Meu Querido José
Escrevo-lhe a horas
tardias, quentes e abafadas. Coimbra está horrível, com este calor e este céu
baixo, pesado e cinza. O calor nunca foi bom conselheiro. Nem para a guerra nem
para a paz, quanto mais para a vida! Se pensar incomoda como andar à chuva
imagine o preço a pagar por pensar debaixo destas temperaturas dantescas! E as
noites que se queriam frescas, airosas, líquidas e musicais, tornaram-se baças,
opacas, densas, espessas, desconfortáveis.
Só o facto de pensar
nestas palavras e ter de escrevê-las cansa demasiado.
Sentir calor incomoda
tanto como pensar. Escrever é suar para dentro, jovem das árias ebúrneas.
Deixei Wagner de lado, por uns tempos, pois o Maestro é feito de flores
debutantes e árvores outonais, não deste calor cesáreo, legionário e
mediterrânico. Céus, como o calor nos ensandece!
Soda e limão e muito
gelo e o desejo de noites frescas e sumarentas.
Segue num caixote
imaginário, a abarrotar de gelo, mais umas quantas impublicáveis palavras
desses Cadernos de Nicosia. Deixo-lhe
em mãos, ainda que nesta primeira parte o não pareça, algumas impressões acerca
da religião e dos deuses e de todo esse infinito celeste, passando pela arte e
pelos jornalistas, que já eram no século XX a mala-posta de mala sempre feita.
Espero receber como
resposta uma missiva carregada com as frescas águas dos lameiros da sua terra,
dos regatos, das montanhas e do silencioso e pensativo rio, o Tâmega dos
segredos de Pascoaes.
Efraim borrifa-se com
água dos fiordes, na tosca tentativa de sentir algum nórdico arrepio, mas o
único arrepio que sente é o da desilusão da água morna e o da carteira mais
vazia. Pobre semita.
Aguardo a sua resposta
e alguma dessa sua prosa sempre escondida em véus de Maya, em vasos de
Confúcio.
Um abraço estético e
metafísico deste
Seu
Gonçalo Viana de Sousa
Saio do hotel num passo monumental e ruidoso. Os
sapatos são o prolongamento dos meus pés e da minha alma, que, passo a passo,
marca ruidosamente os passeios destes jardins de ouro acastanhado.
Entro numa igreja qualquer, não me lembro do nome,
Efraim. A porta da igreja está fechada devido ao calor que se faz sentir nas
ruas, no ar e na pele. Há um pequeno papel em inglês que diz push, convidando os turistas, como eu, a
entrar e a levar com o sagrado pelos olhos adentro. Ou com a beleza das
abóbadas e dos arcos e dos altares e das iluminuras.
Sento-me num banco remoto, num canto maio alumiado por
velas coptas. A igreja é fresca e o céu não tem fim. Um suave cheiro a incenso
paira no ar enquanto um leve gorgolejar de canto gregoriano se espalha pelo
espaço. Outros turistas vão tirando fotos, olhando para os arcos e para as
abóbadas com a boca aberta e o olho em riste na sua máquina fotográfica. O
Divino tornou-se cobrável e turistável em Nicosia. E eu que sempre pensei que
Nicosia era um país navio, Efraim, Mas este pensamento teria que ser dissipado,
pois não há lugar no mundo em que a proporção de turistas e de crentes num
espaço sagrado não seja equivalente. Por cada fotografia tirada se ouve um
padre-nosso, por cada olhar embasbacado e de boca aberta é desfiado um rosário,
por cada vela ou pauzinho de ervas aromáticas um canto gutural é entoado, por
cada porta, portão, portinhola rangente que abre uma prostração solene,
silenciosa e memorável.
A religião está para o turista como a arte está para
os jornalistas. Havemos de chegar ao tempo dos jornalistas na arte, em que tudo
é notícia, em que tudo o que é notícia é perene, efémero, oco. Se o viajante, o
peregrino do século XVIII viajava para se encontrar e para se formar enquanto
ser humano, os turistas do século XIX viajavam pelo simples prazer de o poderem
fazer, aproveitando cada paragem para tirar os seus apontamentos artísticos, ao
mesmo tempo que já sonhava com as glórias do high-life do seu país. Vê o Dâmaso, Efraim, ou o próprio Ega!, para
não falarmos de Carlos Eduardo.
Os turistas deste nosso século XX viajam para esquecer
a história e o passado. O objectivo é sair do lugar que nos pertence, esquecer
o estático e partir em busca do passado dos outros, pois o passado dos outros
faz-nos apagar a sombra do nosso passado e da nossa história, como pessoas e
como pátrias escangalhadas por imperialismo de bigode e suíças à la Strauss.
Que fazemos, afinal, nós em Nicosia?