Na minha
infância roubar chocolates era para meninos, pois o dono da única mercearia da
vila, o velho senhor Amorim, surdo, diabético e míope, todavia os predicados, ainda
facilitava a ilegalidade ao colocar chocolates, pastilhas, caramelos e
rebuçados na esquina de uma prateleira à qual não tinha acesso visual quando
sentado ao pequeno balcão atrás da caixa registadora, talvez para se arreliar
uma só vez por ano, quando fechava para inventário, porém roubar mangas, da
única mangueira da vila e arredores, era uma proeza tal que, entre os pares,
miúdos às dúzias, de dez, onze, doze anos, nos ordenava cavaleiros da ordem da
bicicleta, veículo de duas rodas com que sonhávamos a cada Natal.
Pois, como se
as mangas mouros, igual de audaz a conquista, porque protegidas por um muro
monumental, cuja escalada exigia competências de alpinista e destrezas de
funambulista para palmilhar o topo ida e volta até à mangueira, e pelo possessivo
proprietário, um centenário brasileiro, do qual se dizia que não brasileiro mas
alemão em fuga por ter prestado vassalagem ao Führer ou porque
chegou à vila de camioneta, penteado risca ao lado a brilhantina, fato de
fazenda verde azeitona, botões de metal dourados, calças enfiadas dentro das pretas
botas de cano alto, com dois baús forrados a autocolantes, uma mangueira dentro
de uma panela de sopa já sem asas e dois cães, um dogue e um pastor alemão com
os quais se entendia exclusivamente no que parecia a língua de Goethe, o que, verdade
ou invenção, tudo somado, lhe valeu o apelido de Heil Hitler não
obstante se chamar Helmut.
E Helmut, para
quem a coisa mais difícil do mundo era dormir, apesar de aos canónicos cuidados
agrícolas adicionar mimos como, a cada entardecer do curto Verão, colocar a
grafonola no quintal a girar discos de bossa só para a menina, a mangueira a menina, quase não colhia
mangas, poucas, mirradas e debastadas por passarinhos e passarões, os
cavaleiros da ordem da bicicleta os passarões, furioso com as frutíferas
expropriações, levou para o quintal metade da mobília da sala, um sofá de pele,
uma banqueta para esticar as pernas, uma mesa de apoio onde sempre livros,
jornais, uma garrafa de conhaque e passou a fazer guarda à mangueira de
escopeta ou, para fazer jus à história, com uma fisga de fabrico próprio e, dono
de excelente pontaria, o que ratificava o suposto passado militar, disparava
sem pudor sobre os rapazes e as raparigas, que também as havia, que se atreviam
na clandestina colheita.
E agora que não
existe nem alemão, nem mangueira, nem muro monumental, sobra uma dúzia de
velhos que se lembra disto e que quando no supermercado vêem mangas, consta que
a fruta fresca mais consumida no mundo, as coisas inúteis que sabemos, não
conseguem evitar um sorriso e o pensamento, roubar chocolates é para meninos,
agora roubar mangas, só os valentes, e na tentativa de se sentirem outra vez meninos,
enfiam sem assobiar uma manga não carrinho das compras mas num bolso da
gabardina.
Raquel Serejo Martins
Texto que integrou a Flanzine n.º 9 + 1, sob o tema Muro, com o seguinte elenco de fazedores: