A
viagem vai começar.
Saí
de Santarém para Abrantes. Cidade especial que na última década e meia
tem vindo a fazer jus ao espírito criativo, que sempre a caracterizou, mas que
se manteve desconhecido para os demais. É sabido e reconhecido na cidade que a
vinda da ESTA – Escola Superior de
Técnologias de Abrantes, trouxe outra cor, outro movimento, outros hábitos e
necessidades. E falando em hábitos, no que nos toca neste roteiro, é
interessante perceber, a um dia de semana, o quanto a criatividade é explorada
quando se encontram entes a divagar, desde os discentes de Comunicação e Video
aos de Engenharia, na esplanada do Chave D´ouro. Seria comum a qualquer cidade,
palco de ensino superior, encontrar os atarefados estudantes, em plena
produção, nas mesas dos cafés. Neste caso, são os próprios docentes que criam estes momentos ao ar livre e fomentam as tertúlias nas áreas criativas. Na falta de
um Campus, o centro da cidade veste o efeito e parece-me que, mesmo que este
existisse, nada substituiria o deleite da construção colectiva no meio da
vivência do dia-a-dia. Não muito longe deste largo, nada longe mesmo, diria que
a metade de meio passo, paredes meias com a dita ESTA, fica a Biblioteca Municipal António Botto, no Antigo Convento
de São Domingos. Esta biblioteca é qualquer coisa. Não só pelas fachadas do
edificado como, e apesar delas, pelo mundo que se abre quando se passa a porta.
São dois mundos que se fundem com os livros pelo meio ou, são os livros que
fundem tamanha ideia de recuperação. Exagero? Talvez, mas as emoções dependem
tanto dos nossos olhos como os pormenores da vontade de os encontrar. E ali, a
“passagem” é perfeita. Esta biblioteca tem actividades mensais e actividades
temáticas, chama a si os Abrantinos em vários formatos. Em exposições, em
palestras, em encontros, em lançamento de livros. Em apresentação de autores.
Na coincidência feliz de uma quinta-feira cheia, a António Botto recebeu
Richard Zimler, o autor do Último Cabalista de Lisboa que
escolheu esta cidade para morada de resguardo. Numa sessão dupla, tendo sido a
primeira firmada para o público juvenil com a Ilha Teresa, a segunda
foi aberta ao público em geral com Anagramas de Varsóvia. Livros a ser
sublinhados num futuro próximo. A visita terminou, forçada, sem tempo para
passar pelo cine-teatro São Pedro para perceber a agenda. Valeu-me ter visto no
Chave D´ouro que o grupo de Teatro Palha de Abrantes continua em grande. Valsou
a memória 3 anos para trás quando este grupo mergulhou em Raul Brandão e O Rei
Imaginário. É trabalho que vale sempre a pena acompanhar. Mas faz-se
tarde, a próxima paragem rápida é Tomar. Enquanto viajo aproveito para dizer
que António Botto, um Abrantino, foi um magnífico e polémico poeta cuja obra
mais conhecida, Canções, foi traduzida para Inglês pelo seu mui amigo Fernando
Pessoa. Dos seus Sonetos ao O que ainda não se escreveu, acrescenta-se
a marca de água de uma peça inquietante, Alfama.
Chegada
a Tomar já pela noite, e com o sentido no grupo de teatro abrantino, a
primeira vontade foi perceber o que anda a fazer um outro grupo, este
tomarense, Os
Fatias de Cá. Rapidamente percebi que andam em digressão
com a Menina Inês Pereira. A última vez que assisti a uma peça, encenada
por esta peculiar companhia, foi mesmo ali, em Tomar, no Convento de Cristo.
Com todo o realismo possível e vestes da época a tentar descobrir O
Nome da Rosa , qual Umberto Eco tão bem adaptado. Inevitável sorrir e
pensar em mais uma cidade cheia de recantos e encantos. Para quem procura
inspiração Tomar é um grito. Esplanadas e esplanadinhas com o rio Nabão a brindar
aqueles jardins que parecem saídos dos contos de Andersen. O caminho para o
Convento de Cristo e a famosa Mata dos 7 montes. É impossível não cair na
tentação das desmistificações templárias e correr aqueles caminhos de mãos
estendidas à viagem que faz pausa na Charola. Como a noite já vai longa o
recurso é mesmo a memória. E eis que me lembro de um autor que deixei em
Abrantes. José Manuel Heleno, e o Atentado ao Pudor ou o Demónio
de Sócrates, dois exemplares de uma obra mais vasta, em torno do ser
filosófico ou da filosofia do ser. Tiraram-me horas de sono, mas em bom. De
Tomar fica a essência do lugar, a vontade de voltar com tempo, com o tempo
imergido do espaço, transformado em sala de leitura gigante, em atmosfera
perfeita de sonho e inspiração. De perceber um pouco mais, ou mesmo tudo, de
Jacomme Raton, de Vieira Guimarães ou de Carlos Campeão dos Santos. Tudo nomes
para ir à procura, perguntar, indagar, memorizar. E ando há tempo para perceber
o todo de um escritor prodígio, que tem 35 anos e uma estante repleta de livros
da sua autoria. A sua graça, estória e obra ficam para outras núpcias. Não é
difícil, pela descrição, chegar ao nome deste ser.
Torres Novas. O caminho faz-se de manhã ao
encontro da Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes. É lá que recolho a agenda
cultural. Aqui temos um elencar curioso. Posso dizer-vos que a oferta de
iniciativas é bastante interessante! Há espaço para Bliblo-cinéfilos, música ao
vivo a cada 4ª - quarta-feira de cada mês. Dia 29, por exemplo, haverá clube de
leitura e, pasmem-se, com o titulo " discussão em torno de livros",
feito na cafetaria da Biblioteca. Há também as Quintas à Escuta, abertas dos
zero aos noventa e nove anos, onde o mote é a leitura em voz alta. Há ainda a
Oficína do Conto, protagonizada por um "Chef das histórias". Há uma
intenção declarada de criar hábitos de leitura e proporcionar as condições para
o efeito. De salientar que esta biblioteca tem uma outra, a biblioteca
braille. Esta é a cidade de Maria Lamas, escritora e jornalista, autora de
vários contos infantis, mas também de romances e do célebre livro As
Mulheres do meu País. Esta é a cidade que no ano passado acolheu o Bookcrossing
"um clube de livros global que atravessa o tempo e o espaço. É um grupo de
leitura que não conhece limites geográficos. Os seus membros gostam tanto de
livros que não se importam de se separar deles, libertando-os, para que possam
ser encontrados por outros. O objectivo do Bookcrossing é transformar o mundo
inteiro numa biblioteca." O Tema foi o livro infantil. É com conforto que
o tempo de espera, até à saída para outras paragens, é feito no Jardim das
Rosas, bem perto da biblioteca, com o rio Almonda por companhia.
O
"regresso a terra firme", esse, sorri à passagem mental por dois sítios, Vila Nova da Barquinha
e Constância. O primeiro num apontamento muito rápido, o castelo de Almourol.
Quem me dera ter o tempo do Mundo, a folha de papel guardada ao acaso e o lápis
mal afiado. E sentar-me ali, naquela ilha no meio do rio, a voar por toda a
paisagem, com toda a brisa e até com a chuva. Todos os amantes da escrita
merecem um cosmos de inspiração como aquele. O segundo apontamento, a vila de
Constância. A que chama a si a estadia vincada de um Camões, conhecida, e bem,
como a Vila Poema, tem na casa dos Arcos a sua morada e no Zêzere toda a
vontade que tudo isto não seja Lenda.
Pés
ao caminho, para a próxima semana, em Terras da Beira.
Estou a adorar este roteiro...quem me dera poder seguir estes passos todos. Cá por Coimbra também temos alguns professores que estimulam a criação ao ar livre... estou a frequentar uma cadeira na FLUC em que a professora o faz muitas vezes e tem previstas algumas sessões de escrita à vista em locais públicos...foi essa cadeira que me despertou para o assunto e que me levou a deixar a sugestão de registo de alguns locais para ler/escrever quando falou da Brasileira de Coimbra. Quando disse que pensava fazer esses apontamentos não esperava um roteiro completo e muito menos que fosse vê-la de mala feita por este país fora...Parabéns isto está fantástico. *
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