quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Eu poético: As lágrimas

AS LÁGRIMAS

Naquele dia de manhã
soltas as amarras dos lençóis,
chegas à janela e sentes o calor abrasador.
Esticas as pernas com força para sentir cada músculo
e avistas a cidade ainda serena, também ela a acordar devagarinho.
Pões música enquanto as torradas dançam
e o cheiro do café te entra pelo corpo adentro.
Distraído com as horas, deixas o tempo passar
porque lá fora o futuro espera sempre,
com a ingratidão fria e distante
de nunca aguardar um segundo por ti.
Ouves na rua o amolador, o som do metro cresce e trepa as paredes do quarto.
As gaivotas, num voo nervoso, furam os céus.
Consegues perceber a rotina mágica dos dias,
um a suceder ao outro sem repetir a mesma história.
Vita brevis, ars longa - o teu lugar pequeno na lógica cósmica.

E depois dizem-te que o mundo ardeu
e com ele levou homens, mulheres, crianças.
Ceifou casas, fábricas, carros e jardins.
Animais domésticos e selvagens, campos de trigo, árvores.
Esperanças e vidas de trabalho,
sonhos simples e modestos,
o pouco dinheiro de uma vida,
a subsistência,
o pão do dia-a-dia,
a fé numa outra vida melhor que esta.
A Deolinda, o Joaquim, a Dona Gertrudes,
o pequeno Samuel e a doce Helena.

Apocalipse.
Inferno de Dante.
Terra árida,
sol de cinza.
Portugal.

Tu, cidadão do trânsito,
levas um murro.
Sentes então que há dias e dias,
há imagens que ficam,
há rostos que partem.
Percebes que desaparece tudo,
que os pedaços de chão se apagam,
que o canto madrugador dos melros se silencia
e que fica mais só quem só sempre se sentiu.

Que a chuva nos lave estas memórias.
Que Deus verta, por fim, todas as lágrimas.

Rodrigo Ferrão

Foto: Jornal Público