quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Manuel Monteiro lê Charles Bukowski


Pedem-me um texto sobre um livro que ande a ler. Leio vários ao mesmo tempo e sinto que só consigo escrever sobre um que tenha lido até ao fim. (Quantas surpresas não nos reservam os livros ao virar de uma página). Proponho-me então escrever sobre o último livro de ficção que li. Lembro-me de Cardoso Pires responder a Lobo Antunes quando este lhe deu um original seu para ler: «Sei lá o que acho. Ainda só o li duas vezes.» Vou escrever sobre Pulp, que terminei de ler há poucos dias, e de caminho direi qualquer coisa sobre o seu autor, que tenho estudado ao longo de anos. Estou ensonado, mas o prazo está a terminar. Talvez as coisas saiam diferentes quando se escreve sob o manto do sono, penso. Talvez as defesas sejam menores. Talvez.

Bukoswki escreveu tanto quanto bebeu. Romances, contos, quilómetros de poesia, pequenos ensaios. Há muitas críticas justas que se podem fazer a Bukowski. A misoginia, os temas recorrentes (o álcool, o sexo, a solidão, a luta entre corpos masculinos, as corridas de cavalos), a aparente forma pouca cuidada da sua escrita. Mas Bukowski merece um lugar que não ocupa nas academias e nos cânones dos aclamados críticos literários. Quantos escritores conseguiram produzir boa prosa e boa poesia? Aquele que recusou o Nobel da Literatura, Sartre, disse sem medo que Bukoswki era o maior poeta vivo da América. E Bukowski continua a ser lido e admirado na sua prosa e nos seus contos.


Pulp, um livro «dedicado à má escrita», mantém as boas qualidades do escritor. Os diálogos extremamente reais, a escrita clara (Bukowski consegue o mais difícil: explicar algo humanamente complexo de modo simples), o humor (que neste livro é engraçadíssimo). O leitor habitual de Bukowski não estranhará. Mesmo a ficção científica não é novidade. Aquilo que mais me seduz em Bukowski é precisamente aquilo que elogiou em John Fante: não ter medo de expor as suas emoções. Balzac dizia que o homem verdadeiramente forte era aquele que não tinha medo de expor as suas fraquezas. Nesse ponto, Bukowski é mestre e mostra-se-nos em toda a sua esplendorosa podridão, sempre pontuada de gestos de humanidade, designadamente na sua relação com os deslocados da sociedade.

A personagem principal e narrador de Pulp, o detective Nick Belane, não se distingue muito do Henry Chinaski, alter ego de Bukowski. Diria que se lhe acrescenta uma preocupação com a morte, que no livro assume o corpo de uma personagem, a Senhora Morte, que não deixa escapar ninguém. Enquanto lia o livro, não pude deixar de considerar que o autor o terminara pouco meses antes de morrer.

São muito bem conseguidos os incidentes extravagantes e as personagens excêntricas no livro. Nick Belane tem casos estranhíssimos para resolver. Tem de encontrar o famosíssimo escritor Céline (sim, o real) que todos dão como morto, tem de encontro o Pardal Vermelho sobre o qual nada sabe a não ser que se chama Pardal Vermelho, tem de descobrir provas de adultério de um marido desconfiado, e ainda de conseguir que uma extraterrestre deixe de importunar um cidadão anódino.


Os ingredientes estão bem doseados. A irrisão, a ficção científica, o suspense, as reflexões existenciais com a estrutura clássica de policial a conseguir a difícil tarefa de sustentar tudo isso. Bukowski consegue manobrar muito bem a mescla entre ironia e o debate existencial, sem que o livro de forma alguma resulte desconchavado. Mesmo quando um capítulo só tem uma frase. Sublinho ainda a descrição dos bares de Hollywood (tão apelativa, que fiquei com vontade de lá ir sentir a atmosfera), os espantosos diálogos em que a manha de rua do detective o faz sempre ter a tirada certa na altura certa. Espantosa a forma como o detective Belane deslinda o mistério de Céline. Espantoso o diálogo de Belane com uma voz feminina de uma linha erótica. Belane, com o seu conhecimento da alma humana e dos meandros dos bas-fonds, a todos consegue levar a melhor. A todos menos àquela a que ninguém consegue dar a volta: a Senhora Morte.

Termino com excertos desses doces que o autor nos dá para (sor)rir e de chocolate preto sobre a condição humana para reflectir.

« – Nada de cheques carecas ou ponho-lhe os berlindes num saquinho, ouviu?»

« – Caro senhor – disse o Céline, olhando para ele –, se dá valor ao actual estado dos seus tomates, vá-se embora rapidamente.»

«Imaginemos que chegamos à conclusão de que tudo é absurdo, nesse caso o absurdo não pode ser completo pois nós estamos conscientes do absurdo e essa consciência do absurdo quase confere sentido a tudo.»

«Porque é que eu não podia ser simplesmente um tipo qualquer a ver um jogo de basebol? Interessado no resultado. Porque é que eu não podia ser um cozinheiro a mexer ovos e a fingir-se alheado? Porque é que eu não podia ser uma mosca no pulso de alguém, a rastejar com sublime interesse? Porque é que eu não podia ser um galo num galinheiro a debicar uma semente? Porquê isto?»

Manuel Monteiro
*Pulp é uma edição da Alfaguara

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