rodada sob o avental, canastra, como se coroa de rainha, sem esmeraldas nem rubis, chinela a dançar no pé, voz de rouxinol, gaiola ao sol na marquise.
E cantava!
Há carapau e sardinha linda.
Tenho chicharro lindo, carapau, pescada fina.
Há carapau fresquinho, olha o carapau para o gato.
E ele, havia dias, ciclista a subir a montanha, armado em carapau de corrida, a tudo comprar, a esvaziar-lhe a canastra, a aliviar-lhe o peso do corpo com gosto, a convencer-se a si próprio que apenas por causa das sardinhas, que toda a gente dizia ser peixe de bem fazer ao coração.
Para mais queria que ela, era assim nos seus pensamentos, ao chegar a casa apregoasse que um só cliente, ele o cliente, o camisola amarela, fez o seu dia.
E mais a pensava, a queria, no dia seguinte pelas ruas à sua procura, na expectativa feliz e lucrativa que mais uma vez lhe esvaziasse a canastra.
Com o tempo, ou apenas com a velhice, foi-se acostumando a dar um toque cómico a tudo o que apenas era dramático.
Não dizem que os velhos são tolos?
Pois tolo se deixa pensar!
E mais uma vez continuou a fazer o que se tinha proposto antes de ser interrompido pelos quadris da sua varina.
Chamava-lhe sua. Deixou de chamar-lhe sua.
Contou doze dores.
Como se o seu corpo uma prateleira.
Havia-as arrumadas no mesmo sítio.
Havia-as arrumadas em sítios diferentes.
Quatro das seis que estavam no mesmo sítio eram fáceis de encontrar, porque marcadas por cicatrizes, como se o seu corpo um mapa de piratas e tesouro nenhum, apenas tormentos e cabos no mar.
Uma ferida de bala.
Sim, esteve na guerra, uma guerra quase esquecida à falta de sobreviventes.
Um extirpar do apêndice.
As outras provocadas por acidentes domésticos.
Dois tombos, um aparatoso na juventude, um salto de uma janela de um segundo andar, a janela pertencia a um quarto, o quarto pertencia a uma senhora, a senhora pertencia, supostamente, ao senhor seu marido, e mais não merece a pena contar! E pena nenhuma, tivesse a mesma idade que voltaria a saltar do mesmo segundo andar.
Outro num degrau de escadas da velhice, uma queda sem um pingo de poesia que lhe fracturou a bacia.
Das dores sem lugar no corpo não sabe o que dizer.
Diz que não tem vocação para mineiro.
Para as dores maiores injecções, comprimidos e saquetas que, percebe, arranjam umas e lhe desarranjam as outras, o seu corpo lembra uma balança de ourives.
Depois, a irremediável dor no coração.
Dor nenhuma, que o coração não se queixa!
Uma dor antiga, do tempo em que rapaz moço, que começou no dia em que a sua varina, não saia rodada sob o avental, não chinela no pé, não canastra à cabeça, vestido branco de seda, sapatos de salto e verniz, grinalda de brilhantes e véu de tule, de braço dado com o dono da sapataria, que por acaso ou coincidência era à data o seu patrão, um sovina que, aposta e não perde a aposta, nunca cometeu a extravagância de lhe esvaziar a canastra.
E conclui, contadas do corpo as dores, que são muitos os dias em que se sente bem, porque não sente nada, apenas o sol, morno, saboroso.

Raquel Serejo Martins



Marcos encontra poema de Drummond

Essas Coisas
"Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas."
Há então a idade de sofrer e a de não sofrer mais por essas, essas coisas?
As coisas só deviam acontecer para fazer sofrer na idade própria de sofrer?
Ou não se devia sofrer pelas coisas que causam sofrimento pois vieram fora de hora, e a hora é calma?
E se não estou mais na idade de sofrer é porque estou morto, e morto é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?
*Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

*Poema descoberto por Marcos Foz

a-ver-livros: liberdade e Jean-François Martin

Contém-se o desejo
de esmurrar
morde-se a língua
que quer saltar da boca
escondem-se os olhos
que faíscam
entre páginas
fecham-se os punhos
e prendem-se 
nos bolsos

Não vão saltar
loucas pela liberdade
e dar voz
ao que a alma
grita

Ana Almeida

* para conhecer melhor o ilustrador francês Jean-François Martin
é só seguir os links costume3pieces.com/fr/galerie/Martin e noir-de-mars.blogspot.pt   

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Todos ao Bairro!

Edifício Montepio, Festival do Livro. Fotografia de Miguel Oliveira

Bairro dos Livros «Ler é um carrossel»
13 a 22 de Dezembro // 13h00 – 23h00
MERCADO BOM SUCESSO – BOAVISTA
18 QUARTA 13H-23H
20h00
Casa da Guitarra
Concerto
Todas as idades
Palco
21h00
«Reescrever D. Quixote» por Miguel Miranda, Pedro Guilherme-Moreira e Vanessa Ribeiro Rodrigues
Tertúlia sobre uma grande personagem da ficção universal, D. Quixote de La Mancha
Maiores de 12
Palco
EDIFÍCIO MONTEPIO – ALIADOS
18 QUARTA 13H-23H
21h30
«Bossa nova com sotaque do Porto» por João Morais
Concerto de bossa nova
Todas as idades
Palco

Marcos encontra poema de Bukowski

*Poema descoberto pelo Marcos Foz

É do borogodó: a nossa língua

Aquela miúda é do pioril, mas a malta é tão fixe que acaba por descontar as maldades, embora não dispensem as troças. Claro que faz sentido aos brasileiros, meus compatriotas, a minha afirmativa, mas melhor seria se eu dissesse que “aquela menina é mesmo má, mas a turma é tão bacana que dá desconto às maldades, embora não dispensem tirar um barato”.

Na língua formal e na língua coloquial, entre acadêmicos ou entre adolescentes, portugueses e brasileiros falam a mesma língua e também não.

Estive numa temporada de narrações de histórias com canções em Portugal e, ao perguntar para as crianças portuguesas qual o meu idioma, elas nunca hesitaram responder:

- Falas brasileiro!

A nossa língua portuguesa é tão nossa língua brasileira.

E a musicalidade então, nem se fala. Cada língua se desenvolve com notas próprias e variações de tons peculiares. Curioso perceber que até idênticos sentimentos se desenvolvem de maneira diferente em cada pronúncia da mesma língua.

Um exemplo é a tal saudade que aparece com afagos na bossa nova brasileira, decifrando o amor em linhas que desenham o litoral carioca, montanhas e mar:

Vai minha tristeza e diz a ela que
sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade, a realidade é que
Sem ela não há paz, não há beleza…

Da nossa língua é única expressão: saudade.

Por um momento fico a pensar que dor imensa em no fado a saudade, enquanto, mesmo sôfrego de amor, o poeta brasileiro faz dela um alento, uma brisa, chega até um sorriso.

À portuguesa, a palavra saudade expressa mais melancolia do que em qualquer outro lugar:

Saudade vai te embora
Do meu peito tão cansado
Leva para bem longe
este meu fado…
(http://www.youtube.com/watch?v=8ZcBaVNPy9E)

Temos um território comum na língua portuguesa que nos permite a compreensão uns dos outros e é o nosso patrimônio comum que possibilita a troca e o intercâmbio de informações, a sociabilização de diferentes culturas. Em contrapartida, a língua portuguesa que se fala no Brasil é diferente da língua portuguesa que se fala em Portugal, e nas peculiaridades somos afortunados, afinal, a língua revela a história de um povo e sua própria identidade.

A língua é viva e se modifica no correr do tempo sensível aos elementos de cada espaço. Talvez seja esta a grande razão para refutarmos acordos que formatem a expressão de uma nação com o uso da língua.

Os comparativos de nada servem quando retalham a nossa cultura para dizer que aquilo é que está certo, aqui é que é melhor, este sotaque é horroroso, ou outras coisas assim. Os comparativos são magníficos para quem deseja ampliar fronteiras do pensamento, descobrir o mundo em suas gentes.

Quando se abre uma imensa caixa de bombons, sabemos que tudo ali é chocolate. Mas, se há cereja em um, isso não desmerece a amêndoa do outro. Metáforas achocolatadas superadas, temos muito o que descobrir entre os países lusófonos e eis o instrumento facilitador que nos permite transitar nas particularidades de cada povo: falar língua portuguesa.

Então, prezados lusofônicos, façam suas leituras sem adaptações e busquem imprimir aos ouvidos o som de cada lugar, valorizem as travessias dessa nossa língua portuguesa que está na Europa, na América, na África e Ásia. Para já compartilho dois links com poemas do poeta português Fernando Pessoa, interpretadas por saudosos atores, o brasileiro Paulo Autran, http://www.youtube.com/watch?v=3dRchZ-vRAI, o português Mário Viegas, http://www.youtube.com/watch?v=VnQSA-Kcbno.

Penélope Martins

a-ver-outras-coisas: Livros de cabeceira

Hoje não estou com espírito de "a-ver-livros". Ofereço-vos uma espreitadela para o meu actual livro de cabeceira, que está à espera de uma aberta para começar a ser lido.

"Não escreveu livros, não teve filhos, não plantou árvores - aquelas estúpidas normas do filósofo para que um tipo se sinta realizado. O que há de exaltante na sua existência é seguir a vida dos grandes homens. Mas não é seguir sentado no sofá. Não. É arriscar tudo, ser humilhado até, mas tocar o mistério e sentir que também pode respirar o ar dos eleitos."

in "Sei Onde Mora o Herberto Helder", do alfarrabista Manuel Monteiro


Ana Almeida

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Já sabe o que fazer amanhã? Bairro dos livros, pois claro!

Festival de Livro do Porto, no Mercado Bom Sucesso. Fotografia de Miguel Oliveira.

Bairro dos Livros «Ler é um carrossel»13 a 22 de Dezembro // 13h00 – 23h00
MERCADO BOM SUCESSO – BOAVISTA
17 TERÇA 13H-23H
15h00
«A Noite de Natal» de Sophia de Mello Breyner Andresen por Máscara Solta (FLUP)
Hora do conto
7 a 12 anos
Espaço infantil
19h00
«Badanas & Bananas» na Rádio Manobras (emissão em directo) por Jorge Palinhos e Rui Manuel Amaral, com Jorge Guimarães Silva e Paulo Mesquita
Tertúlia
Maiores de 12
Palco
21h30
«Agostinho da Silva: intervenção oral no Martinho da Arcada / Grupo de Jograis U…Tópico» por Rui Lopo (Grupo de Investigação «Raízes e Horizontes da Filosofia e da Cultura em Portugal»)
Apresentação de audiolivro
Maiores de 12
Palco
EDIFÍCIO MONTEPIO – ALIADOS
17 TERÇA 13H-23H
21h30
«Fado ao lado» por Margarida Linhares, Carlos Semedo e Davi Issufoali
Concerto de fado
Todas as idades
Palco

Emílio Miranda, dia 7

Cobiças um abraço
Como um moribundo
Um sopro mais de vida…
Mas um coração não se enche de esmolas
Não se alimenta de caridade
Mesmo que isso o acalme
Mesmo que isso o distraia
A fome que sobrevém é sempre maior
Sempre maior
Do que o amor que lhe cabe…

Emílio Miranda 

Foto: Cláudia Miranda

Mais um poema de Marcos Foz

arde tudo em volta da casa,
a lua põe-se vermelha
os lençóis negros têm teu aroma
de fogos que fazem homem sorrir
e corvo sobrevoar a casa espreitando
sítio nosso, onde estacionava em ti a minha serenidade
e acontecia-nos poesia.




*Marcos Foz