quinta-feira, 26 de abril de 2012

OS infelizes NÃO CANTAM

Não sou escritor, ele disse.
Não. Ele não disse. Pensou apenas, não sabia o que dizer.
Sentia-se cansado, esgotado, 16 anos demorou a escrever o livro… 16 anos e um casamento, dois filhos, um divórcio, três empregos, três casas, duas cidades, a morte do pai…. a morte do cão…
Já não era a mesma pessoa, lia as primeiras páginas e não se reconhecia, faziam-lhe perguntas e não sabia o que responder, faltavam-lhe pedaços, detalhes, personagens… palavras…
O tempo a diluir a memória… 16 anos a escrever a contra-tempo, a escrever sem tempo… é preciso tempo para escrever, para escolher as palavras, as palavras não são todas iguais… e mesmo assim, mal fermentado, tosco, pareceu-lhe que tinha um livro, ou isso, ou já não lhe suportava a convivência, como acontece mesmo aos amores.
Mais do que o tempo gasto a escrever, lembra-se do outro tempo, dos intervalos intermináveis em que não conseguia escrever, os dias, 24 horas, as 7 horas imprescindíveis de sono e depois a fábrica, a mulher, e a fábrica, o primeiro filho, e a fábrica, o segundo filho, e a fábrica, o cargo de director, e a fábrica, a segunda mulher, e a fábrica, a morte do pai, e a fábrica, a morte do cão, e a fábrica, o curso de alemão, e a fábrica, a viagem à Polónia, e a fábrica, a viagem à República Checa, e a fábrica, a viagem à Alemanha, e a fábrica… e todas as fábricas iguais, e não iguais mas iguais, as cores, os cheiros, as galochas, os óculos, as luvas.
E apesar da fábrica, era feliz na fábrica, gostava principalmente das pessoas, simples, sérias, trabalhadoras.
E apesar da fábrica a constante necessidade de escrever… necessidade, sim, é essa a palavra, estranha assenta-lhe bem como adjectivo, prazer não lhe serve como complemento.
Imprimiu o livro e não conseguia chamar-lhe livro, chamar-lhe seu, sempre demonstrou dificuldade na aplicação de pronomes possessivos.
Quando foi buscar os exemplares, 26 exemplares, 26 trabalhos, como disse o senhor das fotocópias, encadernados, faziam lembrar livros, e não livros, sebentas… por instantes lembrou-se da faculdade, do entediante curso de engenharia, e em consequência sorriu.
26 trabalhos encadernados a €3,80/cada são… Mas espere! Antes tem que me dizer uma coisa, tem que me dizer “o que foi feito de nós”?
Olhou para o senhor, quase comovido, reprimiu a vontade de lhe dar um abraço, ou isso ou o tamanho da caixa registadora em cima do balcão não lhe permitiu o gesto.
Imaginou-o, enquanto encadernava os 26 exemplares, confrontado com o título e a pensar no que foi feito de si, onde se perdeu para agora passar as horas dos dias a tirar fotocópias e a fazer encadernações, prefere térmica, de calha ou em espiral, sim, em espiral parece-me mais prática e resistente, e a capa, quer de cor, em preto ou transparente, de cor temos verde, azul, vermelho e amarelo, não, não temos branco, mas, se quiser, podemos pôr transparente com uma folha branca a fingir.
A petulância dos seus pensamentos, por pensar que o senhor das fotocópias não era feliz no seu trabalho, parecia-lhe feliz, constantemente a cantar, e não a cantar, a trautear melodias que punham as pessoas do outro lado do balcão a abanar a cabeça ou a bater o pé em sincronia.
Os infelizes não cantam.
“O que foi feito de nós”, ele vaidoso com o título, a concluir timidamente que podia ser um bom título, consciente da importância do título na estante de uma livraria, pagou e saiu, quase confiante, a trautear a mesma canção que encontrou no assobio do senhor das fotocópias.
A confiança é um balão que esvazia lentamente.
Lembra-se do dia em que foi ao correio, levava a mochila e o guarda-chuva, chovia, coisa que o incomodava e a que nesse dia achou graça, estava feliz, a chuva é incapaz de interferir nos dias felizes, já nos dias normais… a felicidade é anormal… a chuva incomoda principalmente sob a influência da proximidade de portas, fixas, do trabalho, do emprego, do supermercado, ou móveis, do carro, do autocarro, do comboio, e dentro de elevadores.
A confiança é um balão que esvazia imperceptivelmente.
6 meses e nenhuma resposta.
8 meses e nada.
10 meses.
11 meses e a primeira carta, lamentavam, o livro não tinha cabimento no seu projecto editorial… e depois mais cartas… todas iguais… até que, quase três anos depois, uma carta a marcar uma reunião, a revelar interesse, a questionar da sua vontade.
Não há amor como o primeiro.
E não foi o seu primeiro amor, foi a única editora que quis publicar o seu livro.
Lembra-se quando o editor o convidou para um café e lhe entregou um exemplar do seu livro, dizia apenas livro, continuava inábil na utilização de pronomes possessivos.
Depois o lançamento, as palavras bonitas de outro escritor da mesma editora, chamou-lhe colega, quase chorou, e não lágrimas, apenas cansaço, devia sentir-se mais feliz e sentia-se apenas cansado… talvez porque tudo aconteceu depois de muito sonhado, os sonhos também se gastam, envelhecem, oxidam, enferrujam, mirram, esvaziam-se…
Os filhos, a mãe, os colegas da fábrica com evidente orgulho, que segredo bem guardado, ó engenheiro!
Até que um prémio, chamavam-lhe autor revelação e, para revelação tiravam-lhe fotografias. A mãe fez um álbum só com recortes, que é como quem diz fotografias, de jornais e revistas.
E agora estava ali, na televisão, com um microfone na lapela e o único Nobel português da literatura sentado ao seu lado esquerdo.
Se era escritor?
Pensava… e não sabia o que dizer… como dizer… talvez porque sempre teve dificuldade em conjugar pronomes possessivos… mas não lhe parece resposta que se entenda ou, como diria a mãe, que se apresente.

2 comentários:

  1. Este texto caiu no meio de uma pesquisa do google nada relacionada, e fez-me parar, para o ler todo, com um sorriso... O que será feito de nós quando lá chegarmos?
    Obrigada pelo momento de boa prosa e por um texto sobre o qual perder algum tempo a pensar.

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