segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

1º Parágrafo: As Meninas


Sentei na cama. Era cedo para tomar banho. Tombei para trás, abracei o travesseiro e pensei em M.N., a melhor coisa do mundo não é beber água de coco verde e depois mijar no mar, o tio da Lião disse isso mas ele não sabe, a melhor coisa mesmo é ficar imaginando o que M.N. vai dizer e fazer quando cair meu último véu. O último véu! Escreveria Lião, ela fica sublime quando escreve, começou o romance dizendo que em dezembro a cidade cheira a pêssego, Imagine, pêssego. Dezembro é tempo de pêssego, está certo, às vezes a gente encontra as carroças de frutas nas esquinas com o cheiro de pomar em redor mas concluir daí que a cidade inteira fica perfumada, já é sublimar demais. Dedicou a história a Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte, tudo em latim. Imagine se entra latim no esquema guevariano. Ou entra? E se ele gostava de latim. Eu não gosto? Nas horas nobres, deitava no chão, cruzava as mãos debaixo da cabeça e ficava olhando as nuvens e latinando, a morte combina muito com latim. Não tem coisa que combine tanto com latim como a morte. Mas aceitar que esta cidade cheira a pêssego, exorbita. Qué ciudad será esa? ele perguntaria na maior perplexidade. Tercer Mundo? Terceiro Mundo. Y huele a durazno? Na opinião de Lia de Melo Schultz, cheira. Ele então fecharia os olhos onde eram os olhos e sorriria um sorriso onde era a boca. Estoy bien listo con esas mis discípulas. Enfim, problema dela, o meu é M.N., um M.N. nu em pêlo, muito mais em pêlo do que eu, ele é peludo à beca, assim na base do macaco. Mas um macaco lindo, a cara tão intelectual, tão rara, o olho direito um pouco menor do que o esquerdo e tão triste, todo um lado da sua cara é infinitamente mais triste do que o outro. Infinitamente. Eu poderia ficar repetindo infinitamente infinitamente. Uma simples palavra que se estende por rios, montes, vales infinitamente compridos como os braços de Deus. As palavras. Os gestos se renovando como a pele da cobra rompendo lisa sob a pele velha. E não é viscosa, toquei nela na fazenda, era verde e espessa mas não viscosa. O gesto de M.N. também novo, não é verdade que tudo será como das outras vezes, ele virá de pele limpa, inventando o inventado nas suas minúcias. Se Deus está no pormenor, o gozo mais agudo também está na miudeza, ouviu isto, M.N.? Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços, a cena do biquíni não tinha a menor importância mas assim que começava a tirar os cílios, era a glória. Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo. Pura convenção achar o sexo obsceno. E a boca? Inquietante a boca mordendo, mastigando, mordendo. Mordendo um pêssego, lembra? Se eu escrevesse, começaria uma história com esse nome, O Homem do Pêssego. Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite: um homem completamente banal com um pêssego na mão. Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava e apalpava entre os dedos, fechando um pouco os olhos como se quisesse decorar-lhe o contorno. Tinha traços duros e a barba por fazer acentuava seus vincos como riscos de carvão mas toda a dureza se diluía quando cheirava o pêssego. Fiquei fascinada.


1 comentário:

  1. Um dos meus livros preferidos. Desta escritora também gostei muito dos contos e do livro Ciranda de Pedra.

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