No momento da sua última viagem, recorde-se o lado literário de Miguel Portas, político, jornalista, curiosamente economista de formação. "Não exerci para não prejudicar o país", brincou, na última entrevista que deu ao jornal "Expresso", em Julho do ano passado.
Autor de
"E o Resto é Paisagem" - Dom Quixote, 2002
"No Labirinto - O Líbano entre guerras, política e religião" - Almedina, 2006
e "Périplo" - Almedina, 2009
- este último um
livro de viagens que não se esgotavam nos documentários feitos a meias com o realizador Camilo Azevedo para a RTP em 2005 -,
Miguel Portas revelava-se "um viajante eternamente
jovem e obstinado, que gosta de encontrar realidades diferentes, surpreendentes
e contrastantes; que, apesar de uma lucidez feroz e muitas vezes mortífera, mantém uma atitude de romantismo assumido, quer na escola dos temas,
quer da defesa corajosa daquilo que ele poderá definir como as suas 'causas';
alguém que não somente tem prazer em escrever como revela a
partir do manifesto prazer da escrita uma sensibilidade estética que o protege
de anquilosamentos ou fossilizações", como escreveu Eduardo Prado Coelho no prefácio.
Para a memória do futuro, eis um trecho de "Périplo":
"Se em Santa Sofia o visitante ainda hoje se sente um grão de areia na casa do Senhor, na mesquita andaluz, pelo contrário, devia perder-se. Claro que o incomoda a enxertia da catedral católica no seu interior. O incruste é como uma cruz cravada em terra de infiéis. No entanto, é esta estranheza arrogante que acaba por revelar a altura da construção islâmica, até aí oculta na harmoniosa monotonia da floresta de arcos em
"Se em Santa Sofia o visitante ainda hoje se sente um grão de areia na casa do Senhor, na mesquita andaluz, pelo contrário, devia perder-se. Claro que o incomoda a enxertia da catedral católica no seu interior. O incruste é como uma cruz cravada em terra de infiéis. No entanto, é esta estranheza arrogante que acaba por revelar a altura da construção islâmica, até aí oculta na harmoniosa monotonia da floresta de arcos em
que assenta. O mesmo Deus era, portanto, diferente, consoante se adorava em Istambul ou em Córdoba."
E outro, este de reflexão sobre o que é "Périplo",
in Sem Muros, o blog do próprio Miguel Portas:
"Os povos do grande lago são mestiços sem excepção. Não acreditem quando vos disserem que houve quem preservasse o sangue e apurasse a raça. Com nenhum povo foi assim porque o Mediterrâneo é o lugar onde a vida se fez Tempo e este livro é sobre esse casamento feito de festas e amores, zangas e equívocos."
in Sem Muros, o blog do próprio Miguel Portas:
"Os povos do grande lago são mestiços sem excepção. Não acreditem quando vos disserem que houve quem preservasse o sangue e apurasse a raça. Com nenhum povo foi assim porque o Mediterrâneo é o lugar onde a vida se fez Tempo e este livro é sobre esse casamento feito de festas e amores, zangas e equívocos."
À tal entrevista do "Expresso", Miguel Portas explicava-se: "A
razão pela qual tenho de escrever livros é exactamente para evitar a carga de
droga dura que a política traz." E, a dado momento, 53 anos, consciente do cancro de pulmão que o consumia, rematava: "Ao
chegar ao fim da vida, quero poder olhar para trás e dizer: terei feito algumas
asneiras, mas no conjunto posso partir, lá para onde for, com tranquilidade."
Que a nova viagem seja tranquila, Miguel Portas.
(Obrigada pela ajuda para este post, José Carlos Rodrigues)
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