.Meu querido José,
Que silêncio aquele que nos guardou nestas semanas! Que
mistérios e que vidas se passaram nestes longos e finais momentos de Verão!
O Outono chegou, jovem das aventuras de papel, e com ele a
promessa das tardes soalheiras e do tinir das chávenas de café por esses largos
de granito e de igrejas. O Sol de Outono é mais suave e acolhedor. É um sol de
vindimas, de terra e dos generosos frutos que Gaia levemente nos oferece.
Continuo por terras de Celorico, jovem romântico na acepção
literária e moral do termo. Como poderia deixar Celorico neste dourado tempo
das vindimas? E que vindimas estas! Os vinhedos carregados da doce uva, de
branca cor, de tinta expressão. Teremos um ano farto de bom vinho, caro José. A
ti Zulmira e o ti Ernesto numa azáfama alegre e fresca, lavando as cubas
esquecidas no canto da adega, entre as velhas pipas e o tanque do pisar. As
mulheres num leve canto de rouxinol e de pardal celebram a vindima e a vida. As
crianças e os velhos sorriem com uma paz que nenhum Deus consegue dar. Nem o
bom Deus de Rilke. São os chapéus de palha, são as galochas, são as cantigas,
as rabecas e as violas tocando no fim de cada colheita das bagas filhas de
Baco. É este o povo que ainda canta, meu querido José.
O dia começa bem cedo, ainda o Sol é miúdo e uma frágil
promessa de luz. Reúnem-se os homens todos no largo de minha casa. As mulheres
já estão preparando o mata-bicho. Antes que o jovem dos ideais do Século comece
a espernear por conta desta velha e conservadora ideia de “as mulheres na
cozinha”, deve saber que são as próprias esponsais que assim o querem, não só
por ser tradição, mas por celebrarem o famoso ritual da colheita. As mulheres,
portanto, na cozinha preparando o santificado mata-bicho de sardinhas fritas,
salpicão e verde tinto por aquelas sagradas brancas malgas. A cozinha numa
azáfama de sabores. São as panelas de ferro ao lume fervendo água para o rancho
e para a feijoada à lavrador, farta de carnes, enchidos e hortaliças, é a broa
de milho no forno a lenha, são as bolas e o pão de Deus, são os rosquilhos e as
bailarinas, e os vinhos generosos e a música dançando por entre uma viola
braguesa, uma viola amarantina, um violão, uma rabeca e um bombo.
As vindimas são sempre feitas deste ritual profanamente
sagrado.
Mas antes do farto almoço e da festa do jantar, onde o anho é
regado no forno com vinho branco e as batatas alouram com o arroz dourado, há a
cerimónia da colheita desse doce fruto. Colhido pela manhã, ainda com alguma
neblina e orvalho reflectindo o céu azul esmaecido pela madrugada que adormece,
ou acorda, segundo as circunstâncias, cada gaipo de uvas é um tesouro e um
segredo. As tesouras, os baldes, os cestos de vime e as escadas, assim como os
chapéus de palha e os tractores fazem parte de um ritual que se repete ao longo
da história, havendo poucos acrescentos ou então aqueles que melhoram as
condições de quem trabalha.
Imagino a sua cara de estarrecido, jovem das viagens
literárias, ao imaginar-me de calças de ganga, de galochas e de camisa larga,
aos quadrados castanhos, aberta para o sol e para esta vida de saúde e de
natureza. Imagino-o imaginando-me e sorrio só de pensar nisso! “Então o
supercivilizado Gonçalo Viana de Sousa, o primo de Tom Jobim, o homem
superiormente culto e elegante, o flâneur diletante e janota, conhecedor das
melhores paisagens e do melhor que o mundo pode oferecer, de magas arregaçadas
e mãos cheias de marcas roxas das uvas?!”
Quase que o imagino fazendo descrições românticas e
positivamente exageradas sobre mim, de chapéu de palha na cabeça, cantando uma cantiga
a S. Gonçalo ou a Safa, enquanto colho os doces bagos. E assim continuaria o
meu querido José: “E o nosso flâneur, depois de um ano vivendo luxuosamente em
cidades atoladas de bibliotecas, de óperas, de Ideias e de Civilização, depois
de largos meses vivendo como um homem superiormente culto e elegante, depois
dessas altas viagens pelo mundo que pensa, o nosso viandante esconde-se nos
matos do obscurantismo de Celorico, nas profundezas provincianas do povo
católico, coscuvilheiro e de direita jarreta!” Como o imagino pensando estas
coisas! (Olhe que a direita jarreta já rareia, e a coscuvilhice faz de nós,
portugueses, superiormente interessantes! O nosso cosmopolitismo é aquele da
província, o cosmopolitismo provinciano. E olhe que não digo isto de forma
depreciativa. Devemos aproveitar e explorar esta situação, única, no quadro das
sociedades e culturas europeias e ocidentais. Claro que não o podemos fazer
caindo em patriotismos démodés à la
Pascoaes, ainda que o vate do Tâmega me seja querido.)
Bom, a missiva já vai longa, e das vindimas lá fui caindo na
metafísica de ser português. Esta última parte deixo-a para o José pensar e
reflectir. (Quem sabe, não lhe será útil para as suas investigações!)
Efraim manda abraços apertados, informando-o que partiu com a
família para Israel.
Um abraço vigorosa e cosmopolitamente provinciano deste
Seu
Gonçalo Viana de Sousa