domingo, 18 de março de 2012

"A vida, a vida, Herr Professor, o que sabes tu da vida?"


"O primeiro gole, gelado e cheio de espuma, estimulou-lhe o cérebro. Então pensou em Salgari e em Júlio Verne: eles não viveram, imaginaram. O que estava nos livros deles não provinha de factos vividos, de experiências concretas. Mas também não é experiência o que surge apenas do nosso intelecto, da nossa imaginação? Aí estava o quid do assunto. Os sonhos, as ideias, as elucubrações a que os homens se entregam para suportar a vida, não serão, acaso, reais? Este era o seu ponto forte, porque na sua vida, ao fim e ao cabo, decorrera entre livros. A sua coluna vertebral, mortificada pela escoliose, tinha a forma de um corpo inclinado sobre um livro. Os olhos estavam habituados à luz dos candeeiros e à penumbra agradável das salas de leitura. Vivia encerrado na sua mente como uma casa sem portas, apenas com duas varandas de onde podia ver a rua, mas sem comunicação com ela. O ruído do abre-latas e os salpicos de espuma na camisa acompanharam a ideia de que, talvez, a vida mundana também valesse a pena. Por que não? É estranho, disse para consigo. A sua paixão pelo futebol – uma dolorosa recordação da infância – provocava-lhe um prazer enorme, o que, aos seus olhos, ratificava o facto de que meter os pés da lama de vez em quando não era mau, por muito alta que fosse a opinião que tinha sobre si próprio. Camus também jogou futebol e declarou uma vez que o que de mais interessante fizera na vida fora um golo resultante de um livre. Talvez, pensou Klauss, no organigrama da sua existência, faltasse uma maior entrada de realidade. Seria capaz, como Loti, de escrever um diário? Sobre este assunto lembrava-se de alguma coisa. Era uma classificação do carácter humano feita por um psicólogo francês, René Lésaine, que dividia as pessoas em três tipos: nervosos, sentimentais, e apaixonados, e, por sua vez, cada um destes em activos e passivos. O diarista, segundo Lésaine, seria o produto natural do “nervoso passivo”. Nunca pensara nisso antes mas calculou que um diário seu acabaria por se transformar numa bitácula de ideias, abstracções e conceitos, ao estilo do diário de Witold Gombrowicz. Poderia ser interessante pôr-se à prova. Experimentar. Mas como? As páginas de Loti, cujas letras quase não distinguia na penumbra, queimaram-lhe as mãos. Talvez tivesse chegado ao momento, aos seus sessenta e seis anos, de dar um abanão à vida. “A vida, a vida, Herr Professor, o que sabes tu da vida?”, continuava a gritar-lhe o cérebro, ensurdecedor, um pequeno génio, um Grilo Falante dilemático que de vez em quando aparecia quando os eflúvios do álcool lhe abriam gretas no intelecto."

In "Os impostores", Santiago Gamboa

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