domingo, 17 de fevereiro de 2013

a-ver-outros-livros no Metro: David Mourão-Ferreira

Anda-se uns passos mais na estação Aeroporto do Metro de Lisboa e lá está também David Mourão-Ferreira. O cachimbo, o dedo no ar, a postura que o cartoonista António tão bem registou no mármore. Quase conseguimos ouvi-lo, lendo do seu livro "Um Amor Feliz":

"(...) a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionado, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem outra mais disposta a por amor ser fecundada.
Como se pode interpretar de outro modo esse velho lugar-comum de ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro? Só se em todos os casos se tratar de grandes e inevitáveis actos de amor: com a Mulher, com a Terra, com a Língua. Mas de plantar árvores e ter filhos haverá sempre muita gente que se encarregue. De destruir árvores também; de estragar filhos igualmente. Em compensação, um livro, um livro que viva, multiplicado, durante alguns anos ou alguns séculos, e que depois vá morrendo, sem ninguém dar por isso, mas nunca de uma só vez, até ser enterrado na maior discrição ou até se ver de súbito renascido, inesperadamente ressuscitado, um livro com semelhante destino - luminoso por mais obscuro, obscuro por mais luminoso -, isto é que foi sempre o que me empolgou
."

David Mourão-Ferreira (Lisboa, 24 fevereiro 1927 - Lisboa, 16 junho 1996), poeta, escritor professor e até jornalista, do Diário Popular até à Capital, de que chegou a ser director. Foi ainda secretário de Estado da Cultura no final dos anos 70 - e fica recordado nesse âmbito por ter assinado o despacho que criou a Companhia Nacional de Bailado. 


Mas fica também na memória de Portugal por ter assinado tantos poemas que Amália Rodrigues cantou. "Abandono", que aqui vos deixo, texto e música, foi gravado pela fadista nos anos 60.

"Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar

Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.

Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
"




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