Ele aprendeu russo para descobrir o que acontecia aos lábios do menino no
poema de Arsenii Tarkovski. Lera o poema em muitas versões, em muitas línguas,
e depois ficou obcecado pela página de um livro, pelos caracteres que não
conhecia e que de alguma forma tinha de desvelar. Deve tê-lo feito sozinho,
comprou livros e dicionários, passou tarde inteiras no Cinema del Silenzio, vendo filmes de Andrey Tarkovski, e tempos
depois fez a viagem à Rússia de que me falava de vez em quando, parecia só ter
visto cúpulas de igrejas e neve, e livros, pequenas livrarias onde encontrara
volumes estranhos, os que estão naquela estante. Foi também nessa viagem que
comprou os ícones, a reprodução da Santíssima
Trindade de Andrey Rublev, que está no quarto da torre, e os dois mais
pequenos, que me deu, os dois anjos, um vestido de verde, um de azul, os meus
anjos. Como ele, eu gosto de queimar incenso em frente dos ícones, de acender
velas, de ficar a olhá-los durante muito tempo, os ícones são orações que
engendraram uma forma visível, mas sempre orações. E não se pode fazer nada em
frente de uma oração além de entregarmo-nos, nunca existiram anjos como
aqueles, os da Trindade, criando um
círculo à volta da mesa, envolvendo o mundo, os meus dois anjos solitários,
anjo da natureza e anjo da água, anjo das plantas e anjo dos pássaros, não sei
se ele alguma vez pensou nisso, mas são um pouco como nós, altos e perdidos,
anjo da natureza e anjo da água, Miguel sempre foi meu anjo da água e dos
pássaros, desde a primeira vez que o vi sobre as rochas, imóvel, submerso no
vento e na espuma das ondas, e nos gritos das gaivotas, acho que comecei a
amá-lo naquele instante.
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