(ao domingo) Letras Focadas
“Na ponta da pena, soltam-se letras conjugadas, bem focadas, para serem percebidas”
Breve nota
O acaso levou-me até Sandro. Na compra de um livro, que por acaso era o dele,
conjugaram-se vários factores que permitiram que esta nossa conversa
acontecesse.
Partilho assim breves trechos de quase três horas de uma conversa
solta, sem guião, à beira-mar, como podia ter sido noutro lugar qualquer. Foi ali por
minha sugestão e parece que estivemos de acordo. O som do mar, o cheiro a
maresia, deram o tom perfeito para conhecer este homem da Arte, onde a escrita
surge como “uma necessidade”.
Apresento-vos o escritor Sandro William Junqueira.
Nascido na Rodésia, país que já
não existe, vem para Portugal aos dois anos de idade e, até aos 12, vive em
várias cidades, recomeçando e reconstruindo referências e amizades, facto que
irá marcar a sua escrita.
SWJ: “
Sou um desenraizado. Os lugares dos meus livros
podem ser qualquer lugar. Deixo ao leitor essa liberdade de imaginar. Os
lugares da acção não têm nome, tal como os personagens. Na minha escrita, o
leitor tem a liberdade de poder intervir na narrativa. Não está lá tudo, nem
tem de estar. Bertold Brecht disse: “Uma história em que se percebe tudo é uma
história mal contada”. Concordo em absoluto. Na minha perspectiva, um bom livro deve
dar espaço ao leitor para que este possa intervir. A boa narrativa
não é aquela que cumpre cronologicamente, um encadeamento lógico e temporal. A
nossa cabeça, a nossa memória, não funcionam assim."
Da escrita
SWJ: “Sempre senti necessidade de me expressar através da arte. Por
isso, experimentei diversas formas: a pintura, a escultura, a música, o teatro
(que é parte fundamental da minha vida profissional). A escrita apareceu, mais
tarde, aos 25 anos. Percebi que era o lugar eleito. O lugar certo. Tinha
encontrado o espaço onde me poderia expressar sem condicionantes de nenhuma
ordem. Escrevo como quero, sobre o que quero. A escrita é, para mim, o maior
espaço de liberdade individual. Parto para a escrita com total inocência e ingenuidade. Nunca
faço planos do que vou escrever. Nem tenho história. Por exemplo, em 'Um Piano Para Cavalos Altos' começou com a imagem de uma criança a ser amarrada, pela
mãe, a um piano. Na altura não tinha mais nada. E a escrita é o perseguir e o
questionar desses 'quadros mentais'."
"O acto da escrita é muito
físico. Nos dias bons, chego à exaustão. Existem dois momentos. O primeiro: o
da matéria bruta, puramente instintivo, inconsciente; é o instante em que desço
ao interior do vulcão. Depois, vem o segundo momento, doloroso, em que a parte
racional entra com o bisturi: e é corrigir, e cortar, e corrigir, e cortar. Comparo este processo com isto: imagine uma camisa muito amarrotada. Ao
engomarmos a camisa, ao passarmos a ferro uma vez, teremos de voltar
atrás, ainda estão lá as rugas, e passamos novamente o ferro, uma e outra vez,
e repetimos este movimento até a camisa estar bem passada. Sem rugas."
A estrutura do seu livro "Um Piano Para Cavalos Altos"
aparece como uma composição musical. Dividido em Sonata de Inverno e Concerto
de Verão, os capítulos são Gymnopédies, referência à composição de Satie. Fale-me
desta construção e a relação com o mundo da música, pedi.
“Gostava de ter sido pianista. Emociono-me sempre quando
vejo um pianista a tocar. É uma relação muito física. Adoro o piano, embora não
tenha nenhum talento para o tocar. Em vez, escrevo o melhor que sei e posso. E,
existem momentos, quando estou a teclar, a escrever no computador, que me sinto
pianista; as teclas com o abecedário transformam-se por momentos nas notas do
piano. E ouço a música e componho. A música é um grande mistério. É a forma de
arte mais universal. Muito mais antiga do que a linguagem. Julgo existir uma
estreita ligação entre a escrita e a música. Quantos livros deram fabulosas
composições musicais e quantas delas deram excelentes livros. Escrevi todo este
livro ao som do Concerto nº2 para piano de Rachmaninov. No fundo, gostava de
atingir os leitores com a mesma força, como a música me atinge a mim."
Do Bem, do Mal e do Mundo
"Vivemos numa ditadura financeira. Onde é que está o
dinheiro? É a única questão. Não é o ser ou não ser. Isto é aterrador e
angustiante. Colocámos a tabuada à frente do Ser Humano. Se há esperança? Não
gosto dessa palavra. Portugal sofre de um mal terrível. Apesar deste clima e
povo extraordinário, Portugal nunca passou por uma reconstrução. Grande parte
dos outros países foram obrigados a uma reconstrução, a começar do zero, da terra
devastada. Assim, somos um país velho e podre até à medula. A corrupção, a
impunidade, é tanta e está de tal forma instalada que dá asco."
Para finalizar, um desafio.
Em poucas palavras, diga-me o que entende por :
Vida: “Não
compreender.”
Escrita: ”Escrever é gritar baixinho.”
Eu: “Sou muitos.”
Esta conversa: “Uma partilha.”
E, numa tarde quente, coberta de nuvens, à beira-mar, um “Eu Escritor” que é muitos, honrou-me com a sua companhia. Porque, para além de promissor escritor, de elevadíssima qualidade, consegue provocar-nos com a sua
Arte. Bem-haja!
Elsa Martins Esteves