quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Em memória de Redol


Tivesse sido longevo, como é o realizador Manoel de Oliveira, e o escritor Alves Redol estaria hoje a soprar um bolo com 100 velas. Mas morreu em 1969, um dos expoentes máximos do neo-realismo português. Talvez não signifique grande coisa, dito assim, meio perdido já na voragem dos tempos.

Mas, para mim, mais do que o eco de uma voz com profunda consciência social e eterna defensora dos direitos do Homem, significa as tardes à sombra entregues aos primeiros livros. Significa a memória clara da capa de “Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos” entre os meus dedos, e a alma arregalada de espanto e palavras. Significa a descoberta do mundo nas entrelinhas e da vontade de escrever.

“Se algum dia alguém me perguntasse que aprendizagem deveria um jovem fazer para chegar a romancista, se o ofício se ensinasse, eu diria que enquanto a vida lhe não desse todas as voltas e reviravoltas, amores, sofrimentos, repúdios, sonhos, frustrações, equívocos, etc., etc., (...) seria avisado que o mandasse ensinar a sapateiro, não para saber deitar tombas e meias solas, porque nem para tanto ele usufruirá, às vezes, com a escrita, mas para que ganhasse o hábito de padecer bem, amarrado ao assunto durante largos anos, antes que provasse o paladar gostoso de algumas horas de pleno prazer.” Disse-o Redol, citam-no hoje. Faz sentido. Como fazia sentido para mim, nos idos de 70, este trecho de “Constantino”:

“Os animais precisam de verde, resmunga-lhe a avó. Constantino percebe o que ela quer dizer, mas entrega-se à fantasia de admitir que as vacas e as burras necessitam de comer cores, agora um bocado de verde e depois outro de amarelo ou de vermelho. E enquanto as desamarra da manjedoura, dá-se ao gosto de pensar como seria divertido levá-las a pastar no arco-íris, podendo cada uma delas escolher a cor que mais lhe apetecesse, ou misturá-las e fazer cores diferentes. Ele próprio deitar-se também sobre a faixa azul ou violeta, e depois rolar pelas outras, ficando pintado com as sete cores, às manchas. E só quando o Outono chegasse, se elas fossem vivas como as folhas, vê-las mudar para amarelo e depois para castanho, até caírem de cima do seu corpo, que só então voltaria a ser igual ao de agora. 0 pior é que as burras poderiam dar cabo de tudo, se chegassem ao arco-da-velha e se espojassem, a zurrar, como sempre fazem, mal encontram poeira no caminho para o monte, baralhando as sete cores.”

Um bónus: uma entrevista deste ano com o Constantino cuja infância Redol celebrizou.
http://semanal.omirante.pt/index.asp?idEdicao=520&id=78681&idSeccao=8609&Action=noticia

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