Meu querido José
Escrevo-lhe de Lisboa,
à hora do sol matinal de inverno que aquece estas benditas e luminosas ruas.
Lisboa é sempre, para mim, a esta hora, uma cidade mítica e exótica, irmã de
Nicosia e de outros países-navio.
Voltei dessas
supercivilizadas gálias carregado de novas noções de arte, de novas filosofias,
de queijos e de vinhos. (O seu Chambertin
à la Eça não foi esquecido, jovem dos
papéis viandantes).
Esta longa jornada em
Paris e em Borgonha fez-me ver novos horizontes e chegar a conclusões tão
difusas quanto silenciosas. Vi a maldade humana em cada canto, escondida entre
gestos de indiferença ou na falta destes. Avistei-a na multidão cambaleante,
anónima e líquida que vagueia pelas estações, pelas paragens, pelos passeios e
pela cidade de uma forma tão autómata quanto gritante. Mas também vi a bondade,
jovem das crenças de cetim e de papel. A bondade surgiu numa situação
inesperada. Estava vagueando por uma pequena ruela onde artesãos, livreiros e
artistas vendem as suas peças e se predispõem a conversar com os curiosos
transeuntes.
Em certo momento,
avisto uma pequena réplica dos camponeses a comerem batatas ou os comedores de
batatas, do ruivo mais misterioso da história das coisas belas. Aquela imagem fixou-se-me
de uma forma inebriante e Stendhalesca que me tornei num drama estático
(peço-lhe desculpa por esta pessoana apropriação, mas foi a impressão que
tive).
Naquele quadro vi toda
a bondade do mundo na forma como aquela família, pobre, suja e trabalhadora,
comia uma sopa aguada, fruto de um trabalho injusto. Mas aquela família
permanecia unida, independentemente do que estivesse para acontecer. Na sua
pobreza miserável partilham o pouco que têm e partilham-no com amor, com uma
entrega que chega a arrepiar. Talvez o divino.
Todavia, acabei por
vislumbrar tanta maldade naquele quadro… Interessante como o mal acaba por ser
o móbil de todas estas criaturas que até pensam, escrevem, pintam e constroem!
O mal está naquela
pobreza húmida, onde se sente o caruncho dos dias penosos, de uma pequenita
ranhosa aos tombos pelos cantos da casa poeirenta, enquanto a matrafona enfiada
nos seus cobertores gastos, rotos e sujos se dedica a rezas de lábios
semicerrados entre a devoção e a loucura. É a filha mais velha que tenta
confortar a avó e, principalmente, a mãe, a pobre mãe que de todos trata
esquecendo-se de si, a pobre mãe que remenda a roupa dos seus com aquilo que
encontra, a desgraçada da mãe que deixa de comer para que a filhinha tenha mais
uma tigela de água e batata aquecida num lume apagado pelos dias de vento e de
frio. É o pai que vem da fábrica exausto e com uma tosse que vem das cavernas
mais negras e profundas.
Vejo, portanto, tanta
maldade naquele quadro do jovem ruivo que o acho belo, positivamente belo!
Vagueei um pouco mais
por entre as tendas dos artistas e de seguida zarpei para outras paragens.
Quando me sento a uma mesa de restaurante noto que a minha carteira havia
desaparecido do bolso do sobretudo. Não a encontrei em lado algum. De imediato
voltei para trás, refazendo o caminho até à pequena rua por onde cirandei.
Quando passo ao pé do quadro dos comedores de batatas uma criança suja e rota
vem ter comigo e entrega-me a carteira, dizendo-me que o «senhor estava a olhar
tão fixamente para o quadro que nem viu que tinha deixado cair a carteira». A
menina entregou-ma intacta, nem uma nota desaparecera. Nada.
Num “gesto largo,
liberal e moscovita” dei tudo o que tinha na carteira àquela menina que em tudo
era semelhante à do quadro. E lá continuei a minha jornada, menos imbecil,
talvez mais bondoso mas com um sorriso nos lábios por finalmente ter percebido
o porquê do seu querido engenheiro naval dizer que não era romancista russo
aplicado nem parvo.
No fim, a bondade
venceu, é certo, mas foi a minha malícia orgulhosa que prevaleceu perante a
poesia.
Bom, despeço-me
apressadamente, pois Efraim aguarda a minha presença para uma longa caminhada
pela romântica Baviera portuguesa.
Um abraço deste sempre
Muito seu
Gonçalo Viana de Sousa