segunda-feira, 26 de março de 2012

a-ver-livros: Vanessa pinta Virginia


Bato de frente com este conjunto de sobrecapas de livros de Virginia Woolf, já nem sei porquê. E acho curiosa a coerência estética de todas elas, mesmo atravessando um período de mais de trinta anos. Criadas por Vanessa Bell, dizia a legenda. Mas quem raio é Vanessa Bell, interrogo-me, que Virginia Woolf conheço bem, conhecemos todos, creio. E, como sempre quando me interrogo, vou em busca de uma resposta.

Vanessa Bell, a pintora, era irmã mais velha de Virginia, a escritora. Artista de créditos reconhecidos, espécie de matriarca não-oficial do círculo de pintores, escritores e outros artistas e intelectuais que viria a ficar conhecido como Grupo de Bloomsbury. Vanessa nasceu em 1879 e partiu em 1961, octogenária, depois de uma vida longeva, recheada de polémica, amores, arte e morte.

Ninguém o poderia prever quando as duas manas eram apenas crianças ou adolescentes, no seio de uma família privilegiada, a jogar criquete no relvado e, nos tempos livres das aulas com tutores particulares, entretidas na salinha privada com livros e tintas. No entanto, estava lá tudo. Por exemplo, ambos os pais já tinham sido casados em primeiras núpcias e tinha outros filhos. Do lado paterno, Laura, que seria dada como louca. Do materno, Stella, que morreria cedo, e Gerald e George, que marcariam para sempre as duas meias-irmãs, Vanessa e Virginia, ao abusar delas sexualmente desde tenra idade, como se veio a revelar muito mais tarde.

Quando ambos os progenitores morrem, Vanessa quer afastar-se dos meios-irmãos o mais que lhe for possível. Vende a propriedade de Westminster, onde viviam, e com Virginia e os dois irmãos mais novos, Thoby e Adrian, muda-se para Bloomsbury, onde tudo começa a acontecer à medida que os rapazes vão crescendo, indo estudar para Cambridge e trazendo depois os colegas de lá para tertúlias caseiras.

Espíritos livres, criativos e de muitas formas torturados, as manas avançam na vida por caminhos paralelos, recheados de casos amorosos, hetero e homossexuais. Virginia, é do conhecimento geral, no meio de vários relacionamentos, entregou-se aos prazeres sáficos, embora casada com Leonard Woolf. A também escritora Vita Sackville-West foi talvez a sua verdadeira grande paixão. Pois também Vanessa viveu um ‘casamento aberto’. Deu o nó com Clive Bell em 1907, de quem teve dois filhos, Julian e Quentin, mas ambos tiveram os amantes que quiseram, fazendo vidas praticamente separadas. Ela nomeadamente com o pintor Duncan Grant, com quem teve uma filha, Angelica, – que Bell perfilhou, para evitar falatório – e com quem marcou também um estilo de decoração de interiores que perdurou por muito tempo, pintando paredes, portas e móveis na quinta de Charleston, para onde foram viver a determinado momento. Ele, ela, as crianças e, na maior parte do tempo, também o amante de Duncan, David Garnett.

Mas interessam-me as irmãs, sempre insatisfeitas, inquietas. Como interessou, por exemplo, ao realizador Stephen Daldry que, no filme “As Horas”, deu o papel de Virginia a Nicole Kidman e o de Vanessa a Miranda Richardson. Sim, eram as duas muito próximas. E de várias maneiras. Desde a ciumeira entre manas – que leva Virginia a manter um flirt prolongado com o cunhado –, até ao amor e apoio incondicional que manifestam constantemente. No caso de Virginia, por exemplo, quando na primavera de 1911, ela própria no meio de mais uma depressão, vai ter com Vanessa à Turquia onde, de férias, esta sofrera um aborto espontâneo e um colapso nervoso. Escrevendo à irmã em 1937, Virginia interroga-se: “Achas que temos o mesmo par de olhos, apenas com diferentes óculos?”

A vida das duas mantém-se fortemente ligada até ao fim, entre romances de sexualidades várias, desgraças em catadupa e muito talento artístico, uma para as palavras, outra calando-as mais e mais a cada desaire e transformando-as em quadro atrás de quadro, isolando-se numa dolorosa explosão de criatividade. Como quando, ao lado de Duncan e depois do nascimento da filha de ambos, este volta a assumir a sua homossexualidade e Vanessa, em vez de se revoltar, aceita apenas e contenta-se em manter o maravilhoso e intenso carinho que tinham um pelo outro pintando lado a lado para o resto da vida. Ou mais tarde, em 1937, quando lhe morre o filho mais velho, Julian, bombardeado quando conduzia uma ambulância durante a Guerra Civil Espanhola. Ou por fim, em 1941, quando Virginia, considerando que está a enlouquecer de vez, escolhe encher os bolsos de pedras e entrar rio Ouse adentro, deixando uma nota de suicídio.

Curiosamente, Virginia odiava posar. Apesar disso, em tela de 1911, Vanessa retrata-a a tricotar, afundada num cadeirão. Tal como a personagem Mrs. Ramsay, num momento de calma intimidade, em “Rumo ao Farol”, sendo apenas ela mesma. Mas Vanessa imortalizou-a também numa outra tela, em 1934, que fora exposta na Galeria Lefevre, vendida a um coleccionador privado e desaparecida depois na voragem do tempo. Pensava-se até que pudesse ter sido destruída durante a segunda Guerra Mundial.

Até que, 70 anos depois, em 2004, um telefone tocou na fundação que garante a memória de Charleston e alguém informou que o quadro ainda existia e continuava até na mesma família de quem primeiro o adquiriu – que o veio a ceder para exposição. Vanessa imortaliza-a sentada na saleta da casa de Londres, 52 Tavistock Square, pés em cima de um tapete desenhado por Duncan Grant. Numa carta, a escritora recordava que, embora surgisse depois no quadro com ar sério e sem qualquer livro nas mãos, durante as sessões em que foi feito, ela e Vanessa se mantiveram entretidas com a leitura das escandalosas memórias da amiga Ottoline Morrell.

Vanessa pintara este quadro na sequência de um pedido feito pela National Portrait Gallery, que Virginia escolheu declinar. Numa carta para o sobrinho Quentin Bell, a escritora explicava: “Eles vão guardá-lo numa cave algures. E dez anos depois de eu morrer vão expo-lo e dizer: alguém quer saber como era Virginia Woolf? E todos vão responder: não. E vai acabar por ser destruído.” Enganava-se. Como se terá enganado quem pensou que Vanessa era “apenas” a irmã mais velha da formidável escritora. As duas partilharam vidas incomuns, intensas, retorcidas e é difícil dizer qual delas influenciou mais a outra.

Certo é que, como Vanessa escreveu um dia, “Será uma vida estranha, mas... deverá ser uma boa vida para pintar”. Virginia não teria dito – ou escrito – melhor.

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