terça-feira, 22 de dezembro de 2015

tão longe

tão longe a quietude das águas
na eternidade das mãos que as adentram
ser o rio debaixo da neblina
que cinge o olhar em remoinhos
tão longe a face dos dias
a saltitar nas memórias polidas pelo tempo
faltaram-nos dedos de fôlego
no balanço de chegar à outra margem
tão longe a brancura da pele
revestida da ondulação do silêncio
nudez da ferrugem agora
à deriva sobre o corpo do passado.

Helder Magalhães

Cristina Coral Photography

domingo, 20 de dezembro de 2015

Aprendizes de Alpinistas na Flanzine


 
Na minha infância roubar chocolates era para meninos, pois o dono da única mercearia da vila, o velho senhor Amorim, surdo, diabético e míope, todavia os predicados, ainda facilitava a ilegalidade ao colocar chocolates, pastilhas, caramelos e rebuçados na esquina de uma prateleira à qual não tinha acesso visual quando sentado ao pequeno balcão atrás da caixa registadora, talvez para se arreliar uma só vez por ano, quando fechava para inventário, porém roubar mangas, da única mangueira da vila e arredores, era uma proeza tal que, entre os pares, miúdos às dúzias, de dez, onze, doze anos, nos ordenava cavaleiros da ordem da bicicleta, veículo de duas rodas com que sonhávamos a cada Natal.
Pois, como se as mangas mouros, igual de audaz a conquista, porque protegidas por um muro monumental, cuja escalada exigia competências de alpinista e destrezas de funambulista para palmilhar o topo ida e volta até à mangueira, e pelo possessivo proprietário, um centenário brasileiro, do qual se dizia que não brasileiro mas alemão em fuga por ter prestado vassalagem ao Führer ou porque chegou à vila de camioneta, penteado risca ao lado a brilhantina, fato de fazenda verde azeitona, botões de metal dourados, calças enfiadas dentro das pretas botas de cano alto, com dois baús forrados a autocolantes, uma mangueira dentro de uma panela de sopa já sem asas e dois cães, um dogue e um pastor alemão com os quais se entendia exclusivamente no que parecia a língua de Goethe, o que, verdade ou invenção, tudo somado, lhe valeu o apelido de Heil Hitler não obstante se chamar Helmut.
E Helmut, para quem a coisa mais difícil do mundo era dormir, apesar de aos canónicos cuidados agrícolas adicionar mimos como, a cada entardecer do curto Verão, colocar a grafonola no quintal a girar discos de bossa só para a menina, a mangueira a menina, quase não colhia mangas, poucas, mirradas e debastadas por passarinhos e passarões, os cavaleiros da ordem da bicicleta os passarões, furioso com as frutíferas expropriações, levou para o quintal metade da mobília da sala, um sofá de pele, uma banqueta para esticar as pernas, uma mesa de apoio onde sempre livros, jornais, uma garrafa de conhaque e passou a fazer guarda à mangueira de escopeta ou, para fazer jus à história, com uma fisga de fabrico próprio e, dono de excelente pontaria, o que ratificava o suposto passado militar, disparava sem pudor sobre os rapazes e as raparigas, que também as havia, que se atreviam na clandestina colheita.
E agora que não existe nem alemão, nem mangueira, nem muro monumental, sobra uma dúzia de velhos que se lembra disto e que quando no supermercado vêem mangas, consta que a fruta fresca mais consumida no mundo, as coisas inúteis que sabemos, não conseguem evitar um sorriso e o pensamento, roubar chocolates é para meninos, agora roubar mangas, só os valentes, e na tentativa de se sentirem outra vez meninos, enfiam sem assobiar uma manga não carrinho das compras mas num bolso da gabardina.
Raquel Serejo Martins
 
Texto que integrou a Flanzine n.º 9 + 1, sob o tema Muro, com o seguinte elenco de fazedores: