sábado, 17 de março de 2012

De mulheres e tankas


Haikus já conhecia. Mas graças a um presente em forma de livro – “O Japão no Feminino I – Tanka”, da Assírio & Alvim – descobri também os tanka. Uns e outros, pequenas composições poéticas nipónicas abordando a natureza, a religião, o amor. A diferença entre uns e outros? Um haiku tem 17 sílabas, um tanka 31.

Realmente inesperado para mim foi, através da introdução, a descoberta de uma certa liberdade de que a mulher japonesa já usufruia há mil anos, quando a monumental cidade de Heian-Kyo (que hoje conhecemos como Kyoto) era já um dos grandes centros civilizados do mundo.

A poligamia era habitual nos homens, sim. Mas, “os casos amorosos eram aceites às mulheres solteiras”. “Uma mulher solteira podia ter vários namorados e vários romances com homens casados, desde que usasse maior discrição. A esposa, pelo contrário, era suposto ter só um marido e ser-lhe fiel.”

“A mulher do período Heian tinha, mesmo assim, bastante independência nos assuntos do coração e também nas questões monetárias, podendo ser proprietária e usufruir de rendimentos próprios. Também podia divorciar-se ou separar-se, independentemente da opinião familiar.”

Mais me fascina ainda, no entanto, o ritual amoroso assente na poesia que então se vivia. “O primeiro sinal para um novo romance (...) era a chegada à porta de casa de um mensageiro com um poema de cinco linhas escrito por mão desconhecida. Se o poema, a caligrafia e o papel fossem do agrado da dama ou da donzela havia uma resposta encorajadora, também em forma de poema.” Dali em diante, toda a relação seria assente nesta troca de missivas poéticas, com uma etiqueta a cumprir.

No volume em questão, surgem os tanka de duas grandes senhoras: Ono no Komachi, figura lendária da história literária do Japão, que viveu no século IX, e Izumi Shikibu, considerada a maior mulher poeta do país, que viveu no século X-XI. Textos intemporais – de que não se pode falar de tradução, mas sim “de aproximação” em português, assinada por Luísa Freire.

Deixo-vos com quatro tanka de cada uma delas. São tão simples. E tão bonitos.

Komachi

“As cigarras cantam
à hora crepuscular
na aldeia do monte –
esta noite ninguém vem,
excepto o vento, visitar-me.”

“O pescador de algas
volta sempre à minha praia.
Será que ele não sabe
que mais nada apanhará
nesta baía deserta?”

“Este meu corpo
tão frágil e flutuante.
é uma cana sem raízes.
Se um rio acaso pedir
que o siga, eu acho que irei.”

“A aldeia do monte
poderá ser solitária...
Mas viver aqui
é mais fácil do que habitar
entre os desgostos do mundo.”

Shikibu

“Mesmo que eu agora
te visse uma vez que fosse,
o meu desejo de ti
atravessaria mundos,
todos esses mundos.”

“Se o cavalo dele
tivesse sido domado
pela minha mão –
eu tê-lo-ia ensinado
a não seguir mais ninguém.”

“O mundo corre depressa
e a Primavera acabou.
Parece que ainda ontem
estava, tudo o que via,
em plena floração.”

“Consumi o corpo
a desejar o regresso
do que não voltou.
É agora um vale profundo
o que foi meu coração.”


* A ilustração inicial chama-se "Lady Reading Before an Ornate Screen" (1905), de Ikeda Terukata,

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