terça-feira, 20 de março de 2012

Sobre o gosto pela leitura - num livro de Virginia Woolf

Orlando - uma biografia foi livro do mês há muito tempo aqui no blog. Mas eu continuo a lê-lo com imensa tranquilidade e prazer.

Abrindo a página 53 (na edição BI - Biblioteca editores Independentes), podemos observar como a "doença" da leitura consumia Orlando. E que outros males trazia...

"(...) O gosto pelos livros fora nele precoce. Em criança, várias vezes o haviam surpreendido, à meia-noite, ainda debruçado sobre uma página. Tiravam-lhe a vela, e ele criava pirilampos, e por pouco, não incendiava a casa com um morrão. Para resumirmos o caso em poucas palavras, deixando ao romancista o cuidado de analisar e espraiar em todas as suas implicações a seda que assim comprimimos numa casca de noz - diremos que o nosso fidalgo padecia de amor pela literatura. Muitas pessoas do seu tempo, e muitas mais ainda da sua condição, escaparam a tal doença, ficando deste modo livres de correr mundo, cavalgar ou amar como melhor lhe aprouvesse. Mas alguns cedo se viram contagiados por um germe que se dizia nascido do pólen do asfódelo e oriundo da Grécia e da Itália, e de natureza tão mortal que fazia tremer a mão erguida para desferir um golpe, toldava os olhos à espreita da presa, e entaramelava a língua pronta a declarar o seu amor. Era da índole fatal desta doença substituir a realidade por um fantasma, de forma que Orlando, a quem a fortuna concedera todos os dons - pratas, roupa de cama e mesa, casas, criados, tapetes, camas em abundância - dissipava em névoa, com o simples gesto de abrir um livro, toda esta imensa acumulação. Os nove acres de pedra que eram a sua casa desapareciam; desapareciam os cento e cinquenta criados de dentro; os seus oitenta cavalos de sela tornavam-se invisíveis; e levaríamos demasiado tempo a contar os tapetes, sofás, adornos, porcelanas, salvas, galhetas, rescaldeiros e outros bens móveis, muitos dos quais de ouro lavrado, que se evaporavam como um sopro de brisa marinha ao contacto com o miasma. Assim acontecia, e Orlando, sentado sozinho a ler, era um homem nu.


Na solidão em que agora se achava, a doença fez nele rápidos progressos. Lia muitas vezes seis horas seguidas, pela noite dentro; e quando vinham pedir-lhe ordens para o abate do gado ou a ceifa do trigo, arredava o in-fólio com ar de não perceber o que lhe diziam. Isto, só por si, já era grave, e confrangia os corações do falcoeiro Hall, do palafreneiro Giles, da governanta, Mrs. Grimsditch, e do capelão, Mr Dupper. Um perfeito fidalgo como Orlando, diziam, não precisava de livros para nada. Ele que deixasse os livros, diziam, para os paralíticos e os moribundos. Mas o pior ainda estava para vir. Porque quando a doença da leitura toma conta do organismo, a tal ponto o debilita que o torna presa fácil desse outro flagela que mora no tinteiro e supra na pena. O infeliz dedica-se à escrita. E se isto já é mau num homem pobre, que não possui outros bens além de uma cadeira e uma mesa debaixo de um tecto carcomido -esse, afinal, não tem grande coisa a perder - a situação de um homem rico, que tem casos e gado, criadas, bestas e roupa branca, e que mesmo assim escreve livros, é digna do mais extremo dó. Perde o gosto por tudo; trespassam-no ferros em brasa; rói-o a peste. Daria tudo o que tem, até ao último tostão (tal é a virtulência do germe) para escrever um livrinho e ficar famoso; mas nem todo o oiro do Peru pode comprar-lhe o tesouro de um verso bem torneado. Por isso se consome e definha, dá um tiro nos miolos, vira a cara para a parede. Pouco importa a atitude em que o encontrem. Ele transpôs as portas da Morte e conheceu as chamas do Inferno."

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