quarta-feira, 23 de março de 2016

Viseu encheu-se de «Todos os tempos verbais»

Todas as fotografias tiradas por Sebastião Cappelle

Hoje é dia do Pai, data especial no calendário de todos. Dos que nunca o viram, dos que nunca o conheceram, dos que dele fogem, dos que vivem em conflito, dos que o perderam, dos que se esquecem dele, dos que o renegam, dos que sentem saudades, dos que o amam, dos que gostam que esteja presente, dos que se sentem mais pequenos a seu lado, dos que o celebram, dos que nunca se esquecem.

Ter um pai é sempre uma condição que não escolhemos. O meu livro fala de 3 pais e de um outro que está para vir, assim o espero.

Deus é o Pai que nunca vimos, que aprendemos a conhecer pela nossa mãe, nas orações de boa-noite. Crescemos com Ele, pela voz dos que acreditam, pela voz dos que não. Lemos o que falam sobre si, sobre a criação, sobre o amor. Olhamos para o céu e acreditamos na ideia de que Ele nos ampara, que nos protege, que nos ama acima de tudo. Ou então não, simplesmente não aceitamos a sua existência.

Nunca neguei a Sua influência em mim, nas certezas da minha vida e nas dúvidas. E por isso, o meu livro questiona a minha relação com Ele, fruto de conversas que só eu tenho. Ou simplesmente está lá; apenas existe numa imagem, numa palavra, numa frase. Fez sentido que assim fosse, deu corpo a uma ideia, expressou e justificou um caminho.

Nem todos os versos são experiências minhas ou sequer angústias. Deus não justifica todas as minhas alegrias nem todas as minhas tristezas, pelo menos nos poemas que d’Ele falam. Mas Ele será sempre resposta para a inquietação, para o pensamento difuso, para a esperança, para o amor.

E, sem saber bem responder ao eu poético que há em mim, incluo-O. Quase como a minha mão fosse convidada a deixá-lo lá perpetuado, de forma suave ou brusca, nesse velho tema retratado por muitos: a relação do homem com o divino. Com ou sem Ele dentro de nós, é inegável que sabemos o poder que tem.


A ideia de fazer o livro (como já expliquei noutras ocasiões) nasce com outro pai, que não o meu. O meu avô foi pai da minha mãe e dos meus tios, marido da minha avó, médico exemplar e homem do bem.

Foi no dia em que escrevi um poema dedicado a ele que a ideia de fazer um livro fez sentido. Nunca pensei em fazer algo assim, jamais imaginaria estar a escrever neste registo há uns três anos atrás. Mas fui testando o público, pela internet. Fui recolhendo comentários, opiniões, partilhas, uma rede de apoio. Depois, uma pessoa disse-me que aquilo era bonito, que o que leu era o poema que gostava de ter feito, que pus em escrito as suas memórias. Pegaram nas minhas palavras e dedicaram, procuraram perceber o que estava ali, sempre curiosos por saber se aquilo sou eu ou não, se aquilo é vivido, sentido ou não.

Pois bem, há experiências que são vividas, há poemas que jamais poderia ser eu, há ficção e muito daquilo que sou enquanto leitor. Ao mesmo tempo, nunca deixa de ser algo que escrevi. O meu livro sou eu, não sou eu, mas sou sempre eu que lhe dou forma.

O avô Vitorino foi meu vizinho durante muito tempo. O fundo do meu quintal tinha uma porta para a sua casa e eu ia lá muitas vezes. A casa do avô era enorme, tinha uma gruta para explorar e fazermos aventuras, o jardim era cuidado. Pela relva passeava a Lara, uma cadela simpática que ia receber qualquer visita. E depois havia os garnisés, que a minha avó reunia debaixo da janela sempre que lhes atirava pão.

O avô tinha uma sala só dele, que fechava à chave. Durante a minha infância, sempre foi lugar imaginário, sempre foi um espaço que desejava entrar às escondidas e permanecer. Na sala de estar, tinha uma mesa para jogar às cartas, disposta ao lado daqueles telefones antigos, de discar número.

Ainda me lembro de o ver fumar, português suave. E lá ia ele para o consultório ou para os hospitais onde trabalhava.

Sei perfeitamente o dia em que abandonou de vez o consultório. Ainda hoje confesso que me deu a sensação de ter presenciado um dos dias mais tristes da sua vida. Passámos por Sá da Bandeira, no Porto, e ele trouxe uma caixa de livros médicos. Descemos à Cunha, onde sempre íamos lanchar quando estávamos naquela rua. E voltámos a casa, já não me lembro se eu e ele ou se mais alguém.

O meu avô não foi meu pai, mas sei que os filhos gostavam muito dele e sentem enormes saudades. Sei que ele foi e sempre será uma inspiração de humildade. Era uma pessoa encantadora, sempre pronta a ajudar, a conversar, a abraçar de forma sincera os amigos e a família.

São homens assim que inspiram o mundo. Não fazia sentido algum para mim não o recordar. E é por isso que nasce este livro.


Do meu pai tenho também profundas memórias, sobretudo de uma infância passada em muitas viagens. Sempre tivemos interesses diversos, mas fortes interesses comuns. Aliás, é admirável como o nosso pai consegue ter cada filho a representar os gostos que tem – os livros, os cavalos, o vinho, as artes e o restauro. É inegável que teve a sorte de ter grandes continuadores, que nunca fizeram das diferenças que têm com ele uma questão, mas que fizeram das semelhanças uma força.

O meu pai levava-me para a Quinta da Aveleda, quando ele e a mãe eram novos e ambos trabalhavam. Ele ia para as vinhas e deixava-me com um senhor, homem que cuidava de mim e me passeava.

Tive a sorte de ter muita gente a cuidar de mim quando era pequeno. Os avós, a Luzia, o Sr. Fonseca, os caseiros… várias pessoas que fazem parte do meu imaginário e das memórias mais felizes da infância.

O pai e eu íamos também juntos para Águeda. Eu adorava animais e o pai sabia disso. Sempre alimentou essa loucura de forma magnífica. Coleccionávamos patos bravos, perdizes, garnizos de todos os feitios (os felpudos, os das penas ao contrário, os de polpa, os israelitas, os de crista em coroa), tínhamos cabras e ovelhas, chocávamos ovos de poedeira, tirávamos patos das garnizas que estavam chocas ou da máquina. Tentámos sempre também que chocassem ovos de pavão, mas os pavões nunca nasceram.

Lembro-me também quando o pai tinha que ir para as reuniões da cooperativa agrícola, verdadeiro desespero para mim. Ficava no carro a aguardar, por vezes até à hora do jantar. Mas depois podia ter a sorte de passar na pizaria e jantar; valia portanto o tempo perdido.


Tenho a certeza que está muito contente por estar aqui hoje, com a sua família. É importante estarmos juntos, apoiando os projectos que temos, vindo à nova terra da minha irmã, do meu cunhado e da sua família. Viseu é agora mais uma casa, viremos sempre que podermos para celebrar a vida dos nossos.

O poema “nos corredores” é ligado ao meu pai. Passámos muito tempo no hospital, nestes últimos anos, em alguns momentos de angústia e de incerteza. Mas aqueles corredores não representam sempre coisas más, também é preciso ver forças por entre eles. E assim é.

Penso que o pai nunca se sentiu só durante o dia, apesar da noite e manhã nos serem proibidas. Sei que nunca foi fácil para ele, mas também sei que tem a sorte de ter uma mulher fantástica a seu lado, que não o deixa só num único momento. Sei que os filhos foram lá e apoiaram, sei dos irmãos do meu pai, dos cunhados, dos amigos… gente sem fim. E é por isso que guardo momentos importantes, imagens de união, de amizade, de força.

É assim que as famílias devem ser. Só a família sabe compreender toda a plenitude deste amor.


O pai que está para vir poderei ser eu um dia. O meu livro projecta muitos aspectos da minha infância, imagens poderosas das pessoas e lugares que levo na memória.

Se um dia for pai, quero muito que os meus filhos possam correr como eu corri, descer rampas em bicicletas, trepar árvores e fazer cabanas, tomar banho nas águas geladas de um tanque.

Estamos a tornar-nos paranóicos com a protecção das crianças, não as deixamos sozinhas um minuto. Andamos sempre cansados, na correria, no tempo contado ao milímetro. Deixamos os miúdos crescer ao sabor da televisão, do telemóvel e de tantas outras coisas substitutas das emoções.

Pois bem, isso não é o mundo lá fora, não é o ar puro, não representa o afecto e as noites passadas em família.

Os meus poemas da infância são precisamente isso – a celebração da vida em família. De quando íamos para a aldeia, de quando nos reuníamos todos à mesa, cantávamos músicas, escutávamos os discursos dos avós, gelávamos com o frio. O mundo era uma árvore, um campo de milho. Ir à feira era um acontecimento, irmos passear de carro uma romaria.

Se um dia for pai é isto que quero dar aos meus filhos. Espero saber fazê-lo. Se não for pai, pelo menos passarei esse testemunho aos meus sobrinhos, à minha afilhada e às crianças que hão-de-vir.

É para mim uma honra estar aqui no Clube de Viseu, rodeado de pessoas que tenho descoberto aos poucos. Saibam que senti-me sempre em casa, senti-me sempre entre amigos e família.


Temos muita sorte de ter uma pessoa tão especial na nossa família, o Salvador. Ele é um rapaz trabalhador, bem formado, muito crente, super bondoso, preocupado com os amigos e com as pessoas que gosta.

O Salvador traz com ele uma família muito simpática, muito atenciosa, que nos sabe receber na sua casa. Uma família como deve ser, como eu acredito que deve ser.

Não podíamos pedir melhor para a minha irmã, tenho a certeza que vai ser ainda mais feliz.

O mundo precisa de famílias assim. Famílias que têm na sua génese o amor e a bondade, que suportam todos os momentos tristes e celebram connosco os nossos feitos. O mundo está carente de afectos, está perdido em guerras e dá importância à competição, ao mata-esfola, ao “põe-te esperto”. Estamos a criar filhos assim, oferecendo prendas que davam para que brincassem por 3 vidas.

Não sejamos estes pais, é o que penso e reflicto hoje.

Agradeço a todos terem vindo. Por mim, pela minha irmã, pelo meu cunhado, pela minha família. O livro não é assim tão importante… o importante é ter-vos aqui comigo. É prova que estamos no caminho certo, rodeados de pessoas que nos admiram e que celebram a nossa presença.

Farei por voltar sempre a esta cidade, para conhecer ainda mais profundamente este local. Vocês sempre me fizeram sentir bem recebido e hoje Viseu é minha também.

Muito obrigado. Feliz dia do pai.


*Rodrigo Ferrão, no dia da apresentação de «Todos os tempos verbais», no Clube de Viseu

Agradecimentos: David Pintor | Ana Almeida | Ana Paula Oliveira | Helder Magalhães | Clara Amorim | Sara Costa Leite | Clube de Viseu | Salvador Pessanha | Teresa Ferrão Pessanha | Rita Leão | Sebastião Cappelle | Cuca Cappelle Calheiros | José Ferrão | RealBase

terça-feira, 22 de março de 2016

noiva


vestida de branco
a ameixoeira vacila
ao fundo do quintal.

Helder Magalhães


Fotografia de Cris Ferreira